[Crónicas do vírus, CDLXXXVII]
Os dias
continuam a ser
como bolos cobertos de sal.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CDLXXXVI]
Dizem que não houve carnaval.
Mas é mentira.
Na rua
andam todos mascarados.
O retiro
ou mais:
o lúgubre lugar
exílio das palavras embaçadas
penhor ávido
das deslembranças.
Ou retiro
às mealhas da memória
o corpo extático
e no alpendre
que tutela o rio
agiganto o eu novo
que se retira
à hibernação gorada.
No retiro ermo
ou mais:
na fuga que desmata
os medos de seus olhos
desvenda-se o mapa
tecido
pelos dedos não gastos
mercancia da alma sem freio
oráculo sem medida do tempo.
Retiro-me
a tempo do destempo
que me entroniza
e acredito
no póstumo candelabro
vertendo a cera derruída
pelas lágrimas esquecidas.
Desse retiro
onde sou o que serei:
montanha sem neve
impressão digital da primavera cega
rio estrepitoso
cavando o seu caudal
com as mãos não gastas
e o selo
de um olhar sem medo.
Temos a sombra da pérgula
enquanto se agiganta a boca do sol
e o estio merecesse castração.
Pela janela
coabitamos o olhar
ciciamos por uma réstia de maresia.
O palco não está de feição
esta fornalha intempestiva,
como se as palavras bombistas
subissem à boca
e só déssemos conta
quando,
ativadas pela saliva aterrada,
tomassem conta do corpo inteiro.
Tal como a fornalha em riste
contra o frescor do corpo
que exsuda, furiosamente;
o corpo
como se conspirasse
em autofagia.
[Crónicas do vírus, CDLXXXIV]
Não podemos
convocar o esquecimento
e fingir o desacontecimento do tempo.
Não lês
o que está
entre parêntesis?
Erro de julgamento.
O que se esconde
dentro do parêntesis
é ouro entre vulgatas.
[Crónicas do vírus, CDLXXXII]
Uma peste
com saudades do maio de 68.
(Vendo as guedelhas
que os varões apresentam.)
I
O furtivo gato vadio
esgueira-se entre duas paredes.
Não tem pertença.
Disso se alvitra
dos gatos que dizem ser vadios.
Mas o gato tem um paradeiro,
como pode ser vadio?
II
Os pianos à espera de venda
não se ensinam na mudez.
Junta-se em finas camadas
a poeira versátil que os desafina.
Os pianistas não andam por perto.
Os pianos exibem a sua contumácia.
III
O embaixador debita o gongórico pesar
enquanto o mundo puído
cuida da sua decadência.
Se tivesse havido tirocínio
fora dos salões diplomáticos
o embaixador libertar-se-ia dos laços solenes
enfim imberbe na hermenêutica do mundo.
IV
O fundo ácido das palavras espontâneas
contraria o desaguisado com a eira da alma.
O passo incerto acerta as horas,
ditas por uma clepsidra submersa.
As ilusões não são a terraplanagem hasteada,
o olhar devolvido ao teatro dos sonhos.
V
Veio uma amostra do tempo lúdico.
Em vez de preces
(não atendidas),
uma voz rude.
A cortesia pertence ao pretérito,
embrulhada em verbos contrafeitos
e personagens vazias de memória.
É vetusto o singrar na solidão:
vetusto e sem propósito
a semântica sem falantes em nome próprio.
Lúdico é a lucidez sobrante.
VI
O mapa abraçado ao diadema
povoa as cintilações desarmadilhadas.
Oxalá o mapa haurido seja destronado
pelo envelhecer consentido,
sem pressa.
Os mapas desaprendem-se
no eterno desejar de tudos sem hipótese.
VII
O gato vadio
não sabe o que é o mar.
Mas o mar fala connosco
conta-nos os segredos
que são os nossos segredos.
A manhã avivada
enumera os verbos alimentares
enquanto o tempo urde as suas personagens.
Não consta
que os gatos
(vadios ou não)
procurem o mar como azimute.
VIII
A armadilha sob o olhar
disfarça-se de beatífico rosto.
As árvores acinzentadas pelo dia chuvoso
martirizam-se
não lhes sai da cabeça
que foram inventadas
para ornamentos de dias ungidos pelo sol.
IX
Antes o despenhor dos gatos vadios
do que a fórmula narcisista
de anjos agonizantes
presos
às cortinas da memória
e à tirania da pertença.
[Crónicas do vírus, CDLXXXI]
Quando isto tudo terminar.
A centelha de desesperança
que mais ecoa nas bocas.
Não será a voz sem nome.
Não será o ocaso adiado.
As ferragens do dia
espalhadas no sótão do pensamento
guardam as sílabas que esperam vez.
Não será por causa dos nomes sem voz.
Não será por causa do adiamento esquecido.
O caudal frugal
despenha-se no dorso cansado
e usurpa a lucidez desembaraçada.
Não será do nome que traz uma voz.
Não será do ocaso que súplica vez.
Os armadores dos sentidos
povoam a geografia das almas
sem espera de recompensa.
Não será através do medo.
Não será através dos sonhos.
Os trunfos amuralhados
revoltam-se nas costuras da manhã
e atravessam o leilão marcado para um ermo.
[Crónicas do vírus, CDLXXVIII]
E apesar do arcaísmo
para que somos atirados
fugimos para o futuro
através de ideias fecundas.
Não quero ser
astronauta:
o mundo
não é para ser visto
de fora.
Ou,
sendo assim olhado,
senti-lo exterior se torne vício,
terapêutico ao fazer esquecer
as suas imensas fragilidades,
e seja o apetite
para os pés não voltarem a sentir
a boca da terra.
Não me digam
o que não é falável
na circuncisão do olhar
pelas lágrimas repressoras
de altivos sicários de almas.
Prefiro desfalar
o que é falável
usar a baioneta da palavra
fecundar a dissidência
no altar
onde
só vozes caiadas
colhem identidade.
Não me obstruam o mar
que as minhas ondas se sobrepõem
aos paredões indigentes.
Não levem
o ouro que trago na pele
que a nudez remanente
é pólvora
ateada no quartel dos fracos.
Não me digam
o que tenho caução para dizer
que serão essas as palavras
que faço sussurrar na boca,
continuamente.
Não desembaracem fronteiras
que eu próprio me faço salteador
e desembarco numa baía
onde o areal se declarou
livre
de magistrados castradores.
No pé de página
onde a atenção se dissolveu
os nomes que oferecem a inspiração.
É por isso
que odeio os rodapés:
não passam de ornamentos
um enchimento de página
prova dada
das leituras encomendadas.
Ao pé de página
devia estar apenas
o número
e não os nomes
que quase não passam
de analgésicos números.
[Crónicas do vírus, CDLXXIV]
A mnemónica necessária:
quando será a descolonização
do vírus maldito?
O penhor sem alma
toma de assalto a renda alheia
ao notar
os excruciantes pesares
dos penhorados.
Usurários,
os juros,
combinam com a aspereza da alma
(afinal, tem-na,
mas de mau calibre).
O penhor
desalma os penhorados.
Estes,
em farta súplica,
pedem
(e fazem-no “penhoradamente”)
para haver lugar a alguma indulgência.
O penhor
homem pouco letrado
não sabe o significado de “indulgência”
e tem vergonha de perguntar
(ou de deitar mão a um dicionário
sob o olhar inquisitivo dos outros).
Recusa a súplica,
compulsivamente desconfiado.
Os penhorados perdem tudo.
O penhor
sem saber da vicissitude
perde
o que perderam os penhorados:
não há vivalma
que dê um cêntimo
por aquele pecúlio penhorado.
Termos em que se pode epilogar
reconhecendo
que o penhor foi devorado
pela avareza
(e pela necedade).