5.12.20

#1823

[Crónicas do vírus, CCCXCV]

 

Uma mortalha de suspensão

(ou um ano inteiro 

na jaula de um parêntesis).

4.12.20

Inversão de termos

Matéria-prima:

o azulejo apessoado

por dentro do olhar antecipado,

em estrofe tutelar

do provérbio em deserção.

A voz do xilofone

ouve-se ao longe.

O murmúrio da multidão

também.

As sílabas sobrepõem-se à maresia

em combate terçado sem gente

apenas no sortilégio das palavras:

das palavras que se embebem

no mar demiúrgico.

Umas, 

malditas,

aventuram-se

como primas da matéria fulcral;

outras, 

mal ditas,

oferecem-se ao ultraje dos ínscios

e constituem-se desperdício,

tumulares.

Os ladrilhos

tocam ao de leve com os dedos

nos olhos extasiados dos forasteiros.

Os nativos,

distraídos,

são os forasteiros

de sua própria cidade.

Não sabem 

do paradeiro dos azulejos.

#1822

[Crónicas do vírus, CCCXCIV]

 

Em choque frontal

utopia

e nostalgia.

3.12.20

Educated guess

“An educated guess”

combina o sexteto boémio

antes que pudesse ser

binómio.

 

E não pode ser apenas

“guess”?

Se cair o adjetivo

a “guess”

fica deseducada?

 

Ecoa um certo património

a balsa que resguarda

tremeluzentes nónios

que afiançam mesuras

um burburinho.

 

Uma voz escondida

em tom de repreensão

adverte:

os cavalheiros ficam a dever

aos pergaminhos

se não forem corteses;

em remate

(sentenciou a voz fantasma)

empregue-se o “educated”

como complemento de “guess”.

 

(Antes que os cavalheiros

deixem os pergaminhos em olvido

e trespassem

as portas do lupanar.) 

#1821

[Crónicas do vírus, CCCXCIII]

 

Espectros

palavras pequenas

a loucura do medo.

2.12.20

O país que não tem sobremesas

Metaforizava

a levedura extática

sem supor que na escotilha

vegetavam espiões

disfarçados de chefes de cozinha.

Uma voz troou

como se acabasse

com a feição dos minutos

e disse

de mote próprio:

este 

é o país

que não tem sobremesas.

As pessoas despacharam a proclamação:

um país que não tem sobremesas

não merece ostentar 

à lapela

o nome de país.

Foi quando um eremita,

conhecido citador de poetas

intelectual de velha cepa

(sem, contudo, 

se lhe conhecer safra própria)

contestou:

um país é como os pais

só que sem o acento tónico.

E quem não conhece pais

que não pedem sobremesa?

Ficou estabelecido

ao cabo de aturadas negociações

que um país está dispensado

de inventariar sobremesas;

ficou registado em ata

que um país

tem direito à dieta.

Não metaforicamente falando.

#1820

[Crónicas do vírus, CCCXCII]

 

Como sabemos

se o pai natal é fidedigno

com as barbas embaciadas

pela máscara?

1.12.20

Distopia

A próxima guerra

preso ao meu pé esquerdo

um sacrilégio

talvez

aposta cega 

no túmulo sem nome. 

 

Amanhecem as sombras tiranas

debruçam-se sobre o corpo

madraço

e em sua meação 

atordoam-no. 

 

A próxima guerra,

uma sem exércitos

nem artilharia,

não deixará a saliva intacta.

Metafísico

Deixaram-nos aqui

sozinhos

(desamparados)

mas temo-nos

uns aos outros.

#1819

[Crónicas do vírus, CCCXCI]

 

As vacinas.

Ou

o corte epistemológico

da peste.

30.11.20

#1818

[Crónicas do vírus, CCCXC]

 

A cortina

teimosamente vertida

às costas dos humanamente

frágeis.

29.11.20

#1817

[Crónicas do vírus, CCCLXXXIX]

 

Trigonometria

da melancolia.

28.11.20

#1816

[Crónicas do vírus, CCCLXXXIII]

 

A dissimulação

deixou de ser perseguida

pelos que pastoreiam

os bons costumes.

27.11.20

Niilismo

Não é 

a erma vindima

o magma furtivo

o emblema da ira

a seráfica encenação.

 

Não é

o adiamento provisório

as colcheias desamestradas

o vínculo sem furor

os degraus sem destino.

 

Não é

a compensação sem paradeiro

a eira banal

o verbo defenestrado

o rosto desfardado.

 

Não é

o tiro avulso

o penhor prometido

a pulsão meteórica

a justaposição de termos.

 

Não é

o não saber na casa

o não despojar o medo

o não fugir sem delação

o não arrumar as candeias gastas.

 

Não é

desaproveitar o ontem

reter a lágrima no peito

insultar o próprio nome

legar um nada cheio de tudo.

#1815

[Crónicas do vírus, CCCLXXXII]

 

Tão bem lançados íamos

veio este freio luciferino

trazer o mosto do retrocesso.

26.11.20

Adivinha

Que papel regido

serve ao obstáculo penhor?

As juras avessam o lugar

em servis comendas

que não têm cabimento.

Às manhãs consentidas

devolve-se a argamassa

o solene filamento que atravessa

o sangue apurado.

Se ao menos

a chuva viesse temporã

e as matilhas não angariassem

o medo

a maré seria sementeira

da filigrana avivada nos dedos.

#1814

[Crónicas do vírus, CCCLXXXI]

 

Somos

uma errata 

em movimento.

25.11.20

Entrelinhas

O que sabemos

das entrelinhas:

os nós invisíveis

que azedam a boca

e nós,

seus possíveis hermeneutas,

um vesúvio inteiro

a aguardar por exploração. 

 

O que tiramos

das entrelinhas:

o mosto indecifrável

semântica partida nas vírgulas

como se fosse fratura exposta

e do osso se visse apenas

o gesso. 

 

O que devemos

às entrelinhas:

o cofre forte da alma

o penteado maiêutico da palavra

a recusa do lugar-comum

no lugar reinventado

onde reinventadas 

se lobrigam as palavras. 

 

Por dentro

das entrelinhas.  

#1813

[Crónicas do vírus, CCCLXXX]

 

Somos, talvez,

uma farsa

na meação de uma grandeza

estilhaçada. 

24.11.20

Fundo perdido

Afundo, 

perdido,

o fundo perdido

antes que,

no fundo,

perdido seja o fundo

nos fundilhos

de um outro qualquer.

 

O fundo pedido

somado à funda tutelar

fundeia na pedra perdida

sem fundo à vista

na perdição da avareza

no sem fundo do pedinte perdido.

 

O fundo

perdido

em fundo,

pano de fundo,

autópsia de um caso 

perdido.

 

Pois 

aos casos em perdição

amestra-se o fundo sem fundo

perdido em tangente 

com os de perdida linhagem.

#1812

[Crónicas do vírus, CCCLXXIX]

 

A promiscuidade,

abatida

por decreto.

#1811

Crónicas do vírus, CCCLXXVIII]

 

Ainda ninguém se lembrou

de chamar a estes tempos

silly season

23.11.20

Propositado

Acerca da polémica:

estava divinal

o vinho servido

e os preparos amesendados

assim como a companhia. 

Falou-se 

da imprevisibilidade

da contingência em auge

contra os epílogos sedutores

da arte reduzida a um escol

dos beneplácitos dos serventuários

e de como estes se tornam

invisíveis suseranos

(oh! virtudes do regime magnânimo). 

E sobre a polémica:

divagamos sob o peso da maresia

até que o ocaso abriu as pestanas

e sob as flores sentadas à mesa

fizemos um poema.

#1810

[Crónicas do vírus, CCCLXXVII]

 

Na enseada da impaciência

onde se esgotaram

os sonhos de que perdemos memória.

22.11.20

#1809

[Crónicas do vírus, CCCLXXVI]

 

“Desta vez”

estamos convencidos

da nossa imensa fragilidade?

#1808

[Crónicas do vírus, CCCLXXV]

 

“Desta vez”

a conspiração

é-nos exterior?

#1807

[Crónicas do vírus, CCCLXXIV]

 

“Desta vez”

também fomos

os nossos carrascos?

21.11.20

#1806

[Crónicas do vírus, CCCLXXIII]

 

A quantas milhas estamos

da prescrição do bruxedo?

20.11.20

A demissão dos provérbios

Na charneca dos provérbios

mando calafetar o país

só para perceber

se consigo descolonizar

o lugar-comum.

No provérbio desalmado

extingue-se

a alma do dizedor

desfeita a um xis com valor de zero.

Falta saber

se no país dos provérbios

a alcatifa é medida bastante

para balbuciar os versos,

recanto existencial 

onde úbere tem provimento.

Na charneira entre duas fronteiras

abonado o inverosímil esteta

no esgotamento dos provérbios.

Até que sobre

a nova gramática

que dispensa bandeira a tiracolo.

#1805

[Crónicas do vírus, CCCLXXII]

 

(Desaprendizagem)

Deixámos

de saber fazer

com o que está

a acontecer?