4.3.19

Conjugação

Todos os verbos
são poucos na maré diuturna
no pressentimento do passado
nas bocas sedentas dos apóstatas.

Todas as formas congruentes
as rimas improcedentes
os solavancos das noites versadas
os antagonistas sem rival
todas são escassas
na lua embaciada. 

Todos os dedos
são poucas estrofes
no vagar do outono
nas janelas debruçadas sobre o rio
nas intempéries que não se intimidam
todos os refrões
são matéria gasta.

Todos os medos
são poucos na vertigem dos ousados
no penhor da lucidez
nas tílias que dão extensão à avenida
no idioma prévio
nas fotografias a preto e branco
que emolduram marinheiros desembarcados. 

Todos os cedos
são poucos no caldeirão de maestros
no ritmo das sílabas docemente soletradas
sem a recusa do devir
no antepassado irrepetível
da palavra incansável 
contra o dogma do silêncio.

#947

Estão no etecetera
as entrelinhas 
que confere desembaçar.

3.3.19

Clepsidra

Dizem: 
temos de escrever o futuro;
somos infecundos 
se o passado preterirmos. 
Eu digo: 
temos de ser notários do presente. 
Dos dedos, 
soerguem-se as estrofes 
que o hoje veneram. 
O único rosto do tempo 
de que temos oráculo. 
As pálpebras não emaranhadas 
na amálgama dos tempos fantasmas.

#946

Nos areópagos circenses
não se esgota o capital da ridicularia
(essa moeda em alta).

2.3.19

#945

Terçam-se tesouras
sobre as palavras malditas 
– e o que são palavras malditas?

1.3.19

#944

Catch up.
Ketchup.
(E por aí fora…)

Trincheira

Faço desta fragilidade
a trincheira sem preço
a dogmática perseverança do meio
estilístico arrebatamento do sentir. 
Ouso congeminar as sílabas
em articulação metodicamente desordenada
contra os areópagos das regras
os deuses encerrados em suas Babel
os ministros das alocuções impecáveis;
não sou a pele 
em que tatuam seus imperativos.
Prefiro 
as arcadas da loucura
ou o vitupério da misantropia
ao sacrifício da vontade que irradia 
do meu sangue. 
Prefiro 
ser vulcão
temido por sua mortífera têmpera,
prefiro ser, até, pária
contra o movimento repetido 
que desenha os dias iguais
contra a caligrafia estetizada 
dos vultos perenes. 
Prefiro 
estar na trincheira sem preço
por mais que ninguém a queira para refúgio. 
Nem que a tomem por pútrido lugar. 
Nem que clamem ser caverna sem retorno,
a estepe infecunda de que se alega
ser o convénio da esterilidade.
Prefiro.

#943

Marido rima com partido.
Às vezes bom
outras vezes mau.

#942

Trespasso os lamentos
de olhos fechados,
minha tão grande fragilidade.

28.2.19

Destempo

Enganei-me na data.
Era o ontem vertido no amanhã
ainda cedo
mas talvez já tarde.
Aprisionado neste labirinto
não sabia das cores emaciadas da manhã
e subi ao promontório mais perto
em sinal de refúgio.
Fiquei a contemplar o mar
que 
(oh, lugar-comum)
parecia não ter fim.
Por mais que perguntasse aos marinheiros
era provável que não ouvissem
tão longe estavam.
Berrei o quanto pude.
Compreendi
que estava a berrar comigo mesmo
refém da abjuração a que me entreguei
por entre a capitulação da voz
o arremedo dos verbos
e desatenção sacrílega.
Perguntei ao céu que data era esta.
Podia ser
que não estivesse a destempo.

#941

(Ao Neto de Moura)
Como o hábito não faz o monge
a toga conspurca o juiz.

27.2.19

Diplomacia

A abóbada estreita
onde se esconde o verbo contundente
amacia a fala em espera.

Assim se tece a diplomacia
(dizem).

Gárgulas sem musgo
na vizinhança de ciprestes sumptuosos
acolhem as entrelinhas
e o silêncio cava entre os sentidos.

Do amianto desembaraçado
contra as catástrofes pressentidas
voluntários esbracejam a harmonia.

E o verbo contundente
fica mais uma vez em espera.

#940

Quando o céu morrer
para onde vão as almas
a ele encomendadas?

26.2.19

#939

O arrependimento,
o boomerang da tibieza.

Provérbio

Arregaço as mangas
e desço a corrente do rio
torno-me mais veloz do que as pedras
desamparado do medo contumaz
ajeitando o suor da melena
enquanto o sol cambaleia no torpor
e as rimas se esgotam 
na acidez das palavras.

Componho os verbos irregulares
na proeza indómita do silêncio
e as árvores agitam-se no vento nulo
amedrontam-se com as nuvens plúmbeas
e os espantalhos inertes
vultos estiolados na temperada planície
capatazes da absurda lógica que penteia
o pensamento,
ilógico 
desde que deixou de ser órfão.

Anteponho o entardecer à vontade
entre os parapeitos deslustrados
folhas caducas que amarelecem no ocaso
vozes murmuradas no epílogo de sonhos
a comiseração estéril de viúvas cansadas
e digo, 
o mais alto que posso,
que ambicionava a eternidade
a espada das divindades imorredoiras.

Passa a lua por entre a luz timorata
e dela esgaça um feixe entre as nuvens finas
o provérbio escolástico estilhaça sob as mãos
e deixo que o sono se estenda na insónia
enquanto os vultos açambarcam o tempo
e deles sou algoz, 
incompassivo,
agente secreto da perenidade do tempo,
dos tempos.

Não vejo que medida caiba em mim
antes que a manhã tome conta dos cardeais
antes que sobejem as bússolas gastas
despojadas no chão molhado pela maresia
e eu, 
orvalho diletante,
unte as costas do dia com a proverbial destreza
dos aprendizes do nada.

#938

Deste cimento
que deste às mãos
o Leste mais Leste a que se deitaram.

25.2.19

O seu reino pela estética

O pente está gasto.
Cansado, ou gasto,
não sabe bem.
O espelho,
por igual.
Gasto pela demora
da silhueta que se fita
demoradamente
em arranjos melódicos
da beleza rarefeita.
E o cabelo ralo, frágil,
um arremedo do que foi outrora
(diz ao espelho).
Cansada,
a beleza.
Diz:
“prova-me que estou errado.
Prova!”
Não se sabe 
a quem se dirige o repto.
Será ao espelho?
Não se é de fábulas
e dos espelhos não se espere
fala.
Será de alguém
adornando seus limítrofes
e, contudo,
não representado no quadro,
fora do olhar do espelho?
Não é possível saber:
fora de cena
como se não pertencesse ao palco
esse possível alguém
não tem voz.
Como o espelho.
Como não tem voz
a beleza 
alinhavada na teimosia
(ou não,
apenas a beleza). 

#937

Pode ser como o gato furtivo
a bainha acrisolada
dos dias tenentes.

24.2.19

Notícia

Subo às janelas imperativas.
Desminto-as
no travejamento das molduras
intencional dolo dos inocentes.

O gargalo da garrafa
aspira o vendaval agalopado
honesto paladino das cicatrizes fundas
no pristino olhar desembaraçado.

Não soube dar cimento à alma
e ela tornou-se fortaleza;
ilha aberta aos forasteiros.

#936

A convulsão temperada
ira substancialmente obnubilada
na convocatória da indiferença.

23.2.19

#935

Quem tem o polígrafo? 
– pergunta feita
ao sono imperfeito do síndico.

22.2.19

Torçam os números até eles falarem o que querem

As contas não estão erradas;
é a matemática que não dá o desconto,
este alçapão escondido
que apanha à falsa-fé. 
Não espera pela demora,
a matemática:
hei de consultar os deuses sem paradeiro
perguntar se o inventor da matemática
não era um perjuro.
Terei a certeza que os deuses
apesar de não terem paradeiro conhecido
hão de responder à chamada.
Flibusteiros
são os conservadores da matemática
(conservador, como o que conserva)
e não há maneira de os enviar para o formol
onde deviam repousar há décadas.
Tenho a certeza:
os deuses acompanhar-me-ão nesta demanda
e dirão
se preciso for 
(na batuta da minha vontade)
que trinta e quatro vezes cinco 
dá cento e oitenta
(inflacionando a matemática,
o que, em vendo bem o fruir das coisas,
tanto pode ser boa notícia 
– no caso dos réditos – 
como má nova – 
seremos mais velhos antes do tempo).

#934

(Poemas transientes,
somados na espada do trânsito da cidade.)

#933

Não é o abismo que me inquieta. 
É a planície interminável
que afivela a hibernação.

#932

O peito a dor murava
e a angústia já não morava.

21.2.19

Corda bamba

São estas 
as lantejoulas que interessam
o verniz descarnado
no aparato,
inconsequente e escondido,
de um vapor indelével 
em aspiração a ser ar saudável.

Faço do escárnio jogo privado
em ensaios mais ou menos pueris
só para provar que não movo as pálpebras
e nem nos sonhos insondáveis
ambiciono ser torcionário de ninguém.
Prefiro-me
estouvado sem loucura ostensiva
capitão de navios sem mar
trovador sem causa aparente
ministro-sem-pasta
(ou melhor: ter pasta sem ser ministro)
escansão das emoções desejadas
em imersão profunda 
sobre o fundo mais fundo de mim mesmo.

Se me dizem
que a maldade é inata
o estado estrutural da humanidade
o recomeço das artes transgredidas
o insalubre convite à desonra,
tendo a concordar;
não sem antes objetar
(sem ser confissão da atividade)
que não seremos eremitas da congregação
nem através dela somos autorizados
à impiedade fria, cruel 
– o que não significa
que não predomine o nosso antónimo.

Prefiro 
contemplar as lantejoulas privadas
as que se escondem na nostalgia do olhar
enquanto vejo desfilar
lá fora
os arquitetos de obra estilhaçada
os polícias dos costumes
os obnóxios torturadores de leis aceitáveis
extravios de uma linhagem exaurida.

#931

A opulência 
das magnólias desabotoadas,
o oráculo fidedigno da primavera.

20.2.19

Telegrama

Ensaiamos. 
Montamos o palco. 
Tabulamos a pose. 
Desenhamos falas. 
Pausas. 
No meio de pausas. 
Articulamos os sentidos,
ao início, irregulares. 
Colhemos as pétalas.
De uma flor generosamente dada. 
Fingimos o sono. 
Abrimos o labirinto do medo. 
Uma constelação.
Um feixe de luzes que estilhaça a lucidez. 
Dormimos, afinal. 
Uma coreografia malsã.
Aos pares, na confusão da matilha. 
Escrupulosamente desorganizados.
Sem voz de comando. 
Ensaiamos. 
Pode ser que seja 
sobre o fingimento de um fingimento. 
Ou a cortina pesada que se arqueia
sobre os olhos. 
Hesitamos. 
Capitulamos?
Não, apenas hesitamos.
Devolvemos o sal vítreo.
Combinamos jantares.
As falas seguidas.
As falas.
Seguidas.
Ensaiamos.
Por enquanto.

#930

O prodigioso invencível
contrabandeia a ilusão de si mesmo.

19.2.19

Contíguo

Não é por acaso
que sinto a areia lisa
no recobro da maré cheia.
Confeciono os limites para trespassar
a acrobacia estouvada dos dias sucessivos
e deixo no logradouro
os vestígios da imagem em decadência 
– fujo da imagem em decadência.
No dealbar da noite
transigem os demónios 
à medida que avanço no labirinto.
Não sinto a dor.
Não sinto o pavor
das paredes que se estreitam
estafetas de um vazio ensurdecedor
com a conivência de um teto que se abate
sob o prumo da água que aprisiona o chão.
Não é por acaso
que deserto da lisa areia
e do sono empenhado:
a vastidão da planície
na indiferença da paisagem
costura o silêncio imperativo;
à míngua de palavras
sinto a boca secar no jazigo da impaciência.
Dantes,
quando as praças eram só praças
e os jardins albergavam botânica,
não sabia do paradeiro de outras complexidades.
Hoje
empenho-me na infecunda inquietação 
em comboios desordenados 
que não freiam o sentido
e nos apeadeiros ao acaso
amadureço o reduto da paciência
a comiseração em que me autocontemplo
anestesiado das dores 
que de mim fizerem aeroporto
insensível aos cometimentos ao mundo lá fora.
Se ao menos pudesse 
encantar uma serpente
hibernar da hibernação no limiar do precipício
cinzelar o meu nome numa pedra anónima
e dizer
a quem quisesse ouvir
ele há tantos embustes à roda do mundo
que mais vale sermos plenos tutores
do sereno esmaecer para que todos vamos.