13.1.21

#1866

[Crónicas do vírus, CDXXXVIII]

 

Tem desandado

o negócio dos novos amanhãs,

entrados que foram

numa rua que parece ter fim.

12.1.21

Impressionista

Costuro as feridas

com a saliva que efervesce

na maré alta. 

Devolvo ao areal

o tojo fundido nas varandas. 

O espaço 

é atapetado pelos anciãos. 

À razão do medo

os confettis desembaraçam-se das árvores

em beijos guturais que cauterizam a luz. 

Diziam:

é inútil cimentar as cicatrizes

se a pele não se emudece

na coreografia do tempo. 

Só os tolos

(e os majores risíveis)

estudam os ângulos que anoitecem o medo. 

Antes os melodiosos cantos das horas certas

o crepúsculo amotinado

um vesúvio a crestar na sombra dos mares

a cor mate que traz embaciados os olhos;

antes 

tudo isto

do que a carne viva

à espera 

de curadoria.

#1865

[Crónicas do vírus, CDXXXVII]

 

Não seremos mais

do que mandatários

das cicatrizes.

11.1.21

Moscovar

Não há Moscovo

que nos contente. 

 

Não há

iridescência

que sobre 

para as nossas silhuetas. 

 

Não há limites

que nos afugentem

do rogo da demanda

atirando-a 

umas léguas além. 

 

Não há frio

que nos emudeça

nem neves que sejam

perpétuas. 

 

Não há desidioma

a separar o corpo da fala. 

 

Não há modo sem ritual

nem guarida 

sem arranha-céus. 

 

Não há mosaicos 

em forma de vivos retratos

nem catacumbas tão ilustres. 

 

Não há museu igual

no reverso 

das memórias nocivas. 

 

Não há primavera

colonizada pelo inverno

num marco tardiamente ártico. 

 

Não há Moscovo

se não em Moscovo.

#1864

[Crónicas do vírus, CDXXXVI]

 

Ainda não aprendemos

que o arrependimento

não é a fiança da redenção.

10.1.21

#1863

[Crónicas do vírus, CDXXXV]

 

A confiança

em dose excessiva

é o coro da irresponsabilidade.

9.1.21

#1862

[Crónicas do vírus, CDXXXIV]

 

Um coro de farsantes:

os súbditos,

indisciplinados. 

exibindo-se como súbditos;

e os regentes,

que aproveitam

para exibir o músculo.

8.1.21

Degenerescência

O podre de um regime

não são os seus porteiros;

são as portas

que lhes damos

como legado. 

O podre dos porteiros

não é a vileza que os cobre

ou as meãs manhãs em que se entretecem

ou o coldre vazio 

em que oxalá fossem concebidos

ou a árvore enfastiada em que se entronizam;

é dos que selam o sufrágio

cúmplices em primeiro grau

as mãos que servem às luvas dos porteiros. 

O podre 

é da letargia incandescente

que de mote próprio faz alpinismo

às costas dos súbditos

instruindo-os na apatia.

#1861

[Crónicas do vírus, CDXXXIII]

 

O fio da navalha

rorejando toda a vingança

sobre os frágeis

(que não admite exceções).

7.1.21

Água mineral

Como se de uma barreira de coral se tratasse:

os dentes afiados contra as redes

e o farol centenário

ciciando um pesar orquestrado

que não amedronta os peixes.

Nem do salitre cuidam os barcos

que em águas tumultuosas

sem a guarida do porto

não sobra atalaia 

se não para o sopesar da embarcação.

Os nós enredam-se no crepúsculo:

têm de ser as mãos gastas dos marinheiros

a prevenir a redenção.

Não se diga

que a fartura pretérita se consumiu

nos corpos envelhecidos;

a maresia aspira o sal pelos poros

e embebe-se na ossatura dos marinheiros,

que ganham no tributo 

calibrado na vertigem do tempo.

Deixam as vírgulas esquecidas

num recanto da boca

como se as tivessem salivado

e elas,

sílabas estilhaçadas,

sobrassem,

despojos, 

nas pregas dos lábios.

#1860

[Crónicas do vírus, CDXXXII]

 

Casino ou carrossel

uma certeza embolsamos:

estamos perdedores. 

6.1.21

#1859

[Crónicas do vírus, CDXXXI]

 

Fugitivos

da fragilidade,

empossados párias

sem remédio.

Contabilidade das palavras

Todas 

as palavras

contam. 

É nesta

aritmética suada

que habito. 

E se contam

as palavras todas

subo aos contos

narrador acidental

embriagado

com o vocabulário sedoso,

emoldurado. 

Com

todas

as palavras

contadas

no vagar das sílabas

chamando

os nomes

e as coisas

nelas desenhando

os rostos

os corpos

um amontoado de equações

amanhecidas

na contabilidade das palavras. 

#1858

[Crónicas do vírus, CDXXX]

 

(Uma) 

Tragédia dos comuns 

– e como a expressão

se tomou de propriedade.

5.1.21

Pontos nos is

Pontos nos is

para que vos quero?

 

Pois 

se na Turquia

há is que não levam ponto

e não consta

que a Turquia tenha sido

desqualificada.

 

Pontos nos is

mordaça institucionalizada

a pedir uma re-gramática

 

(pois se 

há quem dispense pontos finais

e outros 

dos parágrafos fazem tábua-rasa

e outros ainda

desconhecem maiúsculas 

como inauguração de orações);

 

pois 

os is mantêm validade

mesmo que venham amputados

de pontos

e ninguém nos pediu

para vertermos os pontos nos is

pois 

tudo ficou aclarado

no cancioneiro do entendimento:

 

nos is sem pontos

que is se continuam a ter.

#1857

[Crónicas do vírus, CDXXIX]

 

O povo

a fazer a vontade

aos adágios que vulgarizou:

à segunda onda

segue-se a terceira,

sem demora.

#1856

[Crónicas do vírus, CDXXVIII]

 

Estamos fechados 

num quarto

e a porta 

só abre por fora.

4.1.21

Floral

Povoadas as floreiras

com o suor ungido

ajardina-se o verbo

nas cicatrizes consuetudinárias. 

Um punhado de artes,

ou apenas o inescrúpulo larvar,

cimentam a pele emaciada:

se dantes 

os canteiros desenhavam as cores

agora

entediam-se com o macilento rosto

da invernia que não se apieda. 

A ossatura entoa os queixumes,

rima com a duração plúmbea

que agiganta os pesares 

pelos soalheiros dias. 

Sozinhos

os dias breves

remedeiam-se 

à medida que as cinzas das lareiras

fazem cama

ao esquecimento. 

#1855

[Crónicas do vírus, CDXXVII]

 

O desleixo dos súbditos

para gáudio dos regentes.

3.1.21

#1854

[Crónicas do vírus, CDXXVI]

 

Alvíssaras

à argamassa 

do povo.

2.1.21

Anátema

A frívola 

facilidade

com que se confunde

felicidade

com facilidade.

#1853

[Crónicas do vírus, CDXXV]

 

Joga-se o trunfo

à espera que seja 

centelha.

1.1.21

#1852

[Crónicas do vírus, CDXXIV]

 

Neófito,

tem autoridade o ano

para a remissão?

31.12.20

#1851

[Crónicas do vírus, CDXXIII]

 

Dois mil e vinte,

game over?

30.12.20

Montemuro

Do lado certo 

a montanha desenha-se na luz.

Rasgos de crueldade

na tribuna de um rebanho

 

(qual será a primeira rês

a deixar de contar

no inventário dos vivos?)

 

Amortecem a urze sob os cascos

com o mais alto patrocínio

do cão tutelar.

A neve arrancada ao chão

dissimula-se

nos ventres opados

como se fossem vitaminas órfãs

só à espera da confirmação do algoz.

Será rubra

a neve ensarilhada

sob o jugo do punhal severo.

Será assim tingida

a abundante água

vertida pela serra. 

A narrativa congemina-se:

não é crueldade

é o oximoro

da beleza serrana.

#1850

[Crónicas do vírus, CDXXII]

 

A euforia

no logro

do destempo? 

28.12.20

#1849

[Crónicas do vírus, CDXXI]

 

A euforia

na pauta

da vacina. 

27.12.20

Porte

O porte turvado

silhueta, 

apenas:

ou um corpo dissolvido

na bruma retesada

o domínio arrumado

no avesso de um verso.

E, contudo,

os lobos exibem-se,

famintos,

dançando no fio da água.

Não amedrontam

em seu porte

avulso.

#1848

[Crónicas do vírus, CDXX]

 

O estranhamento

ainda não se desentranhou.

26.12.20

#1847

[Crónicas do vírus, CDXIX]

 

Sobramos metade

da fração 

que já éramos.