[Crónicas do vírus, CCLXXXVIII]
A nostalgia
estende-se à medida
da memória derruída.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CCLXXXVII]
Um estaleiro
virado do avesso,
ou o palco do fingimento
em proveito dos mandantes?
A espada não tem paradeiro,
embriagados os guerreiros candidatos.
É o que narra a maresia
desfazendo o entorpecimento tardio
no rescaldo da boémia ilegível.
As armas
fundeadas num cívico letargo
desembaraçam os sonhos
– os sonhos que asfixiam
o sono doloroso dos guerreiros.
Na varanda de uma pousada
(antes de açambarcada)
a penúria dos modestos estivera selada
num azulejo pendido sobre a janela.
Os guerreiros
perderam o paradeiro da sobriedade.
Só sabem contar a vilanagem
e à sua conta
industriam o desenho plúmbeo
que só conta com personagens vultos.
Ninguém sabe
que sangue vertem
nas veias da terra.
Só sabem
que infecta fica a terra
um sarcófago indigente
onde não coabita a indulgência.
[Crónicas do vírus, CCLXXXVI]
Um imenso estaleiro
de pernas para o ar
e as pessoas fingem que não.
Era do tempo
em que as palavras
se aninhavam em mel.
O rosto
subia pelos dedos
e as paredes
despiam-se de medo.
Talvez o entardecer
seja a rima por onde entra
o estuário.
A melodia,
trago-a na pele,
à espera.
Já não lambia
as feridas;
só as cicatrizes.
Jã não era ácido
o sabor
vindo à boca.
Sentia-se
como um urso
fora das montanhas
e do mel arredado
uma orfandade disfarçada.
Ao menos
não se considerava
amestrado.
Não era
como os distintos, exemplares
exemplares
puídos sem saberem
suas feridas baças
sob uma castração muda.
As cicatrizes
já
podiam ser olhadas
como tatuagens.
[Crónicas do vírus, CCLXXXIV]
As pessoas
não mudaram
só por os rostos
estarem embaciados.
(Hino panglossiano – bis repetita)
[Crónicas do vírus, CCLXXXIII]
Os rostos
não deixam de ser belos
só por estarem embaciados.
(Hino panglossiano)
[Crónicas do vírus, CCLXXXII]
Ó mercadores de patranhas:
depois da teoria do milagre
salgam-nos com a teoria
um passo atrás-dois à frente.
O templo do tempo:
imperadores bufos
dedicam-se à escatologia
e escrevem com a boca negra
o desmentido do sonho.
É o tempo que pede templo
para os apoderados sem remédio
verterem suas preces
(à falta dos reprimidos prantos)
e persistirem na sua oclusão,
recusando-se.
Ou:
o templo tem tempo
que o tempo não se esgota
na procrastinação dos mestres
nem obedece
ao fastio dos esquecidos:
melhor será
que se enxugue o suor do tempo
por dentro de sonhos gongóricos.
O melhor,
ainda,
é o tempo
não ter templo.
[Crónicas do vírus, CCLXXXI]
Estes morígeros profetas
que nos apascentam
na sela da nossa distração.
O país
da natureza morta
tem escondidos
os pais
das várias naturezas mortas.
Todos merencórios,
não vá o sal ingente
dobrá-los
sobre o peso do nevoeiro.
Já se dizia
em infusão sebastiânica
que um remédio
(se não um remendo)
seria o selo da posteridade.
A natureza
morta
continua à espera.
Não digas
“matar o tempo”
não vá o tempo
em braço de ferro
condenar-te
ao malogro.
Pois se eleges
este como o espaço teu
que saibas dotá-lo
de uma cartografia.
E se em remissão
deres ornamento à fala
da gramática
cuida não haver dano.
Pois a gramática
é a cartografia da fala
e uma certa unção
do tempo.
Uma espécie de bife tártaro:
sobre finas camadas
o fino pensar
que não se destina às águas pluviais.
Se o certo se toma por incerto
não é por contumaz lucidez.
Ora
se em vozes escamosas
as candeias forem acesas
não será por defeito:
eruditos
os lupanares exortam à esquerda
(aviso ao leitor:
sem conotação política)
e o guiador espera por incentivo
para saber para onde virar.
Não se esqueça
da mostarda de Dijon,
o precipício inesperado
para o reinventado manual
do bife tártaro.
[Crónicas do vírus, CCLXXVI]
As celebrações
não importam.
(A menos que o fingimento
seja verbo fecundo.)
[Crónicas do vírus, CCLXXV]
O selo do tempo:
“tenho saudade de te dar um abraço”.
(Ouvido num restaurante)
Arranquem-me o sal do tempo
façam cornucópias em vez de versos
abundem o dia com os rostos sibilinos
e encomendem
ao tempo pretérito
o peito pétreo onde se dissolve a angústia.
Tragam à manhã as sílabas uivadas
no dorso de violinos fantasmas
e digam,
digam,
como se não houvesse nada mais por dizer,
que não são precisos mastros
nem obeliscos matriciais
ou demónios em vão de escada
para avivar a cal deitada nas cicatrizes.
Pois da dor
cultiva-se
em forma de memória futura
a dieta em que medra
o perene tirocínio.
[Crónicas do vírus, CCLXXIV]
Quando se pede unidade
cancela-se a política
(e faz-se, surdamente, política).
Marcada à mão do Homem,
a moldura do xisto
afinal permeável.
Sobra à paisagem
a pauta imorredoira
do tempo
que não se cansa.
O dente de leão
já não morde.
O ocaso miscigena-se
na noite.
Os versos emprestam-se
a outra latitude.
O inquérito
procura respostas.
Há um odor a suspensão do tempo
enquanto os touros agradecem o caos
e os usos regressaram ao internato.
Ah!
Se ao menos os pontos de interrogação
não fossem facas desvairadamente espetadas
se a criação do tempo vindouro
não estivesse hipotecada às algemas
dos viciados nos costumes
se os verbos não fossem uma imagem puída
se os trota mundos
bebessem a seiva dos lugares
e não guardassem para si o fim da função;
se ao menos
o menos não fosse um modesto pecúlio
e do módico houvesse farta safra,
os lápis desenhavam os deslimites de tudo
e os sacerdotes compungidamente pesarosos
lamentariam
“os tempos foram à diferença
e nós não conhecemos esse molde”.
E o fim de tudo
não seria um fim em si mesmo
mas a exegese das almas infrequentadas
o tirocínio permanente
a dúvida finalmente metódica
e as palavras desembrulhadas
num creme de pasteleiro reinventado
para gáudio
dos eternamente crianças
dos que não se escondem
da matriz das interrogações em contínuo.
[Crónicas do vírus, CCLXXI]
Como a névoa
que se abraça ao estuário
a palavra entorse
no viés do futuro.
Entro no sal do mar
a água vencida no dorso
por entre sereias inventariadas
na boca da espuma
e um beijo tirado no acaso.
Durmo
com a voz do salitre
a murmurar nas costas do sonho.
Levito as mãos simétricas
pode ser que saiba escrever
o nome do mar.
Enquanto espero
que o mar ganhe um nome
tomo as sílabas dos versos noturnos
o diadema inesperado dos druidas sem rosto.
Sem rosto,
os druidas,
como sem nome,
o mar
– e ambos desatam a combustão
em que se dissolvem
num mapa embebido em nomes.