[Crónicas do vírus, CCCLVIII]
Apetrechados de ciência
e somos o fardo
da nossa fragilidade.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Dei a fala ao gatilho
e ele empunhou miosótis
as suas pétalas
um poema contra
a decadência.
É o amanhã!
(Alguém exclamou)
Está a morder as bainhas
do todo-impoderoso saber
os destroços embainhados
no projeto de passado
sem as juras por inventariar
e os projetos por sair do estirador,
para não falhar.
Não é da fazenda puída
que contam os dedos válidos
nem da cruz alvoraçada
que se terçam mentiras.
Que se emalhem os pertences
(não há equívoco,
caro leitor:
o verbo é
emalhar)
no episódico insurgir da maré,
não por acaso chamada
maré-viva,
que o ponto de cruz
emoldura
para memória futura
os estragos da viva maré.
E depois
não há quem inquira
por que sortilégio do idioma
(ou distração dos peritos)
a uma maré destas
assim devastadora
se chama
maré-viva,
se tantas vezes o que espalha
é morte.
Muda
a consoante,
antes que a consoante
fique muda.
Contra a mudez
em remoinho
os novelos da fala
pouco podem terçar.
Mas se a consoante emudece
não perde ela serventia:
experimente-se outra extração
a consoante tornada invisível
e digam
se não faz falta
a consoante muda.
Fica provado:
um silêncio
é
(por vezes)
fala não tumular.
Regressado da ausência
reponho a hierarquia.
Anoto
as pessoas que passam
os rostos que vertem
uma quota de parecença
a paridade não desdenhada.
Anoto
o módico esvoaçar do dia
que esbraceja contra
a entediante peregrinação do mesmo
e colhe
abertamente lúcido
a flor válida que se oferece
à janela já não mitigada.
Diz-me
se a fala
é desta boca
ou apenas de um síndico
que papagueia as sílabas disformes
de uma fala sem passaporte.
Diz-me
se os morangos estão doces
e na fruteira se exibem os frutos
à espera da madurez.
Diz-me
que tenho ouro nas mãos
e que sabes ser santuário
com a procuração do meu corpo.
Diz-me
que não somos mudos ao outono
e que somos a fogueira que apaga o frio
enquanto a noite se demora na sua escassez.
Diz-me
que os dias são todos diferentes
e que o teu peito como ancoradouro
é a justa recompensa para o lugar porfiado.
E diz-me
antes que emudeça a noite
que atravessamos os carris desalinhados
subimos aos promontórios inacessíveis
desenhamos os mapas contingentes
fazemos rimas com o amparo das gargalhadas
e anoitecemos entrelaçados
como alimento recíproco
as almas desapoquentadas que se incensam
na luz não pálida apalavrada
pelas nossas bocas distintas.
Diz-me
que somos o étimo da singularidade
e dos dedos uníssonos
estilhaçamos os contratempos
e compomos as estrofes algorítmicas
que povoam o nosso espaço vital.
Diz-me
acima de tudo
o tudo que sobe à boca
sem que sobre nada por dizer.
Diz-me
em perene derrota
do silêncio castrador.
Este é o chumbo que tinge o tempo
uma mortalha irremissível
o protesto encorpado no vinco do rosto
sem estar à espera de nada
sem arrumar as esperas
para o relógio diuturno que arregaça o dia
sem arruinar os anéis vertidos em ternura.
Não são as mesas gastas
o palco adiantado ao crepúsculo;
não são as mãos suadas
que aquecem o arrefecimento noturno;
não são os jacarandás floridos fora do tempo
o atestado de salubridade do pensamento:
não há certidão lavrada no mosto da melancolia
e de vulcões ideados é colhida a sementeira
os juros a pagar no vindouro
entre a fala amuralhada e o vinho delituoso.
Não são os trovões medonhos
que acordam da hibernação plúmbea
nem o ocaso feérico se transfigura
em alvorada a destempo.
Esta é a boca ávida
o transiente esfacelar da fala anciã
a nova gramática
que desponta no viés das parras acobreadas
o autor sem nome nem paradeiro
um outono macilento
que desaprova a gente que o desaprova.
Este é o túmulo sem inquilino
a turfa tremeluzente que bebe toda a chuva
o mirífico legado do porvir jurado
em estandartes magníficos
na solene indumentária
da nudez.
A meação das intenções
no refúgio uterino
onde são patronos
os trovadores hesternos.
Os mapas são o crepúsculo das marés.
Na maré alta dos corpos
uma crisálida abre-se ao dia
exponencial
e dita as sílabas do poema mandatário.
Um diadema entroniza o dono do dia.
Amanhã não será dele.
Justas ou não,
as agonias somadas já não esperam em vão:
o esquecimento fez-se cimento
e as vigas de aço
emprestaram-se esteios ao frágil estertor.
[Crónicas do vírus, CCCXLVI]
A era
em que os recordes
deixaram de pertencer
às modalidades olímpicas.
O meu computador
é mais inteligente
do que eu.
Todos os dias,
sem que lhe tivesse pedido,
atira para a pasta do lixo
as mensagens daquele sujeito
insuportável.
Sem que lhe tivesse pedido.
O meu computador.
Mais inteligente.
Do que eu.
Pudera:
o meu computador
alinha na equipa
da inteligência artificial.
Ele terá de mim
melhor conhecimento
ou então
sou eu,
o da apenas inteligência espontânea,
que estou em défice de conhecimento
de mim próprio.
Mas
ao menos
o meu computador
não têm dívidas existências
e dúvidas ao banco
nem trava conhecimento
com lugares descobertos
nem se extasia com um livro
uma peça de teatro
um concerto de música
nem se enamora da mulher amada
nem testemunha a filha
a deixar de ser criança.
O meu computador
limita-se
a ostentar sobre mim
a superior inteligência
poupando-me
à conversão de incómodos
quando a sobredita personagem
bolça um qualquer asnear
na prolixa atividade de enviar
mensagens.
E eu
não invejo
o computador por ser
mais inteligente
do que eu:
a inteligência que me coube
(a tal, espontânea e humilde)
já não cabe em si
de tão tumultuosa.
[Crónicas do vírus, CCCXLV]
Às vezes penso
que tomámos todos
barbitúricos
e acordámos no meio
de um pesadelo.
O L. não gosta
que as músicas tenham
coros.
Perguntei porquê.
O L. foi evasivo
(e desconversou).
Gostava de saber as razões do L.
Não que queira por elas
medir as minhas:
é mau arrazoado
(diria o filósofo
cujo nome
o momentâneo esquecimento
tornou baço)
que a couraça das nossas ideias
seja assestada pelo fiel
das ideias dos outros.
O L. permanece enigmático.
Não tem importância.
O L. gosta de cães
e eu nunca perguntei
porquê.
[Crónicas do vírus, CCCXLIV]
“Dentro do possível”
– e ninguém ousa interrogar
fora do possível?
Nevrálgico,
o penso rápido
panaceia com caramelo
e refrigério em tocata breve.
Todo o homem
comporta a sua besta
e não há barragem alistada
que faça as vezes da romã
no eixo perpendicular do outono.
Há palavras que arrotam
um suicidário apessoado, breviário
letra de forma de impecável estética
e o soez gravitar no emparedado arguir.
Contam as contas
na pia batismal
onde se servem os ébrios
que um sábio sabe-o de dedutível fonte
mesmo com entorses à gramática.
O sorriso verseja
joga-se contra as lombadas
e os livros agredidos enxugam lágrimas
as que não são tartamudeadas
pelos meãos tenentes que a tudo dizem sim.
Ninguém venha ao engano
que no defraudário não se limam arestas
nem se encantam arrependimentos
(a menos que seja pecadora
a recompensa promitente).
[Crónicas do vírus, CCCXLIII]
(Variante do #1770)
Quase sempre
sermos fotocópias
é o mais próximo do possível.
[Crónicas do vírus, CCCXLII]
Do oráculo
dos profetas da catástrofe:
doravante
seremos apenas
fotocópias do que fomos.
Por que se confunde
castigo com punição
se os dois se entaramelam
numa nebulosa aflição?
Por que se aviva
o raio no limite do sol
se a trovoada se esconde
na cortina de obstruídas nuvens?
Por que se fala de tudo
na praça onde alta se nota a vozearia
se os alarves peritos se fundem
no impreciso palavreado?
Por que adormecem no estio
as bestas desemparelhadas
se os campinos estouvados
pedem meças na estultícia?
Por que se cultivam
os abraços e os corpos entrelaçados
se é no sexo
que eles se agigantam?
Por que assobiam estrofes
os desamantes sem espelho
se é no fojo sem batismo
que açambarcam os enteados da lógica?
Por que fingem os foragidos
que são estetas da compulsão
se a sua contumácia
é nosso deleite?