[Crónicas do vírus, CCCXCV]
Uma mortalha de suspensão
(ou um ano inteiro
na jaula de um parêntesis).
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CCCXCV]
Uma mortalha de suspensão
(ou um ano inteiro
na jaula de um parêntesis).
Matéria-prima:
o azulejo apessoado
por dentro do olhar antecipado,
em estrofe tutelar
do provérbio em deserção.
A voz do xilofone
ouve-se ao longe.
O murmúrio da multidão
também.
As sílabas sobrepõem-se à maresia
em combate terçado sem gente
apenas no sortilégio das palavras:
das palavras que se embebem
no mar demiúrgico.
Umas,
malditas,
aventuram-se
como primas da matéria fulcral;
outras,
mal ditas,
oferecem-se ao ultraje dos ínscios
e constituem-se desperdício,
tumulares.
Os ladrilhos
tocam ao de leve com os dedos
nos olhos extasiados dos forasteiros.
Os nativos,
distraídos,
são os forasteiros
de sua própria cidade.
Não sabem
do paradeiro dos azulejos.
“An educated guess”
combina o sexteto boémio
antes que pudesse ser
binómio.
E não pode ser apenas
“guess”?
Se cair o adjetivo
a “guess”
fica deseducada?
Ecoa um certo património
a balsa que resguarda
tremeluzentes nónios
que afiançam mesuras
um burburinho.
Uma voz escondida
em tom de repreensão
adverte:
os cavalheiros ficam a dever
aos pergaminhos
se não forem corteses;
em remate
(sentenciou a voz fantasma)
empregue-se o “educated”
como complemento de “guess”.
(Antes que os cavalheiros
deixem os pergaminhos em olvido
e trespassem
as portas do lupanar.)
Metaforizava
a levedura extática
sem supor que na escotilha
vegetavam espiões
disfarçados de chefes de cozinha.
Uma voz troou
como se acabasse
com a feição dos minutos
e disse
de mote próprio:
este
é o país
que não tem sobremesas.
As pessoas despacharam a proclamação:
um país que não tem sobremesas
não merece ostentar
à lapela
o nome de país.
Foi quando um eremita,
conhecido citador de poetas
intelectual de velha cepa
(sem, contudo,
se lhe conhecer safra própria)
contestou:
um país é como os pais
só que sem o acento tónico.
E quem não conhece pais
que não pedem sobremesa?
Ficou estabelecido
ao cabo de aturadas negociações
que um país está dispensado
de inventariar sobremesas;
ficou registado em ata
que um país
tem direito à dieta.
Não metaforicamente falando.
[Crónicas do vírus, CCCXCII]
Como sabemos
se o pai natal é fidedigno
com as barbas embaciadas
pela máscara?
A próxima guerra
preso ao meu pé esquerdo
um sacrilégio
talvez
aposta cega
no túmulo sem nome.
Amanhecem as sombras tiranas
debruçam-se sobre o corpo
madraço
e em sua meação
atordoam-no.
A próxima guerra,
uma sem exércitos
nem artilharia,
não deixará a saliva intacta.
[Crónicas do vírus, CCCLXXXIII]
A dissimulação
deixou de ser perseguida
pelos que pastoreiam
os bons costumes.
Não é
a erma vindima
o magma furtivo
o emblema da ira
a seráfica encenação.
Não é
o adiamento provisório
as colcheias desamestradas
o vínculo sem furor
os degraus sem destino.
Não é
a compensação sem paradeiro
a eira banal
o verbo defenestrado
o rosto desfardado.
Não é
o tiro avulso
o penhor prometido
a pulsão meteórica
a justaposição de termos.
Não é
o não saber na casa
o não despojar o medo
o não fugir sem delação
o não arrumar as candeias gastas.
Não é
desaproveitar o ontem
reter a lágrima no peito
insultar o próprio nome
legar um nada cheio de tudo.
[Crónicas do vírus, CCCLXXXII]
Tão bem lançados íamos
veio este freio luciferino
trazer o mosto do retrocesso.
Que papel regido
serve ao obstáculo penhor?
As juras avessam o lugar
em servis comendas
que não têm cabimento.
Às manhãs consentidas
devolve-se a argamassa
o solene filamento que atravessa
o sangue apurado.
Se ao menos
a chuva viesse temporã
e as matilhas não angariassem
o medo
a maré seria sementeira
da filigrana avivada nos dedos.
O que sabemos
das entrelinhas:
os nós invisíveis
que azedam a boca
e nós,
seus possíveis hermeneutas,
um vesúvio inteiro
a aguardar por exploração.
O que tiramos
das entrelinhas:
o mosto indecifrável
semântica partida nas vírgulas
como se fosse fratura exposta
e do osso se visse apenas
o gesso.
O que devemos
às entrelinhas:
o cofre forte da alma
o penteado maiêutico da palavra
a recusa do lugar-comum
no lugar reinventado
onde reinventadas
se lobrigam as palavras.
Por dentro
das entrelinhas.
Afundo,
perdido,
o fundo perdido
antes que,
no fundo,
perdido seja o fundo
nos fundilhos
de um outro qualquer.
O fundo pedido
somado à funda tutelar
fundeia na pedra perdida
sem fundo à vista
na perdição da avareza
no sem fundo do pedinte perdido.
O fundo
perdido
em fundo,
pano de fundo,
autópsia de um caso
perdido.
Pois
aos casos em perdição
amestra-se o fundo sem fundo
perdido em tangente
com os de perdida linhagem.
Acerca da polémica:
estava divinal
o vinho servido
e os preparos amesendados
assim como a companhia.
Falou-se
da imprevisibilidade
da contingência em auge
contra os epílogos sedutores
da arte reduzida a um escol
dos beneplácitos dos serventuários
e de como estes se tornam
invisíveis suseranos
(oh! virtudes do regime magnânimo).
E sobre a polémica:
divagamos sob o peso da maresia
até que o ocaso abriu as pestanas
e sob as flores sentadas à mesa
fizemos um poema.
[Crónicas do vírus, CCCLXXVII]
Na enseada da impaciência
onde se esgotaram
os sonhos de que perdemos memória.
Na charneca dos provérbios
mando calafetar o país
só para perceber
se consigo descolonizar
o lugar-comum.
No provérbio desalmado
extingue-se
a alma do dizedor
desfeita a um xis com valor de zero.
Falta saber
se no país dos provérbios
a alcatifa é medida bastante
para balbuciar os versos,
recanto existencial
onde úbere tem provimento.
Na charneira entre duas fronteiras
abonado o inverosímil esteta
no esgotamento dos provérbios.
Até que sobre
a nova gramática
que dispensa bandeira a tiracolo.
[Crónicas do vírus, CCCLXXII]
(Desaprendizagem)
Deixámos
de saber fazer
com o que está
a acontecer?