27.7.20

#1675

[Crónicas do vírus, CCLXVI]

 

Num biombo

como um blindado

contra os outros.

26.7.20

Assinatura

O calendário

resgata dos anais

o vigésimo nono ano 

de licenciatura.

Não sei por que guardo

efemérides.

Dir-se-ia:

é o sublinhado de uma coincidência

selada com o sortilégio

do calendário.

 

(E quem pode fugir

do calendário?)

 

Ainda sou refém

da memória.

Devia ter aprendido

que a memória

é um tinteiro gasto

a vocação para o longe

nas imagens que se evaporam

na diálise das páginas arrancadas

ao calendário.

Vinte e nove anos

e de quê,

se cursei páginas soltas

e não medrou esteio 

como cimento do tempo inteiro?

A memória

enquista-se no mosteiro

onde se arquivam os misteres

da improficuidade.

Um estéril inventário

esmaecido na caneta gasta

que em dedicatória árida 

vai desmatando a decadência.

Literacia

Cabiam

num biombo da memória

os nomes tatuados

a esquecimento.

Não os sabia fantasmas

e nem supunha dizer

exorcismo

na apanha fidedigna

da espuma à mercê dos dedos.

Pelo caminho

entreteci o tempo

com o avesso da singularidade 

 

– mas não é assim 

que todos somos, 

vulgares,

na banal intumescência 

do original?

 

Dos nomes

guardo as sílabas vagarosas

com que se dizem

a sua gramática repetível.

E pouco mais.

O reverso do biombo

é um deserto sem pontos cardeais.

Eu aposto

que nem o Norte 

se tem por paradeiro.

#1674

[Crónicas do vírus, CCLXV]

 

A interrupção excruciante

da espada que báscula

no termo incerto.

24.7.20

Anjos disfarçados

Dizem-me

não é por mal,

que ao lençol da inocência

faltam as orelhas puxadas

e uma fina camada de poeira

se sobrepõe

ao olhar dos imprudentes

coalescendo no perdão.

 

Estou por saber

como tirar a prova dos nove

antes que venha 

uma prova de vida

estragar a matemática delicodoce.

 

Estou para saber

como são adivinhadas

as petições de indulgência

como se enformam os compassivos

num véu de piedade

que se esportula

no púlpito da ingenuidade.

 

Às vezes

(são tantas, as vezes!)

só apetece dessaber

para do ultraje do conhecimento

não açambarcar

a boca amarga da angústia.

Outras vezes

quando 

desaparafuso os ossos dos outros

e sou ilha por dentro de um ilhéu

prossigo indiferente

imune ao raer dos fornos crematórios

onde frui 

o despautério

disfarçado de asas de anjo.

#1673

[Crónicas do vírus, CCLXIV]

 

O improvável

emancipou-se

do dicionário.

#1672

[Crónicas do vírus, CCLXIII]

 

A safra

dos visionários

em maré-alta.

23.7.20

#1671

[Crónicas do vírus, CCLXII]

 

O medo

de ter medo

traduz-se

em solipsismo.

Entre os pingos da chuva, dizem

Escondido na desculpa

com o alto patrocínio dos arqueáveis

espalha prebendas à mitomania.

Não eram impressionáveis,

os inverosímeis da casta da elasticidade

no adorável desporto cívico

do paninho quente.

Escondido na desculpa,

brasonada como vão palavra,

resumia o estado geral do lugar

empenhado na monótona sanguessuga

que emudece a espátula de rigor.

Houvesse quem lhe dissera

que um pedido de desculpa

não é como apanhar o vento;

é roteiro para o arrependimento

moratória da iteração do mal feito

em sentinela para a lição tomada

cancioneiro da não repetição. 

#1670

[Crónicas do vírus, CCLXI]

 

Continua

a aprendizagem

do desmedo.

22.7.20

A boca cheia de impossíveis

Não peçam à lua

para ser o covil da noite

a constelação perdida

onde se aformoseia 

o olhar dos decessos.

 

Não peçam aos tumulares príncipes

para abdicarem de seu reino

não peçam

que a diáspora dos vivos

é má recomendação

tortura soez

a quem da vida já teve seu quinhão.

 

Não peçam aos ardinas

e aos sinaleiros

e ao homem que reparava guarda-chuvas

e aos mineiros

para saírem do atoleiro dos idos tempos

não peçam

que o tirocínio dos hodiernos tempos

seria sacrificial

um punhal deixado a sangrar,

e sem limite de tempo, 

na sua memória sem tempo.

 

Não peçam aos eruditos

citações em latim

evocações dos gregos filósofos

não peçam

para glosarem as costuras 

de um mundo a desmodo

antes que apanhados sejam

a delinquir numa revista mundana

ou nos carnais meandros do hedonismo.

 

Não peçam aos estroinas

pacientes leituras em letra miudinha

retiro ao invés de boémia

palavras com o aval de poemas

o medo da morte

a devolução da História

para fora das páginas dos calhamaços

um boicote à frivolidade perene\

não peçam

o oblíquo pesar

que os extrai ao mundano adejar.

 

Não peçam

se não o que pedido puder ser

ou acabamos todos,

em contramão

e à espera do frontal choque,

até sermos despedaçados

pela boca iracunda

de uma tempestade castrada.

#1669

[Crónicas do vírus, CCLX]

 

No caldeirão da pandemia

o parto

de mais Europa.

#1668

[Crónicas do vírus, CCXXXIX]

 

É de fiar

no fiado na posteridade 

– eis a encíclica dos mandantes.

21.7.20

Force majeure

O copo meio cheio

antecipa

o meio vazio por desenhar. 

Não se diga

do feito por fazer

que feito está

que os mandatários incisivos

cuidam de o destratar. 

Se a fuligem não fosse um restolho

ou à varanda do entardecer

não se estreitasse o ocaso

dir-se-ia que o projeto se afidalga

na desistência do fulgor. 

Dir-se-ia

no veludo da fala com esmero

que não foi por mal,

nunca foi por mal:

à última hora

a evocação da força maior

o distrate de toda a responsabilidade

o eco perdido na garganta granítica

onde

a esforço

se torna caudal

o rio ainda pueril. 

#1667

[Crónicas do vírus, CCXXXVIII]

 

Quando acaba

esta primavera eterna?

20.7.20

Retribuição

Qual é o diâmetro

da nossa fragilidade?

É o medo 

que embalsamamos

no mecenato da loucura. 

 

Qual é o cianeto

do nosso abismo?

É o telúrico ritual 

que bebe nos costumes

em incontroversos verbos. 

 

Qual é o bónus

da nossa grandeza?

É o testemunho desembaciado

as sílabas terçadas em murmúrio

o colossal empenho em dias soturnos

o marasmo que derrotamos

em vigílias que não disfarçamos

antes que 

a fragilidade

o medo

a loucura

o abismo

e a moral

sejam nosso ergástulo.

#1666

[Crónicas do vírus, CCXXXVII]

 

A doença mais letal

é a sede de resgatar

um normal.

18.7.20

Busílis (ou: parecenças)

O busílis da questão

não se confunde

com fusilis

nem com fuzis

e muito menos

com fusíveis.

São os fungíveis,

aparentados,

os logros de cepa torta.

Fugidios,

os sentidos adulteram-se

numa lava que parece igual

e o não é:

o basalto em que devêm

cuida de exibir as diferenças.

E esse

é o busílis 

de todas as questões.

#1665

[Crónicas do vírus, CCXXXVI]

 

Fricção científica:

assim prossegue

a desarmonia dos cientistas.

17.7.20

A venda à venda

À venda

a venda que sentencia as trevas.

 

A venda

assim orquestrada

venda-se

pela menor das licitações.

 

À venda que veda

o maior dos perjúrios

o bem oximoro

mercancia sem bolsa de transações.

 

À venda 

que à venda está

que traga pecúlio zero.

 

E ao menos

depois da venda

a venda desembaraçada

e o ubere pronto para o manancial.

#1664

[Crónicas do vírus, CCXXXV]

 

O teatro

do excesso de confiança:

brincar com o fogo

sem ser época de incêndios.

16.7.20

A taça, ó glória

Disto

um piano

e as botas armadas

antes

que os fusíveis

se encomendem às trevas

e rasteiro

seja o adeus

em convocatória senil

e em rocha

se endureçam as lágrimas

que furtivas seriam

se estivesse de chuva. 

 

Daquilo

ou as peças de xadrez

todas entontecidas pelo viés

no amanhã

que se fragiliza no compasso

rastreado

no denodo das seitas

ergástulos

que dizem etecetera

depois das modas jogadas

em simétricas páginas sem linho.

 

Dito isto

afoguem-se as palavras excessivas

em malvasias fora de prazo

escanhoe-se a militância

a favor do tempero

misturem-se os opostos

a coreografia dos diferentes

armadura

contra a tribal pertença

em baias estreitas de impura rejeição

antes

que o centeio podre seja mantimento

e do restolho

rastejem os párias sem absoluta causa

os nefandos, imberbes

(mesmo que senis)

mastins da pose castrense

antes

que lhes caiam os dentes

e se afoguem no tanto salivar

em que se destilam

tão ufanos

tão insanos. 

#1663

[Crónicas do vírus, CCXXXIV]

 

O pensamento

prodigalizou-se.

15.7.20

As teias das elites

Entranha-se

este visco pútrido,

a banha sem cobra,

que desfila na fala dos insignes

como se deles fossemos devedores

e seu sangue fosse de ouro

e as nossas veias 

esgoto de seus dejetos.

A lapela não enjeitada

fornece vistoso miradouro às comendas

que os galões ou são ostentados

ou sobram para o residual conhecimento

e estes estéreis pais de todos nós

definham se lhes for omisso

o reconhecimento.

É como se vivessem para fora de si

(e fora de suas comarcas)

e eles a varanda 

a que os demais devem repetidas genuflexões

pois na sua carência ficaríamos devedores 

de um atraso de civilização.

Ufanos e jactantes

ensaboam-se em prosápia colossal

que de sumo verte um nada,

sentados na volumosa pedra estatutária

de onde dizem dimanar seu escol.

Os tolos restantes,

cerces de pontos cardeais,

ou apenas vulgarmente distraídos,

idolatram as relíquias

e contribuem

(sem saber, talvez)

para o legítimo retrocesso.

#1662

[Crónicas do vírus, CCXXXIII]

 

O vírus

tornou-se

a moldura do Portugal.

#1661

[Crónicas do vírus, CCXXXII]

 

Ó povo paradoxal,

ontem heróis banhados em milagres

amanhã peticionando contra a sem-razão. 

#1660

[Crónicas do vírus, CCXXXI]

 

Como pode lugar tão ínclito

ter como missão

a autocomiseração pela trela?

#1659

[Crónicas do vírus, CCXXX]

 

A pandemia cruel

que nos devolveu

ao quarto dos fundos.

14.7.20

Divagações semânticas com um pouco de ácido lúbrico à mistura

Qual é o feminino de mulherengo?

 

(Não conta como hipótese

mulherenga

sem desajuizar que também as há.)

 

Acordei com esta dúvida existencial.

(Também não entram no rol

desqualificativos

que rasuram a honra

de uma amazona carnal.)

 

Dei comigo

preso à obstipação vocabular.

 

            (A menos que seja minha incúria

            e o idioma conheça daquela

            palavra passaporte no feminino.)

 

Arrisquei uma ideia:

homenrenga.

 

            (Pois são tangentes os direitos

            e ninguém acuse de libertinagem

            as homenrengas da praça

            se é de aplauso a convivência

            com os mulherengos com linhagem

            sem nunca serem enredados

            no labéu da promiscuidade.)

#1658

[Crónicas do vírus, CCXXIX]

 

Não desistiram

de viver.

Essa foi

a grande vitória.