6.6.19

#1073

Considerar a obra-prima
é discriminar as tias.
(Heresia!
clama-se na Quinta da Marinha.)

#1072

Os ecos são o mandato
do verso transfigurado.

5.6.19

Italianização

Precisamos
de uma certa italianização 
– consagrar o mascarpone 
em vez do queijo da serra
o limoncelo
em vez do licor Beirão
as beringelas
em vez dos nabos
até o Dante (apesar de tudo)
em vez do Herculano.
Precisamos
de uma injeção de esbracejares
em vez da introspeção misantropa
de palavras salivadas em todas as suas sílabas
em vez do mutismo das palavras pela metade
do ruído de todos que falam
(até que seja uns por cima dos outros)
em vez do velório circunspeto
de música festiva
em vez do fado
da metódica desorganização
em vez da organização do caos
do sangue em perene ebulição
em vez da mansidão capitular
do apetite pelo amanhã
em vez do ab-rogante empenhar no outrora.
Precisamos
de um módico de latinidade
em vez destas nem-meias-tintas
em que de latinos 
puxamos o gatilho sem o sermos
e nem nórdicos nos assumimos
(por divergência geográfica).
Precisamos de Ferrari
na vez de D. Sebastião.

#1071

“Colateral”, murmurava o soldado
no raso raciocínio 
da metralhadora exuberante.

#1070

A erosão açambarca a enseada
no lento vagar das rochas
ao império do mar.

4.6.19

Estrelas & vulcões

As estrelas existem
para serem implodidas. 
As estrelas precisam
de sua implosão. 
Nascem
com o mesmo fado dos vulcões?
Os vulcões
adormecidos uns
outros num frémito agitado
esperam a data não preanunciada
da sua explosão. 
E todavia
estrelas e vulcões
não são antinomia:
em sua implosão
as estrelas constituem-se
matéria-prima de vulcões
e os vulcões eructam
milhares de constelações de estrelas
devolvendo-as ao seu mapa ancestral.

#1069

Estava para dizer
panóplia ou miríade,
mas tanta fecundidade povoou
a indeterminação.

3.6.19

Compêndio abreviado da boémia

Sabendo dos preparativos para a boémia
encomendou-se à prosápia do hedonismo
e se lhe dissessem que era amanhã o apocalipse
o sono não seria menos confortável. 
Aprendeu a fazer continência ao hoje
que nunca se sabe dos humores do devir
nem dos contratempos sem lugar na agenda. 
Este era o portfólio que o precedia
e ele não tirava pestanas ao sono
para sequer supor
a fama que lhe sucedia
nas lágrimas férteis vertidas 
no equinócio do futuro. 
Do pouco que dizia saber
atestava a volubilidade das camadas do tempo,
a sua própria imaterialidade. 
Se assim era
que utilidade tinha tentar ser tutor
de uma qualquer dimensão do tempo
se o tempo,
translúcido,
foge entre os dedos firmes de todas as mãos?

#1068

Esbracejo nos escombros
e sei que tenho por meu
o mapa desembaraçado de convulsões.

2.6.19

#1067

Nos olhos da baleia em cativeiro
a fundura do agradecimento
de não ter sido extinta.

1.6.19

#1066

Qual é a medida certa
se ficámos sem instrumentos de medição?

30.5.19

Perfunctório

Um obséquio de intermezzo
no espaço de dois dedos oculares
na fala das velhas verrinosas
só pelo prazer de ver agonizar a agonia
atrás das cortinas ainda subidas
sem atores ouvindo o palco.
Nada se desdenha. 
Nada é compreensível além da alvorada
o notário que avaliza as trevas não medonhas
contra as patranhas dos miseráveis
e as sinuosas curvas dos mitómanos. 
Agita-se o mar cheio
no cais salgado pelas palavras avulsas
e os rapazes erráticos dão-se a saber
no promontório da sua belicosa boémia. 
Não deixariam minguem dormir,
os rapazes da belicosa boémia,
não fossem as janelas duplas
e os medicamentos que afiançam o sono. 
Pela manhã
é a vez da vingança não intencional
dos mangas-arregaçadas
os incorrigíveis senhores solenes
que são eles e a jornada laboral 
e a jornada laboral e eles. 
No fundo do lago
esperam os nenúfares decadentes:
só não se sabe
quem vem colher pela mão
a decadência que assim jaz. 
A advertência não é frívola. 
Às ateneias emagrecidas
são devolvidas as estrofes do silêncio
a incomensurável sede das flores nutridas
os prefácios tirados à pressão
o marasmo disfarçado de açoteia
o glóbulo vermelho em falta. 
Ah!
se ao menos soubesse assobiar
era tenor da sinfonia agraciada
e de comenda estaria em lista de espera. 
Salva-me
a modéstia do assobio.

#1065

O velho andrajoso 
responde ao empregado do balcão
que tem tempo para morrer. 
Nunca vi o assunto por este ângulo.

#1064

Que santuário amanheceu
no busto que é o nosso
berço?

29.5.19

Circunstância

Esta é a circunstância
o jogo sem regras tangentes
o misterioso leque das donzelas
o miado arrastado do gato sonolento
as sílabas dedilhadas com a voz embaraçada. 

No pódio dos iconoclastas
passeiam-se espelhos estilhaçados
a verve penteada pela facúndia
dos donos do melhor ensimesmar
vultos perenes da grandiosidade de si mesmos. 

Os bustos ufanos
emprestam-se à pose
quase a serem acabados em estátuas
o selo imorredoiro da sua imortalidade
sem se darem conta
que bustos sem a parte restante dos corpos
não chegam para meio homem. 

Embelezam-se os coldres
em destemperados sonos sem noite
no rodapé de vidas sem palavras
alisando a loucura estulta
dos homens reféns de si mesmos. 

Não se cobram promessas
nem recentes 
nem antigas já esquecidas
em reviravoltas dos verbos
gananciosamente recrutados na geografia dos coagidos. 

E na noite tentacular
quando se congemina o palco dos sonhos
sufragam-se pesadelos acorrentados
as miragens que embaciam o olhar
e desadulteram a gramática da existência.

#1063

A cientista tranquiliza-nos:
o plástico em si não faz mal a ninguém. 
Faltou explicar
se o plástico sem dó é indolor.

#1062

O álbum de família
a pedra angular.

28.5.19

Adeus ao adeus

Diz o adeus
que a deus não torna
o irremediável selo sem juro
na jura que se desfaz na despedida. 

Diz o adeus
que adeus dizer
tem preço incomensurável
e se de deus se diz ser imaterial
o adeus dizer 
é bem escasso
passível de sopeso. 

O adeus diz-se no ocaso
e não se sabe
se dito ao acaso
do adeus se devolve o seu finito
e se diz do adeus
seu último capítulo. 

Melhor será
deixar o adeus em paz
que não se interrompe o devir
com opúsculos sobre o incerto
e assim desdizer de cada vez
que ao adeus alguém se encomendar.

#1061

Em tempos de estiagem
o manda-chuva é dádiva.

27.5.19

Composição frenética

Atiro o corpo cansado
às serranias imersas no nevoeiro.

Ouço os caudais estrepitosos.
À passagem dos pés
a folhagem seca, outonal,
crepita.
Prossigo.
O corpo ensopado
desafia os pesares.
Luta contra a sua própria carne
as veias crestadas no vulcão da dor.

Ou pode não ser nada disto:
será
o olhar fecundo
que rompe a neblina que é horizonte
e entretece as faias floridas
o azevinho generoso
a alfazema aromática
o tojo moderadamente colorido
as árvores que seguem a coreografia do vento
os recortes das cumeadas
o desenho árduo da serrania composta
e os vales que se colhem com uma mão
no corpo levitado na ascese imprecisa.

Não sei do caminho.
Não sei onde estou.

E talvez saiba tudo o que importa
na tela profusa que o olhar compõe
sem vivalma por perto
na solidão heurística
um húmus 
onde o pensamento encontra guarida
e rejuvenesce no dorso da extenuação
os violinos sem intérprete
soletrando as arestas dos versos.

Sinto a maré-viva que não contenho
como erupção da lava irreprimível
o fértil nutriente das paisagens recortadas
que outorgo à geografia dos corpos.
E alinho as estrelas no firmamento
repostas com os meus dedos quiméricos
no bálsamo inteiro
servido 
em pequenos copos coloridos.

#1060

Em hábitos de alvura
as freirinhas
como noivas de deus.

#1059

Marcar passo
no esquadro do hemisfério
enquanto a alvorada se anuncia.

26.5.19

Decibéis e parêntesis

O decibel da torre de marfim
ecoa no pavilhão auditivo.
Ecoa e ecoa,
persistente,
em reverberações que doem
a cada percussão que, 
funda, 
se aloja.
Podia-se meter um parêntesis na audição
e o decibel da torre de marfim
ao mar morto era devolvido;
mas, 
pelos tempos que são estes,
estão dispendiosos
os parêntesis para qualquer uso
e o decibel da torre de marfim
não tem a estridência
que a primeira audição augura.
Poupados os recursos,
outros, 
mais prementes, 
desideratos
encontram-se em fila de espera.

(E à espera de desenredados serem
da teia de incógnitas 
que adeja sobre o dia madraço.)

25.5.19

#1058

Consagrado.
(Sotaque do norte:)
Cão sagrado.

24.5.19

Slowing down

Queria ser pária,
a noite do dia
a contravenção das regras
braçadas ao contrário da maré
dissidente até das dissidências
contumaz de todas as regras
a negação das negações
na positivação sublime.

Queria ser pária
mas não era habilitado:
contorcia-se no pensamento insubmisso
mas era um coral admirável
frequentado por multicolores peixes
em águas tépidas
e nadadores amadores enfeitiçados
pela exótica geografia.

Um dia, 
desistiu.
Pária não conseguia ser,
ou não reconheciam a condição,
e abandonou-se nas margens infrequentadas
onde são consumíveis
as baratas ideias sem pretensões.

Entendeu
nessa altura
sem melancolia à mistura
que estava fadado à madurez.

#1057

Estão abertas as candidaturas
para historiadores do futuro.

#1056

Deviam à fábrica desaguar
os iminentes eminentes
a suplicar um banho de cultura.

23.5.19

#1055

Não era um estudo seminal.
Era um engasgo pretensioso.

Corsário histórico

Corsário sem mar
assobia os olhos cansados
na reforma que o deixa exangue.
Já não assalta navios
nem ensimesma a vanglória 
de ser senhor dos mares.
Deixou-se de aventuras protuberantes
sarcófagos inelutáveis
baías escondidas atrás dos mapas.
Deixou de ser demónio alheio
nas orações lisamente entoadas
e nas juras aos divinos estamentos
sobre 
arrependimento
e redenção.
Agora procura indulgências
na cordilheira que é seu verbo.
O corsário desencartado
é a humilhação da classe.
O corsário
já não se lembra que foi corsário.
De manhã
quando se habitua à luz clara
diz de si mesmo
que é alguém em esboço.
Alguém 
à espera de ser anunciado.

#1054

O rei vai nu
mas ninguém quer ver.
(E não é por pudicícia.)