[Crónicas do vírus, CDXXXVIII]
Tem desandado
o negócio dos novos amanhãs,
entrados que foram
numa rua que parece ter fim.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CDXXXVIII]
Tem desandado
o negócio dos novos amanhãs,
entrados que foram
numa rua que parece ter fim.
Costuro as feridas
com a saliva que efervesce
na maré alta.
Devolvo ao areal
o tojo fundido nas varandas.
O espaço
é atapetado pelos anciãos.
À razão do medo
os confettis desembaraçam-se das árvores
em beijos guturais que cauterizam a luz.
Diziam:
é inútil cimentar as cicatrizes
se a pele não se emudece
na coreografia do tempo.
Só os tolos
(e os majores risíveis)
estudam os ângulos que anoitecem o medo.
Antes os melodiosos cantos das horas certas
o crepúsculo amotinado
um vesúvio a crestar na sombra dos mares
a cor mate que traz embaciados os olhos;
antes
tudo isto
do que a carne viva
à espera
de curadoria.
Não há Moscovo
que nos contente.
Não há
iridescência
que sobre
para as nossas silhuetas.
Não há limites
que nos afugentem
do rogo da demanda
atirando-a
umas léguas além.
Não há frio
que nos emudeça
nem neves que sejam
perpétuas.
Não há desidioma
a separar o corpo da fala.
Não há modo sem ritual
nem guarida
sem arranha-céus.
Não há mosaicos
em forma de vivos retratos
nem catacumbas tão ilustres.
Não há museu igual
no reverso
das memórias nocivas.
Não há primavera
colonizada pelo inverno
num marco tardiamente ártico.
Não há Moscovo
se não em Moscovo.
[Crónicas do vírus, CDXXXVI]
Ainda não aprendemos
que o arrependimento
não é a fiança da redenção.
[Crónicas do vírus, CDXXXIV]
Um coro de farsantes:
os súbditos,
indisciplinados.
exibindo-se como súbditos;
e os regentes,
que aproveitam
para exibir o músculo.
O podre de um regime
não são os seus porteiros;
são as portas
que lhes damos
como legado.
O podre dos porteiros
não é a vileza que os cobre
ou as meãs manhãs em que se entretecem
ou o coldre vazio
em que oxalá fossem concebidos
ou a árvore enfastiada em que se entronizam;
é dos que selam o sufrágio
cúmplices em primeiro grau
as mãos que servem às luvas dos porteiros.
O podre
é da letargia incandescente
que de mote próprio faz alpinismo
às costas dos súbditos
instruindo-os na apatia.
[Crónicas do vírus, CDXXXIII]
O fio da navalha
rorejando toda a vingança
sobre os frágeis
(que não admite exceções).
Como se de uma barreira de coral se tratasse:
os dentes afiados contra as redes
e o farol centenário
ciciando um pesar orquestrado
que não amedronta os peixes.
Nem do salitre cuidam os barcos
que em águas tumultuosas
sem a guarida do porto
não sobra atalaia
se não para o sopesar da embarcação.
Os nós enredam-se no crepúsculo:
têm de ser as mãos gastas dos marinheiros
a prevenir a redenção.
Não se diga
que a fartura pretérita se consumiu
nos corpos envelhecidos;
a maresia aspira o sal pelos poros
e embebe-se na ossatura dos marinheiros,
que ganham no tributo
calibrado na vertigem do tempo.
Deixam as vírgulas esquecidas
num recanto da boca
como se as tivessem salivado
e elas,
sílabas estilhaçadas,
sobrassem,
despojos,
nas pregas dos lábios.
Todas
as palavras
contam.
É nesta
aritmética suada
que habito.
E se contam
as palavras todas
subo aos contos
narrador acidental
embriagado
com o vocabulário sedoso,
emoldurado.
Com
todas
as palavras
contadas
no vagar das sílabas
chamando
os nomes
e as coisas
nelas desenhando
os rostos
os corpos
um amontoado de equações
amanhecidas
na contabilidade das palavras.
[Crónicas do vírus, CDXXX]
(Uma)
Tragédia dos comuns
– e como a expressão
se tomou de propriedade.
Pontos nos is
para que vos quero?
Pois
se na Turquia
há is que não levam ponto
e não consta
que a Turquia tenha sido
desqualificada.
Pontos nos is
mordaça institucionalizada
a pedir uma re-gramática
(pois se
há quem dispense pontos finais
e outros
dos parágrafos fazem tábua-rasa
e outros ainda
desconhecem maiúsculas
como inauguração de orações);
pois
os is mantêm validade
mesmo que venham amputados
de pontos
e ninguém nos pediu
para vertermos os pontos nos is
pois
tudo ficou aclarado
no cancioneiro do entendimento:
nos is sem pontos
que is se continuam a ter.
[Crónicas do vírus, CDXXIX]
O povo
a fazer a vontade
aos adágios que vulgarizou:
à segunda onda
segue-se a terceira,
sem demora.
Povoadas as floreiras
com o suor ungido
ajardina-se o verbo
nas cicatrizes consuetudinárias.
Um punhado de artes,
ou apenas o inescrúpulo larvar,
cimentam a pele emaciada:
se dantes
os canteiros desenhavam as cores
agora
entediam-se com o macilento rosto
da invernia que não se apieda.
A ossatura entoa os queixumes,
rima com a duração plúmbea
que agiganta os pesares
pelos soalheiros dias.
Sozinhos
os dias breves
remedeiam-se
à medida que as cinzas das lareiras
fazem cama
ao esquecimento.
Do lado certo
a montanha desenha-se na luz.
Rasgos de crueldade
na tribuna de um rebanho
(qual será a primeira rês
a deixar de contar
no inventário dos vivos?)
Amortecem a urze sob os cascos
com o mais alto patrocínio
do cão tutelar.
A neve arrancada ao chão
dissimula-se
nos ventres opados
como se fossem vitaminas órfãs
só à espera da confirmação do algoz.
Será rubra
a neve ensarilhada
sob o jugo do punhal severo.
Será assim tingida
a abundante água
vertida pela serra.
A narrativa congemina-se:
não é crueldade
é o oximoro
da beleza serrana.