12.8.19

Desembaraço

Espero na passagem de nível.
O pólen adeja sobre quem espera
numa leveza que parece feita
de flocos de neve.

Ouço um tonitruar.

Não são as carruagens
em seu metálico cavalgar.
Podia ser um trovão;
o céu intensamente azul
aconselha a não considerar a hipótese.
Podia ser alguém
impaciente pela espera, 
vociferando.
Podia ser o rumorejo de uma romaria
não distante.
Podia ser um marujo
em seu pranto de desamores.

Não tenho pressa.
Um diamante em bruto
está de atalaia em casa
e eu sei que sou feito de ouro
por saber que está no pedestal
de que sou curador.

O comboio demora-se.
Não tenho pressa
pode demorar o tempo que for.
Já soube de vésperas passadas
que a impaciência é improfícua insurgência 
o mal tenteado esboço de um nada.

Não cheguei a saber
a que sabia aquele estampido.
Não interessa:
existe um lugar
com as palavras à minha espera.

#1150

À consideração superior:
o trato cortês
que a boçalidade não combina
com tamanhos pergaminhos.

11.8.19

Inquérito à História

Quantas vezes
a História não é mais
do que o rimmeldos acontecimentos?
Os homens mentem
e com as suas mentiras
mente a História que conta.
Ficamos reféns de uma História
que não sabemos ser mitómana?
Será 
a ausência da História
critério melhor?
Será 
a História confiável
se não sabemos 
se ela vem lacrada
pelo selo de quem a traz 
em intencional papel 
de arquiteto do acontecido?
Não se diga
que devemos virar o rosto à História
que uma parte da identidade 
exige da História conhecimento.
A Filosofia sobrepõe-se 
ao enquistado dos historiadores
às imperativas verdades 
à prova de interrogação:
nada está a coberto 
das interrogações heurísticas
nem a História cimentada 
pelos dedos de artesãos 
não se sabe se mal-intencionados.

10.8.19

#1149

A chave 
desfia a farsa
sob a sentinela do vento.

9.8.19

Consternação desenfreada

Alguém disse,
em jeito de alarmada advertência: 
tiraram as pestanas ao algoritmo. 
Subiram as lágrimas 
talvez furtivas 
aos calcanhares dos bispos 
e os clérigos afocinharam os cotovelos
nas praças vazias. 
Uma equação 
bateu com o focinho no emparedado 
quando soube da avaria do algoritmo. 
Nesse dia 
fez-se constar
que os matemáticos estavam distraídos
(talvez
em conciliábulo com o clero) 
e não puderam sondar
a roda dentada onde se dissolve 
o peito sem mágoa. 
Se ao menos 
pudessem os dedos cantar; 
seria a música a figura de estilo 
dos contumazes? 
Enquanto o algoritmo
continua em paradeiro incerto 
as páginas enchem-se de especulações. 
Tomara que os matemáticos 
voltem a marcar terreno, 
assim como fazem os gatos com cio.

#1148

É deste lugar que me chama
a chama no fulgor dos olhos
e o teu nome, 
sempre aceso.

8.8.19

Conta corrente

No bolso
guardo minha sentinela
em vez do temporal em febril tumulto.
Soube de Eros
e passei a saber de mim
no estorno embuçado em estrofes viris
só para resolver pendências 
com a hermenêutica correta.
Não houve alarme a soar:
deixo a soberba para as capas mesquinhas
onde se deificam
pequenos estilísticos de auto-imaginada
grandeza.
A minha sentinela
resguardada no bolso escondido
conta-me histórias.
Não procuro incarnar as histórias
e muito menos
as personagens que a elas pertencem.
As vozes telúricas
compostas nas caves que se pressentem no chão
estão a contar com as histórias contadas.

#1147

O discípulo
nunca deixa
as fraldas.

7.8.19

Destacamento

Não é nesta roleta russa
que se despenha o corpo.
O sonho sentado
é a tela sem fundo
o fumo à procura de tomada
o tingido rosto faminto,
um paradeiro incerto.
Podia ser apenas
uma montanha
russa,
sinónimo de menor ousadia.
Mas
quem precisa de altos voos
se é no chão enraizado
que filia a segurança?
Assim como assim,
roleta russa:
às minhas mãos
nunca vieram as rugas de um revólver.

#1146

Baixo relevo
orografia do corpo teu,
o mapa que habito.

6.8.19

#1145

Os olhos
(que)
não dizem
nada.

Instalação

Fora de horas
ajeito o cabelo na rima da maresia
e dou às vezes sem vez
sua oportunidade. 
O forasteiro desejo não se esconde
do palco sem inventário
e sei 
que entre o dia e a noite
se sufragam os sonhos nem sempre malditos
as luzes desembaciadas
o insólito murmúrio do vento desamparado. 

É fora de horas
que me sinto,
muitas vezes. 

Não significa 
que esteja a destempo
ou
que no mistério dos calendários
seja destemperada medida. 

As sílabas amontoam-se 
contra os pesares inúteis. 

Desenganem-se
os cultores da comiseração,
que aqui não têm praça:
a última coisa que seria admitida em ata
era a gratuita dor em forma de sangue vertido
o justo convocar do eterno,
o mirífico
inacessível.

Ninguém definiu
que os sonhos eram proibidos. 

#1144

O rastreio da lucidez
desmente
a memória de si mesmo.

5.8.19

#1143

Não morremos
no estampado verbo nosso,
imorredoiro.

Nomenclatura

Calmamente
endosso o dia restante
ao perentório exacerbar da mudez:

há alturas
em que o silêncio 
é a melhor poesia. 

Sem os archotes da sensatez,
diz-se por aí,
os atos são a tresleitura de seus patriarcas
e não é de estranhar
que sucumbam em suas interiores armadilhas. 

Calmamente
recuso o cintado manual da sensatez. 

Sinto
(e concedo que posso não estar enganado)
que fui vítima da sensatez,
várias vezes,
da minha e da de outros. 

Chamo as ferramentas ao meu uso. 
Tenho de afrouxar
os parafusos da sensatez,
à espera que jazam 
espalhados
e sem remédio.

#1142

Disse saber
com que linhas se cozer.
Não sabia 
que usara gastronómico verbo.

#1141

A mão estrangeira
no árido mapa sem rosto
incendeia as bandeiras insubmissas.

4.8.19

Jam session

Deixamos para depois de amanhã
e no rosto do improviso
arranjamos a morada no raiar do sol.
Poderá ser a morada esperada
para palavras sem paradeiro
e diremos de nossa empreitada
ser o jovial acordar de uma noite meã.
Terçamos as palavras ao acaso
só para ver o desfile de frases,
o que têm para nos dizer.
Não guardamos o produto.
A sua solenidade convoca a memória.

3.8.19

#1140

Vassalo ou vândalo
mas não necessariamente
por esta ordem.

2.8.19

Noite fugida

Curto-circuito na noite. 

As trevas capitularam
indefesas 
perante a bucólica luz 
em erupção. 

Não havia ninguém para ser
zelador da noite.

Quase órfã
esticou-se ao comprido
no silêncio pedido de comiseração. 
Os boémios não estavam atentos

(viviam a noite por dentro da noite,
não deram conta do seu esgotamento)

e os demais estavam reféns do sono,
não podiam acautelar as dores da noite. 

Alguém pressentiu
que a insólita luminosidade
era a vaga a que tinha admitida
a noite branca,
já não exclusiva de paragens nórdicas

Também estavam possuídos pela quimera:
mal o verão se foi consumindo
em sua outonal decadência,
logo a noite recuperou o seu viço. 

Já era outono
quando alguém interpelou a noite
querendo prestação de contas
pelas tristes figuras
quando a noite covardemente pedira
comiseração. 

Desviou a conversa,
a noite,
sem coragem 
para admitir as suas fragilidades.

#1139

Não condeno nada
a não ser
as condenações dos outros.

1.8.19

A chave do labirinto

Como se tratasse
de uma belle époque
a vindima rigorosa dos meus esteios
e em casta selecionada
estivesse de vigia
no promontório de onde assento as medidas.
O apuro dirá se foi merecido
o dia em pródiga demanda.
Alturas há
em que deixo ao de fora de mim
o juízo razoável.

#1138

À consideração dos eruditos:
sentar na pedra angular
não será 
a mais confortável das empreitadas.

31.7.19

Charlatães que oferecem apocalipses em saldo

De acordo com as profecias
amanhã 
é outro dia.

Quem diria?

Nostradamus de fino recorte
escaldaram neurónios a ditar o apocalipse
e o dito anda a ser procrastinado 
– quem comete tamanha aleivosia?

Caso para predizer:
o maldito apocalipse 
é poltrão 
– e não é alegoria.

Ou
pode dar-se o caso
de serem charlatães aqueles Nostradamus
ou profetas de trazer por casa
que não passam de fancaria.

Pelo caminho
os amanhãs destrunfam
os Nostradamus desencartados
(quem mais o faria?).

#1137

Valetes que se fazem passar por reis.
(Não aprenderam nada
quando eram peões.)

30.7.19

#1136

Massamá
foi terra de massa má,
ou contingência de má toponímia?

Recreio

A muralha das pedras macias:
compõe-se a gramática
na véspera da véspera
onde se enfeiram os dias de verão. 
Este é o bicéfalo pesar
uma cortina esfarrapada
que não esconde os lamentos
e se antepõe aos apodrecidos recônditos
onde se podia envergonhar a alma
e vomitar a dissidia. 
Contudo,
é uma banda desenhada,
pueril como são as bandas desenhadas,
que missiona os cândidos sepulcros
onde a palavra se esconde de sua nudez. 
O chão amarelecido
não é um tapete vetusto
venal condição dos senescentes,
desenganados de profecias sem verbo. 
Na maré que está
as varinas emudecem-se
e nem as sereias
(acaso as houvesse)
seriam contempladas com um ciciar.
Por dentro da letargia
as muralhas não apodrecem
nos dedos das teias de aranha. 
No interior de suas paredes,
amurado,
o pressentimento da véspera da véspera
quando as crianças pródigas riem sem parar
e ficam a saber
não antes do tempo
que quando crescerem serão menos risonhas.
Não lhes levará o sono 
para paradeiro sem morada,
a revelação:
entretidas com a boémia
encomendam ao contumaz porvir
essas dores que terão 
então
direito de admissão.

#1135

Não é contar espingardas
que interessa;
é dá-las para abate.

29.7.19

Combustão

Ferve
o sangue
já quente.

As veias em combustão
não inquietam
o sangue estuoso.

Possivelmente
a imagem do vulcão
põe-se a jeito.

Em recusa do óbvio
nega-se vencimento
à imagem do vulcão.

O sangue
em ebulição
não precisa de cotejo.

Parece que precisa
apenas
de irromper em gritos
protestos algures
à escolha de matrizes 
amaldiçoadas,
larvares.

Lá que ferve
o sangue
as combustíveis veias
não desmentem.

Talvez amanhã
no parapeito da vontade
resgatada
as veias arrefeçam
e o sangue se acalme.

#1134

O teu corpo
é o meu opiário.