24.8.18

Estética

Na numeração dos encantos
não nos façamos rogados:
a estética
nunca fez mal a ninguém.
E nem os apoderados da dita
(ou que espalmam a sua existência
no fogaréu da estética 
– como se não houvesse um mundo lá fora)
e o seu proverbial nanismo,
afinal apenas risível
(e não irritante 
– que não temos idade para torvações),
servem para aplacar a proclamação.
Consagremos a atenção
aos lugares belos
às palavras belas
à música bela
aos belos sentimentos 
– e a toda a demais beleza
que haja para apreciar
e por apreciar.
Antes que a feiura seja irremediável
e a estética
contaminada seja
pela tenaz das espécies em vias de extinção.

#699

Socalcos em chão não abençoado:
arte de um viveiro 
de mãos ensanguentadas.

23.8.18

Partitura

É nesta partitura
que desenho uma história.
Na partitura
onde liquefeitas estão as convulsões
e dos embaraços sobra
remota evocação. 
No papel cingido da partitura
cobro os favores aos oráculos
esconjurando-os na mealha das mãos. 
O desejo de ser
é a voz mais alta
o miradouro de onde o olhar
abraça a finitude do ocaso. 
Com a ajuda desta partitura
uma orquestra de acasos
sem o acosso do milimétrico sopesar
sem a jugular ameaçada
por cânticos certificando desideratos. 
Reifico a matéria viva
as linhas sem régua que abjuram segredos
e dou à partitura,
em sinal de reconhecimento,
palavras que namoram o mar vizinho. 
Antes que o mar se cale.

#698

Que aplauso,
se não o silêncio,
quero no ateneu?

22.8.18

Torre alta

Nos balcões estendidos na maresia
intercedo a favor da loucura
dos boémios sentidos da memória
no vulgar dedilhar das páginas em fervor
fecundas sementes do sangue corrente.

Intercedo
em flagrante viagem contra o vulgar
num apanhado de palavras improváveis
deitando os olhos ao céu de espuma
onde dançam
as boreais, lânguidas madrugadas.

Não protesto.
Não devolvo nada à ira.
Canto as músicas que encantam
as músicas quiméricas nos varandins alçados
em constante agradecimento à música 
– a ciência máxima.

Se a mim vierem as sortes
(se por sortes se tiver um fado)
quero que seja um singelo cosmos
poemas destravados
onde as palavras se sobrepõem aos freios
e eu tomo em mim
a inteireza toda
a combustão das coisas gélidas
os braços abraçados ao pequeno planeta 
– o planeta pequeno de mais
para tanta sementeira.

Se a mim vier a fecunda safra
que seja 
uma constelação de aromas
um vulcão indomável
a parafernália de sentidos 
com moldura em palavras
uma imensidão a reclamar lugar ao infinito.

#697

Passageiro no dorso da memória
costuro as nuvens válidas
no teatro desmentido de fadas.

21.8.18

#696

Maternidade.
Materna idade.
Eternidade.

A idade sem mácula

Remato o instinto
com a voz grossa dos intrépidos. 
Não era essa chama
que precisava. 
Dantes
quando todas as coisas eram líquidas
a fúria tinha ninho fácil
e o sono embaciava no altar do desassossego. 
Dantes deixou de ser. 
Revejo as cores gastas
onde se consumiram as pétalas caídas. 
Já não sei dos demónios. 
Já não conto as palavras nervosas. 
Já risquei do mapa das intendências
os sequazes da aflição. 
Retiro à candeia
as sombras tumulares
os feitiços gravitacionais
que descosem a fazenda frágil. 
Não preciso de decorar nada. 
As mnemónicas da madurez
vieram tomar o lugar dos ornamentos
dando a simplicidade ao rosto
ao resto que está sob tutela do olhar. 
Às vezes penso
que a leitura da pele
em seu presságio de rugas
é a certidão que precisamos. 
O conto da velhice adiada
é um logro. 

#695

Escolhes a loucura porque queres
ou és refém de perguntas sem patrono?

20.8.18

Estirador

Curvo-me 
ao deleite das palavras
o santuário escondido
tutor da leveza dos atos
o leite que compõe o sortilégio.
Mais do que processual
é escolha navegando na intempérie
sem o sobressalto 
a tiracolo das intempéries.
Afasto o restolho
que turva o olhar.
Afasto os remédios fraudulentos
(e os outros também)
que não há maleita 
que por eles interceda.
Curvo-me ao deleite das palavras
no leito sufragado
em pose ostensiva, um desafio:
é santuário
tenho a certeza
pois guardo as plantas que desenhamos
em sua instrução.

#694

Conta-me a velocidade da luz
do emaranhado novelo do tempo
e eu converto no esquecimento.

19.8.18

#693

O osso sem poço,
encomenda resgatada
no diuturno pesar.

18.8.18

#692

A árvore centrípeta
chão do mundo
fértil.

17.8.18

#691

Banho-me
nas cores desta maré
à espera de redenção.

Continência

Digo
o sangue eflúvio
nos contrafortes da noite
espada sem mão
na contracapa de um rosto vadio. 

Digo
as milhas que separam do sono
volteios sacrificiais no rumor do ocaso
no idioma dos nascituros
contra a opulência dos lugares-comuns. 

Digo
o jogo sem regras
nos lençóis desarrumados
o lugar benzido por definição
em murmúrios gravados nas paredes. 

Digo
às luas promitentes
as estrofes malditas
as palavras renegadas
desenhando os olhares que se reprovam
no esboço singular da liberdade.

Dito de modo outro: 
bebo na bandeira alvorada
de cores incertas
o módico de mim mesmo
à espera da voz para tudo dizer
e nada ficar por ser dito.

16.8.18

S. A.

Constante teimosia
constante adiamento
sufrágio indolor:
fingimento. 
Merecimento pedido
merecimento em preces
o desenho da esperança:
miragem. 
Navegação ao acaso
navegação sem timoneiro
o mar vadio:
desafio. 
Entardecer sem rosto
entardecer tardio
tapete ornamentado:
contrato. 
Desejo ajuramentado
desejo sem palácio
suor do avesso:
poesia.

#690

O curto prazo
é um esconderijo
que castra o firmamento.

#689

No colo de páginas sem preço
onde se encantam palavras
costuradas no dorso da seda.

15.8.18

#688

Estarrecido
é um habitante de Estarreja?

#687

Estarrecido
o fantasma inquietava-se
com a luva fria
adejada por gente com rosto.

14.8.18

Silhueta

Que horas são?
Na baça luz
que emerge na penumbra
não sei dizer as horas que são.
Junto ao nevoeiro que esconde a noite
o desinteresse pelo tempo
e esqueço que há relógios.
Por fim
desconfio que a intemporalidade
não é um sonho
(como são os sonhos,
inacessíveis).

#686

O cofre fraco
algures na paisagem sem freio
alberga os sonhos amedrontados.

13.8.18

#685

Se seara é campo de cereais
por que se não escreve “ceara”?

Safra

Sei de mim
apesar das pontes sem meada
dos labirintos sem chave
e da neve que não cai no verão.

Sei de mim
no pináculo das horas centrípetas
onde arrumo o sol 
num lugar determinado ao acaso
na avulsa memória das páginas corroídas
em ilhas guardadas do olhar.

Sei de mim
no frémito da cultura
advertido para o santuário do conhecimento
paredes-meias com penhascos medonhos
grutas onde o frio amadurece
em palácios erguidos no fio de um nada.

Sei de mim.

E sei de mim
na ausência de sextante
na omissão da música
nas estrofes que desafiam a autenticidade;
sei de mim
no fervor do original
ditadura que em mim se sobrepõe
acreditando
que vale a pena acreditar.

12.8.18

Sucessivamente

As traves do dialeto
empréstimo sem juros
ou apenas 
janela que recebe
pétalas outonais
a neve promitente
no amparo de tapetes fundidos
ou apenas
bússolas diametrais
minaretes sem ouro
o corpo forte no secular comboio
o desejo pressagiado
nos interstícios da alma não esquecida
desde a funda recolha dos sedimentos
ou apenas
cartas irrisórias
tabuadas sem regras
preces sem religião a comandá-las
e um discreto sorriso jogado
nas varandas intemporais
de onde sobeja 
a cultura desvendada
ou então 
os dedos untados por defeitos
a mísera condição humana
o maior legado de divindades 
em garfos calmos
trazendo à boca o antídoto da letargia
jogando as contas fecundas
num caudal prolixo
ou então
a maresia sem mar por perto
apenas a inconfessável imaginação
em golpes furtivos
propostas de aprendizagem imorredoira
o anúncio não solene
da humildade com cobertura
o cheque visível do olhar descomprometido
escudo armado nos despojos de iras não datadas
resgatando do sol sua aura
semente vitória no abraço do tempo
ou então
a sensível lágrima por perto
rio galgando as margens
e atirando aos aluviões nutrientes esperados
o ditado sem palavras possíveis
na cama desarrumada
onde tiveram lugar
os sonhos de amanhã.

11.8.18

#684

Aqui,
onde a Europa
se precipita na Ásia.

(Istambul)

10.8.18

#683

Saciei a eternidade 
frémito devoluto 
espelho na sua totalidade
baço.

9.8.18

O imaculado impossível

O guia turística explica a virgem Maria,
a imaculada 
– sem pecado.
E entendo 
todas as insuficiências da espécie,
à partida
condenada ao seu malogro:
se a criação de cada espécime 
depende
de um ato cuja negação 
é a essência da pureza, 
da virgindade
de que exemplo é a imaculada de Maria,
ou Maria não representa a humanidade,
ou a humanidade,
que aprende a gostar de sexo às talhadas
como pressuposto da reprodução
(e, por consequência, 
das atividades extracurriculares),
é um erro de casting.

7.8.18

#682

Como pode
a mulher ser a serpente do homem
se o homem traz em si
a sua própria serpente?

(Depois de uma dança do ventre em Uhçisar, Turquia, com inspiração em Adão e Eva)

5.8.18

A pira das divindades

Num convés adormecido
os raios da manhã sussurram
versos sem atalaia. 
No miradouro esperado
duas estátuas sondam o dia
e os viandantes jogam no catálogo
as melhores cores justapostas
a corda justa ao corpo
antepondo o milagre a destempo. 
Os confettis chovem ao desembaraço 
enxugando os rostos suados:
sem asas por perto
ninguém consegue voar. 
Não é preciso. 
Levitam
como se houvessem açambarcado a pureza
e no púlpito de si mesmas
se imaginassem reis e rainhas. 
O espaço alvar
onde as lagoas aprendem o entardecer
na luz desmaiada que nelas se retrata
é o templo onde se engalanam
no repasto sem mandamentos
os que mandam nos areópagos. 
Já não conta a fuligem
deixada em escombros.