21.8.20

Sobra de esforço

Arranquem-me o sal do tempo

façam cornucópias em vez de versos

abundem o dia com os rostos sibilinos

e encomendem

ao tempo pretérito

o peito pétreo onde se dissolve a angústia. 

 

Tragam à manhã as sílabas uivadas

no dorso de violinos fantasmas

e digam,

digam, 

como se não houvesse nada mais por dizer,

que não são precisos mastros

nem obeliscos matriciais

ou demónios em vão de escada 

para avivar a cal deitada nas cicatrizes. 

 

Pois da dor

cultiva-se

em forma de memória futura

a dieta em que medra 

o perene tirocínio. 

#1703

[Crónicas do vírus, CCLXXIV]

 

Quando se pede unidade

cancela-se a política

(e faz-se, surdamente, política).

20.8.20

#1702

[Crónicas do vírus, CCLXXIII]

 

Um bocejo da alma

no gerúndio

da transfiguração sem rosto.  

19.8.20

S. Lourenço da Galafura

Marcada à mão do Homem, 

a moldura do xisto 

afinal permeável. 

 

Sobra à paisagem 

a pauta imorredoira 

do tempo 

que não se cansa.

18.8.20

#1701

[Crónicas do vírus, CCLXXII]

 

O medo

traduzido na decrepitude

da condição humana.

17.8.20

Pendente

O dente de leão

já não morde.

O ocaso miscigena-se

na noite.

Os versos emprestam-se

a outra latitude.

O inquérito

procura respostas.

Há um odor a suspensão do tempo

enquanto os touros agradecem o caos

e os usos regressaram ao internato.

Ah!

Se ao menos os pontos de interrogação

não fossem facas desvairadamente espetadas

se a criação do tempo vindouro

não estivesse hipotecada às algemas

dos viciados nos costumes

se os verbos não fossem uma imagem puída

se os trota mundos 

bebessem a seiva dos lugares 

e não guardassem para si o fim da função;

se ao menos

o menos não fosse um modesto pecúlio

e do módico houvesse farta safra,

os lápis desenhavam os deslimites de tudo

e os sacerdotes compungidamente pesarosos

lamentariam

“os tempos foram à diferença

e nós não conhecemos esse molde”.

E o fim de tudo

não seria um fim em si mesmo

mas a exegese das almas infrequentadas

o tirocínio permanente

a dúvida finalmente metódica

e as palavras desembrulhadas 

num creme de pasteleiro reinventado

para gáudio

dos eternamente crianças

dos que não se escondem 

da matriz das interrogações em contínuo.

 

#1700

[Crónicas do vírus, CCLXXI]

 

Como a névoa 

que se abraça ao estuário

a palavra entorse 

no viés do futuro.

16.8.20

#1699

[Crónicas do vírus, CCLXX]

 

Das bocas embotadas

palavras (pela) metade.

15.8.20

Comoção cerebral

Entro no sal do mar

a água vencida no dorso

por entre sereias inventariadas

na boca da espuma

e um beijo tirado no acaso.

Durmo 

com a voz do salitre

a murmurar nas costas do sonho. 

Levito as mãos simétricas

pode ser que saiba escrever

o nome do mar. 

Enquanto espero

que o mar ganhe um nome

tomo as sílabas dos versos noturnos

o diadema inesperado dos druidas sem rosto. 

Sem rosto,

os druidas,

como sem nome, 

o mar 

– e ambos desatam a combustão

em que se dissolvem

num mapa embebido em nomes.

#1698

[Crónicas do vírus, CCLXIX]

 

Nem o tempo suspenso

adiou

o Homem em vias de envelhecimento.

14.8.20

Manual da boa arte de fazer parágrafos

Ninguém te ensinou

a fazer parágrafos?

 

Ainda protestou:

 

as regras estão abertas

à dissidência.

 

(O protesto não teve

convicção)

 

Aprender

a fazer parágrafos:

não têm de corresponder

a uma frase;

 

(a menos 

que se queira

encher páginas)

 

não têm de corresponder

a páginas inteiras.

 

(a menos

que se queira

desmotivar o leitor

e com o revólver 

enfiar um tiro no pé)

 

Quando aprendi a ler

ensinaram-me 

que a muda de parágrafo acontece

por alturas da mudança de assunto. 

Admito

 

(porque 

o princípio geral da tolerância

o determina)

 

que o tempo entretanto

tenha orquestrado nova regra,

ou 

que combinações estéticas

ou 

apenas o livre arbítrio de quem escreve

sejam o aval 

de uma nova regra. 

 

Ainda vou tirar a limpo

que não devia ter insinuado

que não sabes dominar 

parágrafos.

#1697

[Crónicas do vírus, CCLXVIII]

 

Profetas,

por defeito.

13.8.20

O dote dos demenciais

A arenga sem paradeiro

no improviso mosto pactuado

contra as invetivas

contra 

os servos da contenda. 

Contavam-se espingardas

 

(diziam 

estultamente 

os exegetas de batalhas

como se não fosse humana 

a carne devorada 

em combate);

 

não se faz a conta

aos muitos litros de sangue

que podiam ser eflúvio de corações,

ou às certidões derradeiras 

friamente lavradas,

ou aos lugares que foram

rasas campas anónimas,

ou às homenagens sem nomes. 

Não me convençam

que da humanidade 

fica um legado mirífico:

quem transforma 

diferença em desopinião

divergência em dissidência

preconceito em intolerância

desarmonia em obus

merece 

o opróbrio 

como selo para a posteridade. 

Não me digam

que os predicados 

brandidos pelos antropocêntricos

se traduzem em armas terçadas 

– não me digam

que superior é esta espécie 

entre as demais,

paradigmática escultura do luzimento,

os seus componentes:

estilistas do belo

artesãos do admirável

lídimos poetas de estrofes arrebatadas

cultores da fina sensibilidade

artistas que sagram a vida

e temem a morte. 

Não me digam

que a História vive 

escondida nas suas sombras.

#1696

[Crónicas do vírus, CCLXVII]

 

O que perdemos

foi o que nunca tivemos.

12.8.20

Fumeiro

Na minha cabeça

Madagáscar

rima com

Gibraltar.

 

É tão lúcido

como aquela frase feita

 

“éramos tão felizes e não sabíamos.”

 

No fundo,

nunca saberá

se o caviar vem do esturjão

ou 

se é obra de um intrujão.

#1695

[Crónicas do vírus, CCLXVI]

 

A interminável História

de paradoxos

projeta-se no futuro: 

em vez de rumo com remo

tribalismo compulsivo.

11.8.20

#1694

[Crónicas do vírus, CCLXV]

 

Os vultos seráficos

consomem a lucidez

que só foi delusão.

Otimismo antropológico

São boas pessoas:

diz o termómetro

do incorrigível confiável

na sua escala de avos

que junta centímetros

à linhagem das pessoas.

São boas, as pessoas:

responde o outro,

em juramento

de psicologia positiva

mas não

de ingenuidade à prova de veneno.

Ou ainda,

no laboratório

das quase metafísicas experiências,

em pleno confisco 

do agreste, pisado chão:

são pessoas,

boas.

E foram os três 

de mão dada

sonhos fora

sonhando 

com um sonho madrigálico.

#1693

[Crónicas do vírus, CCLXIV]

 

(Por causa da mortandade num lar em Reguengos de Monsaraz)

 

Um pesado cheiro

a terceiro mundo.

10.8.20

Paradeiro do Verão

Aguardo

o rumor estival

na dobra do agosto

tépido.

 

Aguarda-me

a dança sem servidão

no estipêndio do verso

trivial.

 

Aguarda-se

o trovejar impreciso

na véspera das nuvens

veementes.

 

Aguardem

a espuma iracunda

no dealbar das marés-vivas

destemperadas.

 

Aguardo

a lente rudimentar

no pináculo de um Verão

esforçado.

 

Aguarda-me

a promessa de Outono

no fingimento do corpo

trespassado.

#1692

[Crónicas do vírus, CCLXIII]

 

Pródigos,

estes bizarros tempos,

em feiticeiros 

que adivinham o passado.

9.8.20

Fora de jogo

De todas as rochas

o soro vertido

num mar sem marés. 

 

Tinjo as lágrimas

com o doce odor 

da madrugada;

uma borboleta anuncia-se

no rogo do estanho de uma estrela.

 

De todas as rochas

cubro a boca com silêncio;

o resto 

é a maresia 

que rima com outono.

8.8.20

#1691

[Crónicas do vírus, CCLXII]

Quantas 

encomendas de passado

foram destinadas

ao futuro?

A destempo

Dizia

“quando fui para o primeiro ano”

como se o tempo 

fosse um lugar.

7.8.20

Dia de beca

Hoje é dia de beca. 

O cortejo dos notáveis

(também dão 

pelo epíteto de escol),

pátria de eruditos

a beca 

a prova do privilégio. 

Dia de beca:

o cortejo faz-se 

vagaroso

no pé ante pé sincopado

para dar tempo à casta

de notarem como são reverenciados

pelos pajens situados

nos arrabaldes. 

Da beca se diz

ser avantajada indumentária

para dar largas 

ao eu XXL

ou 

ao eu que não cabe 

em tanta prosápia.

Uns titulares da beca

provam o privilégio

pelo gongórico falar

– o gongórico falar,

distintivo dos titulares da beca.

Outros 

nem sabem dizer

(se à medula da honestidade forem)

como estadeiam a beca 

– assim se vulgarizando a beca 

na azeda melancolia 

dos gongóricos.

Hoje

é dia de beca

e o estabelecimento fechou 

para balanço.

#1690

[Crónicas do vírus, CCLXI]

 

Por sobre as sombras

as palavras distraídas

num choro emudecido.

6.8.20

Dia de Baco

Hoje é dia de Baco.

Assim vai o imperador

já sem o anzol

que o destronou do mar

e antes que venha uma trovoada

despejar confetti 

e um pedaço de Carnaval.

Dia de Baco

deus único na galeria dos ilustres

ou mnemónica para o vinho dadaísta

em molduras estilhaçadas

o ouro a transbordar

das bocas refasteladas

do arco fecundo da vida diletante.

Hoje 

é dia de Baco

e vou à cave fazer perguntas

com a lanterna oxidada entre dentes

antes que outros demónios

ganhem a aposta. 

#1689

[Crónicas do vírus, CCLX]

 

Nunca como agora

se impetrou

para que o tempo 

andasse para a frente.

5.8.20

Dia de boca

Hoje é dia de boca.

(A seguir ao dia de boda

é o dia da boca.)

A boca

da fala itinerante

que apura o palácio não mundano

e destrona o silêncio

que escraviza.

Dia da boca

que fala pelos sentidos

com as sílabas cuidadas

em palavras avulsamente 

confecionadas.

Hoje é dia de boca:

da boca-sexo

que se cola ao desejo do mundo

a língua que entroniza o corpo

a boca-sexo que abriga o sexo quente

e sabe contar com a outra boca-sexo

para um coroar olimpicamente 

extático.

Hoje

é dia de boca

e não é da boca

que faz morrer o peixe:

é da boca-úbere

onde se congemina 

o verbo não esporádico

em juras não segregadas

no sexo emoldurado

num bilhete-postal intemporal.

#1688

[Crónicas do vírus, CCLIX]

 

Entre apocalipse

e a sua mera promessa

a navegação por estima.