23.11.18

Paleontografia

Do resmungão muro
já não caiado
embotado pelas tatuagens que o afeiam
vociferam os palpites sem quarentena.

É o úbere da indecência
o manjar que repugna os retos
o saldo das prebendas
o sal cristalizado no pensamento em síntese.
Talvez as peugadas
sejam um achado sem freio
vertigem hasteada nas asas dos meãos
as horas ímpares dos incansáveis cultores.
Se ao menos houvesse 
a contradição
e do avesso sobejassem palavras hirtas
talvez os ultrajados
se reconciliassem com a indecência
e os prados desertos se enchessem de vestígios:
radiografias fossilizadas em esbatidas leiras.

As indecências perderiam a aura de indecência.

Ninguém o aceita o desiderato:
nem os decentes
(que perderiam a bússola de um combate,
habituados que estão 
a ser contra até o contra)
nem os indecentes
(que desprezariam 
a normalização da indecência).
É por isso
que a paleontologia se estabeleceu.

#813

Um fugitivo só é fugitivo
nas ameias de um labirinto.

22.11.18

Piano

Não é meu canto o piano
nem são as mãos
teclas brancas e pretas
que desenham uma melodia.
Não é meu, o canto.
O piano convoca minhas mãos;
fossem adestradas
e as notas sobrepostas
refugiadas no canto da memória,
em fermentação contínua,
resultariam em pauta diligente.
Mas não são minhas mãos
feitas para pianos.
Não sei da leitura de pautas.
Contento-me
com as teclas percutidas
as sonatas que substituem paisagens
as composições que remedeiam
os deuses sem lugar
contento-me
em ser ouvidor.
Sei, ao menos,
das melodias desenhadas
a rima precisa, prodigiosa,
para o sortilégio de um verso.

#812

Bandeiras dissolvidas
a terraplanagem metódica
segredo para a recusa da lassidão.

21.11.18

Sequência

O verso oblíquo
(talismã).

O verso emoldurado
(maresia).

O verso desembaraçado
(lunar).

O verso combustível
(miopia).

O verso enfarpelado
(circunstância).

O verso atónito
(neblina).

O verso empertigado
(beleza).

O verso farsante
(sacerdote).

O verso contumaz
(acrisolado).

O verso tangente
(diametral).

O verso festivo
(corsário).

O verso litania
(boquiaberto).

O verso tenaz
(lassidão).

O verso inacabado
(perfeição).

O verso síntese
(complexidade).

O verso estiolado
(decadência).

O verso luminoso
(matinal).

O verso quimera
(beijo).

O verso do avesso
(adverso).

O verso farol
(manutenção).

O verso imorredoiro
(tatuagem).

O verso nome
(amor).

O verso-verso
(amor).

#811

Refrão à mercê da chuva
colo desamordaçado
enfim, a viuvez da melancolia.

20.11.18

Sem sombra da vaidade

Na pira das vaidades
efervesce a cédula acostumada
o jeito a leito da exaltação 
que deifica o eu.

São assim 
os teatros não escritos
os profetas diligentes
os campeões sem taça
os verbetes ausentes de dicionários
os afluentes das garridas luzes compostas
os mastins que se mastigam
em emasculados marialvas.

Cedem-se espaços na rima estarola.
Se à noite se tirar o compasso
e da lua sobrar um eclipse
a soma confessa a vastidão de um nada,
atribulado cadafalso
para onde atirados são
rostos altivos mas à míngua de latitude. 

Não peçam à lua resguardo. 
Não peçam à noite esconderijo
(ou disfarce 
a pretexto de um vulto acanhado).
Se de alguma coisa sabemos,
após transigência dos mundos apalavrados,
é que ao lume irremediável
estão as vaidades condenadas.
E às sombras
nem um módico de vaidade 
acomete.

#810

É preciso entrar
no perímetro da loucura
para assisadas palavras encontrar?

19.11.18

#809

Tenho medo
do novo homem novo
que procede das cavernas.

O pecado do pecado

Poeira tóxica
instrumento de castração,
o pecado
que se abate sobre inocentes
a soldo de espirituais figuras.
Houvesse o decoro 
de não julgar
se não os pessoais cometimentos
e o pecado
seria conceito ensimesmado
privativo de cada um
– e não a faca pendente 
sobre a jugular dos outros,
pois são os outros
que sempre têm 
pecados a expirar.
Desconfio
dos que, diligentes,
sentenciam pecados alheios:
são os que não ousam
aceitar os seus próprios pecados.
Pois os males
vivem melhor
agarrados aos esqueletos dos outros.

#808

Tenho a impressão
que a saliva de Baco
chegava para derrotar Zeus.

18.11.18

#807

Doca seca:
redenção de outrora
ou remédio desembainhado?

17.11.18

Vazio

Paga a promessa
as mãos desimpedidas.

A quimera 
aninha-se no rosto
enfim prostrado.

Às vezes, 
a celebração encerra o vazio,
a recompensa liquidada
nos preparativos.

#806

Podia nascer
no bojo da lua
e descer no dorso da madrugada.

16.11.18

Asterisco

Um asterisco revolitava
nas laterais partes da página
e por mais que fosse a diligência
teimava em não se deixar apanhar.
Se ao menos lhe pusesse as mãos
e pudesse virá-lo do avesso
só para ver de que matéria era feito
ou se escondia
mensagem subliminar.
Mas o asterisco era viscoso 
– fazia lembrar as enguias
que só se apanham na mercê de um pano.
Ainda deixei que uma ideia insinuasse
que o asterisco é como a baunilha.
Não sei 
se era o sono a vencer-me
mas não consegui desemaranhar a metáfora:
ainda hoje
está por determinar
a causalidade entre um asterisco e a baunilha.

#805

Se “ao deus dará” for destinado
e em sendo meu o trunfo
decreto a extinção de deus.

#804

O navio solitário
arqueado sobre o mar
nele se acolhe como concha.

15.11.18

Ácido sulfúrico

Não me convencem
os conventuais mestres
em denodados arremedos
de superioridade. 
Dedico-lhes um par de versos
a sofrível condição seu pergaminho
e deixo ao restante,
os satisfatórios meandros por onde ando,
a compensação mais alta. 
Podem insistir
os profetas de um futuro
encaixado nos limites do seu nanismo. 
Não sei que trovas outras
hei de dedicar:
por mais que os apouquem
serão o selo vivo de sua relevância,
o que fica registado como transtorno.
Descobri o presságio:
finjo ser fiel seguidor de seus preceitos. 
Prossigo no fingimento:
minto com a força dos dedos mentirosos
e faço de conta
que pratico os monásticos princípios,
desandando com imensa desfaçatez
(e indelével prazer)
dos compêndios fixados.
E continuo a ser
navio amotinado,
sob o refúgio das sombras.
O riso farto em que me debato
é o sulfuroso ácido que verto,
às escondidas,
sobre tais risíveis personagens.

#803

A estibordo
onde o bom vento
se emulsiona.

14.11.18

Incomensurável

Dos juramentos hasteados
não tinha conhecimento. 
O baço nevoeiro pretérito 
travou o compêndio
e todo o cimento se estilhaçou
nos degraus atapetados a musgo. 
Não tinha do porvir
imagens fundadas.
Respirei fundo 
– como se estivesse à míngua
do enraizado, húmido húmus
do seu aroma acastelado
nas nuvens deitadas no chão. 
Amarelecido o corpo
não desisti das encomendas anotadas
em pergaminhos solenes
(aos que tinham 
a memória
como marca de água). 
Duvidei dos versos incompletos;
quis um tira-teimas,
pois incompletos pareciam sempre ser
todos os versos:
não era tempo para ontologia. 
Esquadrinhei as folhas gastas
perguntei aos ventos dominantes
insisti na serena hermenêutica da espécie,
sem dar o flanco às demandas escatológicas,
sem me perder nas complexas tardes
onde o pensamento, 
demorado,
especulava. 
O tempo amaciou-me. 
E nem assim
sei como se faz,
no que às lides diz respeito,
com o fantasma que adeja
com sua irrecusável espada
sobre o alpendre onde tudo é
imorredoiro tirocínio.

#802

O fiorde recortado, alcantilado,
a respiração anestesiada;
metáfora de uma vida vertiginosa.

13.11.18

Alvenaria

Tudo depende
das variáveis presas às bainhas
dos estamentos convertidos em lareira
das controvérsias emudecidas
das lógicas sem estirador por perto.

Tenho um saldo inequívoco
e joga a meu favor
(ou não fosse saldo).
Dos olhos estremunhados
de juízes anciãos
os cajados projetam-se à latitude vã
esperam as ovelhas tresmalhadas
em plenipotenciária deriva.
Desde as austrálias imaginadas
o mel da distância
e o rubor 
do tempo que chega sempre antes.

Houvesse um dado a mais no jogo
e podia exigir prebendas
literatura só aclamada
viagens de avião
as diferentes cores das peles
resguardadas numa garrafa deitada
à posteridade
em mares contíguos
em mares interiores
de onde
em interiores deambulações
desenhasse os Cárpatos elegantes
as cordilheiras a perder de vista
e o vinho-néctar por companhia.

Houvesse um dardo a mais no jogo
e a ética em reboliço seria meu algoz. 

Sobram as pedras de gelo
que se vertem em água derretida
e uma mão a amparar o copo:
às vezes
mergulhamos fundo
no fundo do copo
e deixamos o néctar-vinho
compor as estrofes.
Deixamo-las
compor os sonhos
que os próprios sonhos 
querem sonhados.

#801

Não tenho mãos a medir
nem como medir as mãos. 
(Serão largas, as mãos?)

12.11.18

#800

(Outra variante do #798)

O revivalismo é morrer.
O tempo saiu de cena.

Corpos

Corpos estirados
na improvável sagração da lua
e o epítome da volúpia
obedece aos clarins sinfónicos
que tiram das cadeiras prensadas
a boémia inspiração que os espera.
As mãos abertas
verticalmente apontando o céu
fazem uma OPA à claridade enxuta.
Não perguntem às mãos ousadas
sua intenção
que elas recusam os termos vagos
dos curadores das palavras reprimidas 
– recusam a insinceridade
os termos em que hipócritas testamentos 
são selados.
Se dessem palco às mãos 
delas se diria serem ousadamente anticlericais
um garfo espetado na córnea dos puristas
açambarcando o estômago onde,
ansioso,
medra o lúmpen da vontade.
As mãos continuam em silêncio.
Só precisam do silêncio
dessa medida constante que arrebata o verbo
sem penitência das palavras
depois arrependidas.
As mãos assim adestradas
não sabem da palavra arrependimento.
Entronizam-se nas corolas policromáticas
fundem-se com as flores abundantes
insinuam-se em gestos sem medo;
são, na sua mudez,
uma constelação de palavras
maior do que os dicionários por junto.
Não:
mãos com esta têmpera
não vomitam as rédeas cingidas
não transigem na imodesta audácia
não se deixam trespassar 
pelos sacerdotes de variegada sotaina
não capitulam 
– não capitulam.
No púlpito,
paisagem esplêndida
que se empresta ao recorte da luz,
os corpos entregam-se.
Ensaiam a sua própria coreografia
no veludo em que se deitam
dando de si as centelhas que rompem a noite.
À noite aquartelada
teatro onde a função toma lugar
na telúrica erupção dos corpos transidos
às talhadas saciando-se um no outro
sem o vulnerável véu da tempestividade.
Cobram direitos de autor
os corpos assim transgredidos
e emudecem se lhes pedirem palavras.
Não se sabe
o ADN destes corpos
a não ser a lava que os desenha
matéria inconfundível
servida no suor para combustão
saliva gourmet.
Não desejem a finitude dos corpos
desta destravada dança sem tempo
nos palácios por habitar
a cada estocada a que se entregam.
Não os deixem
decadentes.
Que essa é condição indesejada
negação da fruição para que foram congeminados.
Que não sejam penhores do depois de amanhã
enquanto houver um amanhã por decantar.

#799

(Variante do #798)

Os “velhos tempos”
em velhos sendo
estão embotados.

#798

Quem
se não um atávico
(ou um antiquário)
faz o louvor
dos “velhos tempos”?

11.11.18

Imparcial

Nomeio os medalhados,
personagens escrupulosas
tementes
“bons pais de família”
(para usar a arcana fórmula jurídica).

Não conspiro
nos interstícios das máscaras
que envergam:
a justeza da escolha assim impera.
Confeciono interrogação lateral:
se não ostentassem máscaras
seria capaz de justa escolha?
Não é tempo de elucubrações estéreis 
– sobreponho à interrogação,
deste modo considerada estéril 
(para os devidos efeitos).
A nomeação espera, 
em palco.
Vejo as atenções vertidas
em minha lúcida perícia.
Adio a perícia
Pois assim exige o cânone da lucidez.
Não era estéril
a elucubração demandada.
Imponho exercício epidérmico
(e não é para efeitos estatísticos):
mando levantar as máscaras
e desafio a imparcial perícia que me espera.

Ainda hoje
fiquei sem saber
a resposta.

#797

Prémio de consolação:
corre o sangue nas artérias calcinadas
da deposta intuição.

10.11.18

#796

O magro pecúlio
património bastante
no bodo dos humildes.