16.5.18

Léguas ganhas

As léguas são compridas de mais
ou os demais não se auguram confiáveis
e os passos longos são pequenos de mais
para todos os que se constituem nos demais.

Pode ser da bitola
ou apenas um erro de medição:
quem será o juiz do pleito
é interrogação sem resposta.

(O que deixa em aberto 
o pleito,
para deleite dos caóticos.)

Não devemos confiar na sinalética
nem nos palpites dos circunstantes
a menos que sejamos sozinhos
e da solidão tenhamos excruciante dor
e a planície sem fim
julguemos nossa sepultura;
antes a errância
as estradas embotadas nas encruzilhadas
o séquito de desvios e ramais
uma teia tecida na curvatura da mão gasta.

Que importa o tamanho das léguas
se o âmago está no caminho 
– no que já foi feito 
e no que houver por fazer.

#580

Não havia maiúsculas,
por preguiça:
nas maiúsculas
medra a demorada altivez.

15.5.18

Sem medo

Fujo do medo
do medo que não sei ter
do medo que cobre as veias de cinzas
do medo a pedir meças ao medo.

Nas velas atiçadas contra o vento
esboço uma falésia asilo
e do guardanapo amarrotado
retenho as moedas que afugentam 
malignos espíritos.

Não há lugar ao medo
sem ser coragem desassisada
sem conter uma demencial audácia
que arremete contra as muralhas do vício.

Fujo do medo
não por ter medo
apenas 
por ter medo de vir a ter medo.

#579

Não tenho por hábito 
dar atenção a destroços. 
Podia acreditar em seus méritos heurísticos.
Não consigo.

14.5.18

#578

Vão (moderados)
no vão (da escotilha)
eles vão, em vão.

Invasão de campo

Acredita na cidade
nos segredos ocultados pelas janelas
nos jardins efervescentes
nas ruas e sua miríade de flores
na música sussurrada pelo vento
no tardio endosso da manhã.

Acredita nas invasões não invasivas
no magistério dos anciãos
no completo adornar do sol
nos navios que enfeitam o estuário
nas muralhas que guardam milénios
no intempestivo grito de um poeta.

Acredita no que houver por acreditar
no volúvel volteio à mercê dos humores
nos epítetos esvaziados
nos pólenes que deitam os juros da vida
nas vitórias que se orquestram em recato
na humilde lágrima vertida no rosto.

#577

Nunca fui a Cracóvia.
Cracóvia pode esperar.
(Cracóvia: pela musicalidade da palavra.)

13.5.18

#576

A máscara sem dedos
odisseia com jura
no planalto aberto ao vento.

12.5.18

Terra

Terra do nunca
de antes da madrugada
oblívio que rumoreja.
Terra de agora
do entardecer que cicia
memória que prospera.
Terra soalheira
dente de leão ao peito
avenida que desfaz farsas.
Terra quente
na manhã orvalhada
violino desenhado no céu raiado.
Terra das terras todas
o todo vazio
seara no viveiro das coisas férteis.

#575

O historiador
cultor de Rosa do Luxemburgo
tem a meia rota 
do tamanho do dedo grande.
É para arejar ideias.

11.5.18

Estrangeiro

Saio de mim. 
Vou pelos arruamentos
onde se enquistam molduras desiguais
os estruturados lanços 
do que meu olhar não contempla. 
Revisto cada enseada
talvez as areias molhadas invistam
o puro sinal das diferenças
e então
na companhia dos navios em redor
sinais de fumo venham ao estuário
onde escondo a solidão. 
Descubro os incomparáveis lugares
que fogem da penumbra
e noto
pela primeira vez
que me consigo ver por fora de mim:
vejo uma figura;
parece a distorção de um espelho
um passo vadio contra as varandas pueris
os contrafortes dos lagos intrínsecos
um chapéu sem medida
a medula funda nos ossos húmidos
palavras entoadas num viveiro oriente
propositadamente despojado de armas
o peito nu dado ao imponderável inverno
armadura sem doenças inventariadas. 
Não soube dizer
se ao ver-me por fora de mim
o vulto era eu em reconhecimento
ou se me vi como estranho 
(de mim mesmo). 
Não consegui tirar fotografia. 
O aparelho ficara escondido
no fundo da minha alma. 

#574

Ah! as certezas:
sitiadas por titubeações, 
transfiguradas em certezas dissolventes.

10.5.18

Moda sem modos

Trovas modernas:
o tempo não tolera a letargia
e os seus argonautas

(como se cavalgassem 
nas amarras de um relógio)

insubordinam-se contra o vazio. 
No fundo
exoneram a história
projetando-se para o fado que é incógnita

(menos o sê-lo, 
quando chegar seu apeadeiro). 

Enquanto esperam
esculpem o tempo que vem parar às mãos:
as modernidades sucedem-se
com a mesma voragem
dos dias sucessivos. 
Na lente baça da desmemória

(entretanto cultivada)

de tantas trovas modernas
já não mantêm inventário
dos modismos em acelerada substituição. 

Às trovas modernas
o património da desmoda:

todas decaem no seu fulgurante emudecer

o passo cedendo
a outras por sua vez efémeras.
Até se chegar ao nirvana:

é moda 
não estar em moda. 

#573

Não há moral da história. 
Há um mural para a história.

9.5.18

Atributo

Deste colostro
um viveiro fecundo
úbere das palavras
limiar dos nómadas,
trevo de quarto folhas. 
Deste mangas
ao coloquial assinalar da data
um desfado cinemático
entre as sombras desenhadas,
xadrez sem regras. 
Deste causa
à paráfrase sem curadoria
no metálico entoar dos fantasmas
nos diálogos surdos,
ponte suspensa sobre o vasto mar. 
Deste olhar sem freio
acordo com as árvores
à espera do vento
na espera do que não tem espera,
o engenho que não precisa de invenções.

#572

Dei de mim
um legado ao devir
e não me importo
se o tempo não agradece.

#571

- Não sei
o que é um contumaz. 
- E sabes
o que é um desertor?

8.5.18

#570

Não o plano beligerante,
atalho para a circuncisão 
da rebeldia heurística.

O todo e as partes

A parte de um todo
nascente
desdiz o equinócio vespertino
e traduz em aplausos
a válida interpelação.

Afivelem-se deduções
como as laranjas que medram na primavera:
os embaraços 
são fulgurantemente demitidos
sobrando o chão inteiro
à mercê dos pés que o querem ler. 
À parte de um todo
em pleito desigual
os braços terçam lugar contra as marés;
o todo é desimportante
na fecunda indução das estrofes sem rumo
por saber 
que o saber não se sabe. 

No mais alto miradouro
nada é o que vemos da varanda sobranceira
(e não é por haver um teto de nuvens
a servir de chão).

O modo aristocrático em desuso
ensina:
desliguem-se os nós da teia dos pergaminhos
que não passam de incenso sem fogo
de um esplendoroso sol despojado de cores. 

Há vozes estridentes
ensaiando seu máximo ruído,
o silêncio 
sepulcral e capazmente sibilino. 
O todo estilhaçado nas suas muitas partes
perdeu-se num mapa sem sextante. 
Dos escombros
uma miríade de partes
desligadas umas das outras
intencionalmente desligadas
na fruição de uma soma
maior do que o todo anterior. 

As múltiplas partes gravitam 
no sedoso esculpir 
das palavras desarmadilhadas;
tudo se congemina na fábula da perfeição
enquanto os paradoxos dão leite ao pensamento
e das bainhas dos sobressaltos
não se sabe paradeiro. 

Chove lá fora. 
As mãos molhadas 
recolhem um pedaço de terra molhada.
As mãos empapadas 
libertam a terra entre os dedos. 
Não haveria melhor metáfora
da transfiguração do todo 
nas suas múltiplas partes.

#569

Alarido no mercado:
um pranto convulsivo
e a indiferença vegetativa.

7.5.18

#568

Não é menor vaidade
exibir abundante modéstia,
em arrependimento pretensioso.

Casa da chegada

A casa 
sem fronteiras
sem telhados vãos
sem veios apodrecidos
a casa acesa
alpendre em espera
a casa do verbo falado:
da infinita alvenaria
o ósculo viveiro
conferindo a cal sobre as paredes
no astuto olhar desembaraçado.

A casa
nascente do amor
e seu estuário, também:
fluxo circular
vitral marmoreado
centelha que se empresta aos corpos
com o jardim por perto
as flores silvestres selando a paisagem
a casa 
onde se entrelaça a alquimia com o nosso suor.

Da casa em congeminação
à casa sonhada
à casa havida
à casa 
com os corrimões
compostos pelo ouro das nossas mãos.

A casa 
pátria dos deslimites
terraço de identidades desenhadas
os fragmentos colhidos do chão
os murmúrios reservados pelas paredes
santuário dos dedos que afagam os lábios
na boca sedenta
no segredo da janela sobranceira ao mar. 

A casa
património do mundo
e o mundo
em sua devolução
resumido à casa fortaleza
onde se ciciam os verbos fecundos
e as palavras sabem a framboesa.

#567

O fugitivo
preso a uma miragem
no sonho incontestável de uma muralha.

6.5.18

#566

A grande fábrica do sal
onde, depostas, 
as lágrimas não têm carestia.

Paisagem acesa

Confiro a metáfora
na paisagem de mel
encanto cerzido na urze ao acaso
e não concedo no dilatório impropério
em que enquistam
os pesares arqueados sobre o dia volúvel. 
Uma desfeita 
sobre as arcadas perfunctórias:
as abóbadas estilhaçadas regressam ao lugar,
depois de o olhar ter errado
depois de ter perdido o compasso
depois de terçada a angústia infecunda. 
Não interrogo nada
nem procuro as respostas impossíveis. 
Antes a metáfora
uma metáfora gutural
os pontos cozidos na pele
na prometida cicatriz que dispensa tatuagens. 
Às voltas com a moldura, 
onde minha aura tem cabimento
sentado em meu lisérgico lugar,
trago da madrugada a boca sedenta
o corpo sem freio;
a insubmissão não é torpe fingimento:
a falésia testemunha o fundo da jura
o encontro das abcissas
e da escotilha vejo
o luar a caucionar o dia
enquanto a algazarra pura das crianças
póvoa estrofes em folhas soltas.
Não quero penumbras desautorizadas
como penhor da vontade. 
Só quero o deleite empossado
o verbo contundente
a maresia imperturbável
e os olhos desembaciados, incontingentes
para leves verem o quadro 
onde se senta
a paisagem acesa.

5.5.18

Turismo

Seria uma bala perdida
o furacão intumescido
a glosa sem vento
uma mão erguida em protesto
o miado do gato presidente
o mar calmante entre paredes 
uma história sem enredo
o mendigo absorto no cais enferrujado
a menina apressada
uma gota de suor misturada com chuva
os livros deitados fora
um russo em pose aristocrata
um assobio (não piropo)
a seriedade do edil
a contrassenha do segurança
a sobriedade da velha atriz
o freio do cavalo atrelado
a sétima vida do rapaz do circo
um adeus que se remete ao silêncio.
Hipótese por amadurecer
o fogo alto em pira amontoada
a voz rude no parapeito da melancolia.

#565

Fiz deste embaraço
alquimia
e deitei-me no regaço da noite.

4.5.18

#564

Aqui: o meu corpo desminado
mártire de prazer
a água toda por beber.

O grande gesto oblíquo

Sussurrei versos ímpares
e os ouvidos inquietaram-se
no desábito da imparidade.
Se ao menos fossem verticais
e não intuíssem
os trovões que assaltam a janela
neles se podia aninhar 
a refrigeração das almas.

Não era o caso:
os versos
rudes
violentos
um ensaio de sarcasmo
eram prova viva da marginalidade
do isolamento metódico
de uma certa desidentidade
que não se esfrangalha no sopé das bandeiras;
maus os modos
de quem desalinha criteriosamente
num fogacho de mau feitio perseverante
na irrisória ilha de que é esteio
nos preparos da loucura insignificante 
– da loucura todavia benigna.

Justapõem-se
razões cimentadas em desrazão
no pueril encaixe da insubmissão,
talvez.
Talvez:
se visto de fora
lente que não é viável juízo
por exterior incapacidade
de saber do sangue fluente 
que toma conta das veias.

Continuo a sussurrar versos avulsos.
Versos-protesto.
Versos-infâmia.
Versos-inocência.
Versos desunidos.
Versos em coreografia contra a contrafação.
Versos carentes de uma nova gramática.
Sussurro-os.
Às vezes, 
em paradoxal gritaria interior
tão estridente
que só as veias combustíveis os ouvem.

O murmúrio
enche-se das cores vivas
na centelha soalheira que reaviva a primavera.
E eu sei alguma coisa
contra o rio imóvel 
que espera pelo tempo impassível.

#563

Da valsa vagarosa
sob os lustres decadentes,
os profetas.