[Crónicas do vírus, CCLXXXII]
Ó mercadores de patranhas:
depois da teoria do milagre
salgam-nos com a teoria
um passo atrás-dois à frente.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CCLXXXII]
Ó mercadores de patranhas:
depois da teoria do milagre
salgam-nos com a teoria
um passo atrás-dois à frente.
O templo do tempo:
imperadores bufos
dedicam-se à escatologia
e escrevem com a boca negra
o desmentido do sonho.
É o tempo que pede templo
para os apoderados sem remédio
verterem suas preces
(à falta dos reprimidos prantos)
e persistirem na sua oclusão,
recusando-se.
Ou:
o templo tem tempo
que o tempo não se esgota
na procrastinação dos mestres
nem obedece
ao fastio dos esquecidos:
melhor será
que se enxugue o suor do tempo
por dentro de sonhos gongóricos.
O melhor,
ainda,
é o tempo
não ter templo.
[Crónicas do vírus, CCLXXXI]
Estes morígeros profetas
que nos apascentam
na sela da nossa distração.
O país
da natureza morta
tem escondidos
os pais
das várias naturezas mortas.
Todos merencórios,
não vá o sal ingente
dobrá-los
sobre o peso do nevoeiro.
Já se dizia
em infusão sebastiânica
que um remédio
(se não um remendo)
seria o selo da posteridade.
A natureza
morta
continua à espera.
Não digas
“matar o tempo”
não vá o tempo
em braço de ferro
condenar-te
ao malogro.
Pois se eleges
este como o espaço teu
que saibas dotá-lo
de uma cartografia.
E se em remissão
deres ornamento à fala
da gramática
cuida não haver dano.
Pois a gramática
é a cartografia da fala
e uma certa unção
do tempo.
Uma espécie de bife tártaro:
sobre finas camadas
o fino pensar
que não se destina às águas pluviais.
Se o certo se toma por incerto
não é por contumaz lucidez.
Ora
se em vozes escamosas
as candeias forem acesas
não será por defeito:
eruditos
os lupanares exortam à esquerda
(aviso ao leitor:
sem conotação política)
e o guiador espera por incentivo
para saber para onde virar.
Não se esqueça
da mostarda de Dijon,
o precipício inesperado
para o reinventado manual
do bife tártaro.
[Crónicas do vírus, CCLXXVI]
As celebrações
não importam.
(A menos que o fingimento
seja verbo fecundo.)
[Crónicas do vírus, CCLXXV]
O selo do tempo:
“tenho saudade de te dar um abraço”.
(Ouvido num restaurante)
Arranquem-me o sal do tempo
façam cornucópias em vez de versos
abundem o dia com os rostos sibilinos
e encomendem
ao tempo pretérito
o peito pétreo onde se dissolve a angústia.
Tragam à manhã as sílabas uivadas
no dorso de violinos fantasmas
e digam,
digam,
como se não houvesse nada mais por dizer,
que não são precisos mastros
nem obeliscos matriciais
ou demónios em vão de escada
para avivar a cal deitada nas cicatrizes.
Pois da dor
cultiva-se
em forma de memória futura
a dieta em que medra
o perene tirocínio.
[Crónicas do vírus, CCLXXIV]
Quando se pede unidade
cancela-se a política
(e faz-se, surdamente, política).
Marcada à mão do Homem,
a moldura do xisto
afinal permeável.
Sobra à paisagem
a pauta imorredoira
do tempo
que não se cansa.
O dente de leão
já não morde.
O ocaso miscigena-se
na noite.
Os versos emprestam-se
a outra latitude.
O inquérito
procura respostas.
Há um odor a suspensão do tempo
enquanto os touros agradecem o caos
e os usos regressaram ao internato.
Ah!
Se ao menos os pontos de interrogação
não fossem facas desvairadamente espetadas
se a criação do tempo vindouro
não estivesse hipotecada às algemas
dos viciados nos costumes
se os verbos não fossem uma imagem puída
se os trota mundos
bebessem a seiva dos lugares
e não guardassem para si o fim da função;
se ao menos
o menos não fosse um modesto pecúlio
e do módico houvesse farta safra,
os lápis desenhavam os deslimites de tudo
e os sacerdotes compungidamente pesarosos
lamentariam
“os tempos foram à diferença
e nós não conhecemos esse molde”.
E o fim de tudo
não seria um fim em si mesmo
mas a exegese das almas infrequentadas
o tirocínio permanente
a dúvida finalmente metódica
e as palavras desembrulhadas
num creme de pasteleiro reinventado
para gáudio
dos eternamente crianças
dos que não se escondem
da matriz das interrogações em contínuo.
[Crónicas do vírus, CCLXXI]
Como a névoa
que se abraça ao estuário
a palavra entorse
no viés do futuro.
Entro no sal do mar
a água vencida no dorso
por entre sereias inventariadas
na boca da espuma
e um beijo tirado no acaso.
Durmo
com a voz do salitre
a murmurar nas costas do sonho.
Levito as mãos simétricas
pode ser que saiba escrever
o nome do mar.
Enquanto espero
que o mar ganhe um nome
tomo as sílabas dos versos noturnos
o diadema inesperado dos druidas sem rosto.
Sem rosto,
os druidas,
como sem nome,
o mar
– e ambos desatam a combustão
em que se dissolvem
num mapa embebido em nomes.
Ninguém te ensinou
a fazer parágrafos?
Ainda protestou:
as regras estão abertas
à dissidência.
(O protesto não teve
convicção)
Aprender
a fazer parágrafos:
não têm de corresponder
a uma frase;
(a menos
que se queira
encher páginas)
não têm de corresponder
a páginas inteiras.
(a menos
que se queira
desmotivar o leitor
e com o revólver
enfiar um tiro no pé)
Quando aprendi a ler
ensinaram-me
que a muda de parágrafo acontece
por alturas da mudança de assunto.
Admito
(porque
o princípio geral da tolerância
o determina)
que o tempo entretanto
tenha orquestrado nova regra,
ou
que combinações estéticas
ou
apenas o livre arbítrio de quem escreve
sejam o aval
de uma nova regra.
Ainda vou tirar a limpo
que não devia ter insinuado
que não sabes dominar
parágrafos.
A arenga sem paradeiro
no improviso mosto pactuado
contra as invetivas
contra
os servos da contenda.
Contavam-se espingardas
(diziam
estultamente
os exegetas de batalhas
como se não fosse humana
a carne devorada
em combate);
não se faz a conta
aos muitos litros de sangue
que podiam ser eflúvio de corações,
ou às certidões derradeiras
friamente lavradas,
ou aos lugares que foram
rasas campas anónimas,
ou às homenagens sem nomes.
Não me convençam
que da humanidade
fica um legado mirífico:
quem transforma
diferença em desopinião
divergência em dissidência
preconceito em intolerância
desarmonia em obus
merece
o opróbrio
como selo para a posteridade.
Não me digam
que os predicados
brandidos pelos antropocêntricos
se traduzem em armas terçadas
– não me digam
que superior é esta espécie
entre as demais,
paradigmática escultura do luzimento,
os seus componentes:
estilistas do belo
artesãos do admirável
lídimos poetas de estrofes arrebatadas
cultores da fina sensibilidade
artistas que sagram a vida
e temem a morte.
Não me digam
que a História vive
escondida nas suas sombras.
Na minha cabeça
Madagáscar
rima com
Gibraltar.
É tão lúcido
como aquela frase feita
“éramos tão felizes e não sabíamos.”
No fundo,
nunca saberá
se o caviar vem do esturjão
ou
se é obra de um intrujão.
[Crónicas do vírus, CCLXVI]
A interminável História
de paradoxos
projeta-se no futuro:
em vez de rumo com remo
tribalismo compulsivo.
São boas pessoas:
diz o termómetro
do incorrigível confiável
na sua escala de avos
que junta centímetros
à linhagem das pessoas.
São boas, as pessoas:
responde o outro,
em juramento
de psicologia positiva
mas não
de ingenuidade à prova de veneno.
Ou ainda,
no laboratório
das quase metafísicas experiências,
em pleno confisco
do agreste, pisado chão:
são pessoas,
boas.
E foram os três
de mão dada
sonhos fora
sonhando
com um sonho madrigálico.