8.9.20

Aumentativo

Esse dinheiro daninho

tatuado no exílio 

da minha pele

mantimento acima do sol

ou a veia refluída na toga

enquanto espero 

– e na espera

espero que não seja 

prelúdio

o desejo da manhã.

Cura

A laceração

marcada

a cal viva

emerge da cicatriz.

Há nódoas

que se demoram

nos vincos

da memória.

Hoje

sei dos avisos

até dos que são

a destempo.

O tirocínio

é contínuo

e deixa

em seu rasto

a impávida

instrução.

Não há cicatrizes

imunes

à fotografia do acaso.

Para isso

tem serventia

o mecenato

em colheita diligente.

Da laceração

não sobram

provas.

#1722

[Crónicas do vírus, CCXCIV]

 

A metáfora fidedigna:

como uma tartaruga

de pernas para o ar,

esperneando.

7.9.20

Teoria geral da (fraca) poupança

O pé-de-meia

devia ser proibido;

digo:

a expressão idiomática,

lavrada 

sabe-se lá 

se pelo povo

ou por eruditos cobertos de sapiência,

devia ser exilada,

para os mais novos

(e os mais velhos,

mas apenas os contumazes)

não caírem num logro semântico:

como pode 

o significado de pé-de-meia

conter a ideia de entesouramento

se pouco é o pecúlio que cabe

num excerto tão abreviado

de um par de meias

(é só metade do par,

e nem na sua exata fração,

que apenas o pé da meia 

serve para o aforro)?

 

(Termos em que 

um perito de economia

diria 

ufano de sua descoberta,

que a reduzida propensão para a poupança 

– opróbrio desta nação –

tem fundas raízes

numa entorse da semântica.)

#1721

[Crónicas do vírus, CCXCIII]

 

Ofício pretensioso:

a arimética dos sonhos 

– o lugar onde se guardam 

as ilusões.

6.9.20

Anti elegia

Os dentes do fogo

acarinham os nomes sem paradeiro.

O absoluto medo

não convence os astutos,

seus verbos

doces cantos do mar.

Se 

em vez 

de ar pesado

umas estrofes improváveis 

gravitassem nos rodapés sem visibilidade

não se falaria de obituários

 

(esses gananciosos estipêndios

da hipocrisia).

 

Se 

em vez 

de morte

houvesse um luar por cada vida

e por cada dia dessa vida

os pesares

não seriam rima do ocaso.

5.9.20

Estimativa

Este 

é o sol vadio

a sílaba insubmissa

o louco colo, partidário

a praia onde se jogam as marés

a voz que fala um nome

o lugar confiável

extraído ao bolor da indiferença. 

 

Estas 

são as mãos artesãs

que engenham o amor

o fusível sem entulho

espuma rasa no dorso dos dados

estrofe que desmente os vultos arqueados

quimera sem adjetivo

superação. 

 

As mãos 

que costuram

um lugar

a identidade 

na fusão dos corpos. 

 

Esta

a nossa

verdadeira nacionalidade

que dispensa passaporte

e não se aprisiona a um hino

o amor matricial

areópago 

da nossa anarquia organizada

tutores do luar caiado

por nossas mãos se movendo o entardecer

até que ordenemos 

a continuação das horas.

4.9.20

Perseguição do avesso

Persegui o divino

e ele de mim participou 

às autoridades. 

Alegou

não ter inventariado

sua presença

e que é de esperar

que o perseguido se sinta acossado

pelo perseguidor

e não o vice-versa. 

Do paroxismo desta perseguição

vem à rede 

uma intendência

(ou, melhor processando, 

duas intendências):

numa perseguição

o predador 

tem de ter os olhos na presa

e se ela não está à vista

não chega a ser

perseguição;

não é do foro da perseguição

se estiverem de avesso os papéis

e atrás do perseguidor

um fantasma brandir 

o seu inexistir

como ameaça.

#1720

[Crónicas do vírus, CCXCII]

 

A heterogénea hermenêutica

do acontecido

não foi mudada.

3.9.20

Exército depenado

Servir para servir,

os desfardados

ausentes do sortilégio da casta

dos valentes usuários de fardas

e do arsenal a preceito.

Servir para servir:

e não é essa a missão,

a autêntica servidão

(ou ferrolho pueril),

destinada à casta descerebrada

dos que se desfardam de civilidade?

Desses,

os lugares-tenente da bravura arcaica

sanguinários

(em carne viva, ou em potência)

que ceifam vidas 

em nome de pátrias,

déspotas em nome próprio,

mercenários

– mercenários que abjuram a dignidade,

prescrita palavra dos seus dicionários.

#1719

[Crónicas do vírus, CCXCI]

 

A contingência avivada

na ressignificação do idioma,

reavivando a semântica.

2.9.20

Geração de avanço

Uma geração de avanço

não é trato que se desatenda:

o verniz não derrui

e nas bancadas da medicina

há quem corrija a salinidade dos verbos

sentado na posição da torre

enquanto o tabuleiro é varrido

e a torre é a peça inamovível.

 

Mas é de uma geração de avanço

o diadema descoberto no índice onomástico

entre a poeira remoída 

e as lombadas puídas pelo sol.

pacto de regime

na ausência de regime.

 

Do avanço da geração

contam-se as milhas

e o relógio ancestral porfia o sopeso

a matéria-prima dos venais exprobrados

a tinta negra extraída a um cefalópode

como ato censor em desprezo do vento fresco

que penteia a pele desembaraçada.

 

Gera-se um avanço

fora das armadilhas retidas nos escafandros

fora dos desábitos que se jogam

contra a viperina haste 

dos que jogam no desdém

os possantes pensadores do vazio

em elegantes maresias soldadas no estirador

em vésperas prometidas à letargia.

 

Uma certidão habilitada

para a memória destinada ao futuro

os nomes em verso

da degeneração de avanço. 

#1718

[Crónicas do vírus, CCXC]

 

Diplomaticamente intimados

ao consentimento da vontade,

sob pretexto.

1.9.20

O bolbo sem coorte

O ermo que se faz cedo

erário sem provisões

ou ergástulo puído,

um ermal sem posse. 

 

Os documentados 

alistam-se no medo

em furiosas sílabas hasteadas 

no meio da noite,

a meio da noite trémula,

substituas da tempestade fracassada. 

 

Lobrigam as espadas gangrenadas

a meio do tempo válido

entre o apeadeiro abandonado

e a estação litoral. 

 

Abraçados

sentindo o frio suor do medo

urbanizam o pensamento:

é o único feixe averbado

e faz menção aos “cânones razoáveis”,

o que quer que isso seja;

não há outro esconjurar

a menos

que os medos se perenizem

e das abóbadas gastas,

entre a claridade vertida pelos vitrais,

sobeje o cais 

onde arpoa um qualquer devir.

#1717

[Crónicas do vírus, CCLXXXVIII]

 

A nostalgia

estende-se à medida 

da memória derruída.

31.8.20

#1716

[Crónicas do vírus, CCLXXXVII]

 

Um estaleiro

virado do avesso,

ou o palco do fingimento

em proveito dos mandantes?

Batismo de morte

A espada não tem paradeiro,

embriagados os guerreiros candidatos. 

É o que narra a maresia

desfazendo o entorpecimento tardio

no rescaldo da boémia ilegível. 

As armas

fundeadas num cívico letargo

desembaraçam os sonhos 

– os sonhos que asfixiam

o sono doloroso dos guerreiros. 

Na varanda de uma pousada

(antes de açambarcada)

a penúria dos modestos estivera selada

num azulejo pendido sobre a janela. 

Os guerreiros 

perderam o paradeiro da sobriedade. 

Só sabem contar a vilanagem

e à sua conta

industriam o desenho plúmbeo

que só conta com personagens vultos. 

Ninguém sabe

que sangue vertem

nas veias da terra.

Só sabem

que infecta fica a terra

um sarcófago indigente 

onde não coabita a indulgência. 

#1715

[Crónicas do vírus, CCLXXXVI]

 

Um imenso estaleiro

de pernas para o ar

e as pessoas fingem que não.

30.8.20

#1714

[Crónicas do vírus, CCLXXXV]

 

Como um castelo de cartas

consumido

em sua fragilidade.

29.8.20

Rede de segurança

Era do tempo 

em que as palavras 

se aninhavam em mel. 

O rosto 

subia pelos dedos 

e as paredes 

despiam-se de medo. 

Talvez o entardecer 

seja a rima por onde entra 

o estuário. 

A melodia, 

trago-a na pele, 

à espera.

28.8.20

As rugas em forma de xisto

Já não lambia

as feridas;

só as cicatrizes.

 

Jã não era ácido

o sabor 

vindo à boca.

 

Sentia-se 

como um urso

fora das montanhas

e do mel arredado

uma orfandade disfarçada.

 

Ao menos

não se considerava

amestrado.

 

Não era

como os distintos, exemplares 

exemplares

puídos sem saberem

suas feridas baças

sob uma castração muda.

 

As cicatrizes

podiam ser olhadas

como tatuagens.

#1713

[Crónicas do vírus, CCLXXXIV]

 

As pessoas

não mudaram

só por os rostos

estarem embaciados.

(Hino panglossiano – bis repetita)

#1712

[Crónicas do vírus, CCLXXXIII]

 

Os rostos

não deixam de ser belos

só por estarem embaciados.

(Hino panglossiano) 

27.8.20

#1711

[Crónicas do vírus, CCLXXXII]

 

Ó mercadores de patranhas:

depois da teoria do milagre

salgam-nos com a teoria 

um passo atrás-dois à frente.

Desapressadamente

O templo do tempo:

imperadores bufos

dedicam-se à escatologia

e escrevem com a boca negra

o desmentido do sonho.

 

É o tempo que pede templo

para os apoderados sem remédio

verterem suas preces

(à falta dos reprimidos prantos)

e persistirem na sua oclusão,

recusando-se.

 

Ou:

o templo tem tempo

que o tempo não se esgota

na procrastinação dos mestres

nem obedece

ao fastio dos esquecidos:

melhor será

que se enxugue o suor do tempo

por dentro de sonhos gongóricos.

 

O melhor,

ainda,

é o tempo 

não ter templo.

#1710

[Crónicas do vírus, CCLXXXI]

 

Estes morígeros profetas

que nos apascentam

na sela da nossa distração.

26.8.20

Natureza morta

O país

da natureza morta

tem escondidos

os pais

das várias naturezas mortas.

Todos merencórios,

não vá o sal ingente

dobrá-los

sobre o peso do nevoeiro.

Já se dizia

em infusão sebastiânica

que um remédio

(se não um remendo)

seria o selo da posteridade.

A natureza

morta

continua à espera.

#1709

[Crónicas do vírus, CCLXXX]

 

Um campo minado 

– e é preciso indagar

sobre o (f)autor das minas?

#1708

[Crónicas do vírus, CCLXXIX]

 

Um campo minado 

– e não se sabe

quem fermentou as minas.

25.8.20

Madrigal

Não digas

“matar o tempo”

não vá o tempo

em braço de ferro

condenar-te

ao malogro.

Pois se eleges

este como o espaço teu

que saibas dotá-lo 

de uma cartografia.

E se em remissão

deres ornamento à fala

da gramática

cuida não haver dano.

Pois a gramática

é a cartografia da fala

e uma certa unção

do tempo.