23.7.18

#664

E aquelas interrogações
que caducam com dois pontos.

Pelourinho

Que enredos
anuncia dinastia corrente,
que porta-estandarte se afivela
na baía que se estreita no ocaso,
que histórias se contam
e quantas podem contar com 
a mentira como costura?

Os reinos não se perpetuam
no estorno das páginas dedilhadas.

A lente parece vívida,
ninguém diz que parece baça;
e, todavia,
encontra-se baça.
Os olhos destreinados
(ou então apenas acasmurrados)
fiam-se em seu próprio viés.
É como os reis e as rainhas
de reinos pelo mundo fora:
não aprenderam a ser atavismos
e do lustre obnóxio ostentam pergaminhos
com a bênção de vassalos
com o pensamento embainhado
nas curtas estrofes da “tradição”.

Ora,
dos enredos não consta a tradição:
a palavra livre é, 
no preparo da não capitulação
aos dogmas assegurados.
Ou a história do porvir
será uma mentira maior que as certezas 
de um mitómano sem remédio.

#663

Não passarão.
Não,
passarão.

(Para o americano que quer promover a extrema-direita na Europa)

22.7.18

Torre

Da torre
vejo a miragem
que embacia a pele. 
Combino
as esguias paredes
com o viveiro sem enfado.
E o nativo esgar
moldado com minhas mãos
projeta o cimento em que assentam
as escadas por onde somos sufragados.
Da torre de menagem
conspiro pelo bem da humanidade.
Arranjo o sal intenso
e deixo que sejam as palavras
o capataz de todas as empreitadas.
Da torre
desenho a homenagem
possivelmente num celeiro fértil
contra a maré da pérfida desconfiança.

#662

Inventamos o futuro
no dorso dos dias
de que somos suseranos.

21.7.18

Transformação vital

É possível 
que o refogado queime
sob escolta do lume desatento. 
É possível
que se junte num todo
os despojos do refogado
e se invente novo tempero,
um concentrado qualquer,
o aproveitamento de um lampejo
ou apenas um acaso,
no fortuito jogo a que obedecem os acasos. 
Assim como assim
há vinhos late harvest
e até as uvas no limiar da podridão
servem para vinhos.

#661

O artesão das luas
caiou o dia
com seu olhar telúrico.

20.7.18

Mercado dos rumores

O sal sujo
na lombada das frases
vívido rumor desembainhado.
Costuram-se as bocas fartas
à mercê 
da mentira idolatrada pelo rumor.

O sono sem espinhos
aconselha a irrelevância do rumor.

Mal se recomponha o dia
e as traves sejam mestras 
das paredes que abjuram logros 
(pois os logros 
são a rebelião que não tem valimento
a insubmissão fraudulenta
um levantamento contra as páginas brancas)
aos eixos voltam as coisas 
dantes descompostas.

Sujo 
é o sal do rumor
à força metido na boca de seus fautores.

#660

Ecoa o silêncio da noite
no fundo peito
e eu não desisto.

19.7.18

Filatelia

Estas são as décadas
do sangue venal como escombro
das casas fundidas em nuvens plúmbeas
dos corpos transidos no precipício da noite.

As décadas
do impossível congeminar de verbos
do proibido véu que se arca sobre o peito
e
da imperturbável nascença da manhã
das janelas estendidas nos parapeitos do sol
dos archotes que emprestam luz
aos palcos desmontados.

Das décadas imberbes
dos rostos apenas laterais por falta 
de intrepidez
da cábula dos sentidos
dos fingimentos arpoados em capuzes
da perfeita incapacidade de quase tudo.

Esperam décadas
firmadas no estirador virado a poente:
as décadas
que se não querem émulo 
das décadas em seu frontispício perdido;
décadas 
arrematadas às tenazes incompletas
o postal do tempo que dizima o arrependimento
e se compõe no pano mais fino
no linho leve onde tudo deixa de ter peso
no autocarro sem parar
que flui no impenetrável mister
da fortuna terçada nos dedos próprios.

#659

A terra do fogo
perdida de véspera
no labirinto empalidecido.

18.7.18

#658

O jovem político protesta:
(fulano) 
é um bom exemplo de um mau exemplo.
Ninguém lhe pede
um mau exemplo de um bom exemplo?

Notário

Dou de mim a medula
o ar cheio de aroma floral
uma orquestra em fase lunar
a constelação de mãos desatadas
um tirocínio de graça 
a porta sem freio
o freio sem chave
a carne franca 
as árvores mindinhas 
o véu desembaraçado
um esboço humildemente atirado
o avesso das verdades sem mentira serem
um espelho desembaciado 
a corrida desenfreada
a noite exangue
o arquipélago do pensamento
a aspiração da bondade
os olhos limítrofes
o cimento à espera de água
a dúvida sacramental
a luminosa estátua redesenhada
o coldre vazio
a clepsidra perdida
uma alvorada sentada no suor combinado
a hermética condição
o segredo com um destinatário
a teimosia sem remédio
alguma loucura disfarçada de provocação
(ou a provocação no alpendre da loucura)
a curadoria da lava recriada
a sombra sem chapéu
o sangue efervescente
o legado sem estimativa
um lago bordejado por uma quimera
a combustão das veias compiladas
a conspiração do pensamento 
uma provocação embebida na carne
o sonho majestoso. 

17.7.18

Resistência de materiais

O farol
beija o nevoeiro.
Demora-se.
Atreve as papilas gustativas
no sal rude do nevoeiro
temperado com a espessura do mar.

O navio
congemina a entrada no cais.
Avança.
A medo: 
o mar está enfurecido
e a noite medonha incendeia o palco.

Parece inverno.
Está setembro no auge.
A tempestade 
desagua em terra
com foros luciferinos.
Ninguém estava a contar.
A culpa terá de finar celibatária:
imprevisto,
o fenómeno,
não podia ser abraçado pelos peritos.

Debaixo da ponte
os cães vadios escondem-se
da noite tempestuosa.
Protegem-se uns aos outros
e dos outros 
(homens).
Refreiam desavenças;
as matilhas já não são concorrentes.
Os mais fortes dão guarida aos frágeis.
Os bombeiros não têm tempo
para apreciar.
Passam ao lado da lição.

O rio segue caudaloso.
À sua passagem, 
um tremor alucinante.
Parece que o cais vai ceder.
Os engenheiros sossegam toda a gente.
Os cálculos foram diligentes
e a resistência de materiais 
está garantida.

Também ninguém estava à espera
do cataclismo.
Nem o farol 
que com sua luz intensa
abre avenidas entre o denso nevoeiro.
Nem os peritos
que não souberam prevenir a tempestade.
As pessoas perguntam:
devemos confiar nos engenheiros
e na resistência de materiais?

#657

À noite servil:
tempero teu dorso
com a saliva de minhas sílabas.

16.7.18

#656

Humano,
o mano.
Ó mano,
humano.

#655

Desfaço 
um espelho de água
com os dedos diluente.

Oriente

O oriente
devia ser
o padrão da orientação. 
Em vez do norte
que afivela as bússolas. 
Pois se do oriente
o verbo se extrai
e depois se soma ao substantivo
tudo se consuma
para o norte o trono perder
e orientados passemos a estar
(deixando de se falar
de alguém que se norteia). 
Para depois 
de tanto se fitar o oriente
galgando oriente atrás de oriente
se descobrir 
à casa da partida ter chegado
(ou dela nunca ter desamarrado).

15.7.18

Escultura

Com gesso
esculpi as mãos maestras
e no poço outonal
amestrei o suor
o mítico ocaso sobranceiro 
à vontade. 
No tira-teimas
a escultura pedia cor
e eu não sabia das tinturas à espera. 
Não faz mal. 
O improvável estuque
matéria pobre em fazenda rica
cuidou de ser cimento
vagando os espaços vazios. 
A escultura tomou forma.

#654

No altímetro da autoestima:
os que arpoam nos Himalaias
e os que lançam âncora no Mar Morto.

14.7.18

O pior pensador da cidade

Estreita os garfos vencidos
sobre a toalha contumaz:
dizem que o pior pensador da cidade
não se cansa da vaidade. 

No púlpito deserto
sobram os abutres famintos
no limiar da falésia
onde esperam o cortejo de presas fáceis. 

À míngua de água
arrastam seus corpos exangues,
as presas fáceis,
aturdidas pelo sol açambarcador. 

O vulto do pior pensador da cidade
não capitula;
é como nos piores pesadelos
(ou na lei de Murphy,
já não se sabe ao certo):
o disfarce do deserto
e de seus porta-vozes diletos
(os abutres pacientes)
aparece na forma do pior pensador da cidade 
– como se fosse 
a nódoa 
que nenhum elixir sabe dissolver.

#653

Livro (em) branco.
(O silêncio fala mais alto.)

13.7.18

Prazo de validade

Vem na embalagem:
deixou de ter serventia
e se abrires o invólucro
talvez notes
fungos
podridão
o odor pútrido
as cores adulteradas
um estado comatoso da mercadoria.
Perguntas:
tem remédio
o prazo de invalidade?
Aceita um módico de trapaça?
Não vás ao desengano
que o leito do hospital
e uma desintoxicação
não são pera doce.
Não faz parte da récita
o fingimento
nem tão pouco se recomendam
vistas grossas ao prazo de validade.
Quando te renderes ao prazo de validade
verás
que há muita claridade para arrotear
e muitos prazos ainda dentro 
da validade.

#652

(Variação do #651)
Estado da nação:
considerável matéria-prima 
para oftalmologistas.

#651

Estado da nação:
prodigioso triunfo dos mitómanos.
(Na falta de estado de noção.) 

12.7.18

Plano de fuga

Matriz desenhada
no parapeito do improviso.
Um raio atravessado
na bissetriz do papel 
– uma cicatriz não esperada, amovível.
Compõem-se as estrofes imprecisas
no antebraço da angústia
em remoinhos inseparáveis do sorriso:
pouco há que valha tanto.
E sem pressentimento por perto
escavo as sílabas 
va-ga-ro-as-men-te
não vão as palavras ficar pela metade
e o plano de fuga naufragar
à mercê de um demónio disfarçado.

Ajusto o espelho ao contorno do rosto.
A toalha humedecida
desce sobre o espelho;
não quero que ninguém veja
o plano de fuga 
– ou de como me devolvo
aos labirintos
que são a medula indisfarçável.

#650

Pressuposto.
Pré suposto.
Prece e posto.
Prece, o oposto.

11.7.18

O bom sociopata

Um mergulho no carisma:
pressuposta a carência de admiração
pois o autocomprazimento
é medida exígua para tanto ego
e não conta para as contas que contam 
– lá fora
onde os outros são a légua medidora
o bastão correto
(quando o carisma é por eles tutelado). 
Houve quem sugerisse
que mal não viria ao mundo
se um modesto ensimesmar
fosse o contraponto 
dos corpos que transbordam
e demandam leito fora das margens
(num cosmopolita coletivismo do eu). 
Os desenhos da alma
opõem-se aos nomeados curadores
que sugerem uma certa altivez do eu:
sob pena de acusatório libelo 
na forma do ultrajante narcisismo
recomenda-se que sejamos 
janelas abertas
uma certa simbiose recíproca
a multiplicação de eus 
em outros eus assim expostos
tudo elevado a uma potência sem numerador,
proibidas as cortinas 
que descem sobre uma certa reserva
e a coutada da personalidade.
Não transijo
a recusa em ser 
ator de um voyeurismoirrefreável.  
Termos em que me declaro
orgulhosamente sociopata
sem declinações centrípetas, 
que também recuso. 

#649

O cavalo de troia da nação:
porta-vozes em nome de todos
(sem exceção).

10.7.18

Jacarandás

É a conspiração dos jacarandás:
as cores em combustão
rompendo com a noite
(se preciso for)
deitando sobre o olhar
a cor luxuriante havida por necessária
na contrafação imperativa das sombras.

Só pode ser conspiração:
recolho das pétalas dos jacarandás
um aroma imaginado
que extasia
e reinventa a pele adormecida
e devolve ao sol o acobreado palco
e embebe o mar numa cor desmaiada
e ultraja todos os quadros encarvoados
ditando-os à decadência
em que servem os vultos.

Uma conspiração:
no apego às palavras
em seu lugar reavivado
as palavras
decompondo-se em semântica do avesso
só para ter a medida de uma conspiração 
na antítese das malevolentes conspirações.

Tiro as bainhas
ao quadro diante do olhar:
admito a conspiração
dádiva dos sentidos
e convoco os jacarandás
para uma constante jornada de flores pujantes.
Só para me saber
constituinte de uma conspiração
não cuidada com o punho preventivo 
de punição em coro com o penal código.

Para memória futura
e em apelo aos distraídos,
aos que nunca 
deixaram os sentidos embebidos 
na quimera de um florescido jacarandá, 
e aos provavelmente incultos
(sem culpa formada por essa culpa)
que não sabem da cepa dos jacarandás,
para colherem 
no púlpito do olhar
o frémito da conspiração fertilizada
pela embriaguez de cor dos jacarandás.

Até muito sermos
tutores de conspirações benévolas.