29.3.21

Vacina (contra o excesso de sapiência)

Do tumulto

em forma de lápis

sobra uma montra,

o edificado de palavras

que se sublevam

no tirocínio dos cientistas.

Não se contêm,

as vírgulas e os adjetivos,

no mote da sobre-palavrosa lápide

onde costumam ter poiso

os grandes eruditos.

 

[Instrução de leitura: 

prolongar o som da primeira sílaba

na palavra “grandes”.]

#1960

[Crónicas do vírus, DXXXII]

 

Apenas silhuetas

ou mortalhas

sem nada por dentro.

28.3.21

Extinção da espécie

Repito-me.

Não tenho mais nada

para dizer.

O ferro solto

espera pelo selo abraseado

enquanto a fogueira se excita

e o amordaçado ferve de medo

(disfarçado de brio).

Não se estilhaçam 

os verbos exauridos:

os carrosséis amadores

não se agigantam 

no avesso das dores

e as palavras repetidas

podem não ser matéria gasta.

Repito-me.

Talvez

por não ter nada mais

para dizer;

ou talvez

porque essas palavras

resumem o medo do amordaçado

antes de ser marcado

com o brasão dos estultos. 

Repito-me:

o brasão lacrado na pele

é a pior das tatuagens perenes.

#1959

[Crónicas do vírus, DXXXI]

 

O hálito descarnado transpira

na caverna onde a peste

gravou a devastação.

27.3.21

#1958

[Crónicas do vírus, DXXX]

 

Uma espada

perpendicular,

sem saber se abate

sobre as inocentes cabeças. 

26.3.21

Metáforas disfarçadas de anjos

Ao canto da mesa

escondem-se vultos

disfarçados de anjos, 

imberbes.

 

Falam.

 

Sobre eles

adejam caixas de diálogo

com as legendas do que dizem.

 

Nota-se a profusão de onomatopeias.

 

Ninguém apurou

se os querubins falavam

por interposta metáfora

ou se eram literais 

– termos em que

seriam disfarces de anjos

ou os anjos neófitos 

ganharam autorização

(superior)

para o vernáculo.

 

Falta o apuramento dos factos

sem o qual

o sono não deixa de produzir efeitos

e os demais

não são destinados ao desamparo de causa.

#1957

[Crónicas do vírus, DXXIX]

 

Exortação:

não percamos de vista

o juízo 

(na forma do siso, que nem sempre há).

Como se adolescentes 

fôssemos todos.

25.3.21

#1956

[Crónicas do vírus, DXXVIII]

 

(Variante do #1955)

 

Somos contramestres

da originalidade

quando menos dela

precisamos.

Diurese semântica

Estou zangado com as palavras

e atiro a matar

contra as claras que se acastelam

no hipotálamo da cisão.

Não sei se as rasuro,

às palavras dissidentes,

pelo topete de se agigantarem contra mim

e quererem colonizar o meu sangue.

É desigual

o terçar de armas:

as palavras nem sabem 

que com elas me zango

e não darão devida conta

do meu rasurar impenitente.

Mas essas palavras insubmissas

que torpedeiam o meu apenas estar

 

(não poderia dizer que é bem-estar)

 

colhem o lilás das bandeiras

e enfeitam as janelas com cadáveres de flores

povoando os lugares 

com pútrida

poluição.

Não viro a cara ao terçar de armas

com as palavras com que me zanguei,

por mais que elas esbarrem

fragorosamente

no conceito do meu rosto 

que parece

a carne para canhão

 

(como é na linguagem castrense).

#1955

[Crónicas do vírus, DXXVII]

 

Nos outros

um passo atrás

para dois à frente

e nós

um passo à frente

para dois atrás?

24.3.21

Papel por gastar

As recordações do futuro 

– dizias, 

mastigando os despojos de um dia

que parecia o disfarce do tempo.

A boca murmurava os hábitos

e as páginas precisavam de aval

para serem levadas a sério.

 

Não tenho um oráculo 

– dizia,

olhando para a escotilha

que vigiava o mar errático.

Os gatos apreciam a noite

e as sentinelas não se apagam

no crepúsculo kamikaze.

 

Acredito no futuro flamífero 

– dizias,

enquanto atiravas fósforos

contra as montanhas que se levantavam

perto do posto de vigia

mesmo na embocadura do nevoeiro.

 

Não sei dos fogos vindouros 

– dizia,

desde o palácio dos frutos prometidos

dando água aos poetas

que não capitulavam aos barbantes 

das almas aprisionadas por dentro de si.

#1954

[Crónicas do vírus, DXXVI]

 

No puzzle dos acasos

somos peões, 

na espera da lotaria.

23.3.21

Dos sobreiros de que se avistam (courela)

Vulgo

o carcereiro da sorte

contra o cão que mija no desdém

sob a vista atenta

do Morfeu (que estava) atrasado

deixando em pulgas

a esgrimista adónica.

 

Vulgo

a mortalha caída na linha do metro

enquanto o cego balbuciava

uma cançoneta dos National

e as colegiais ignoravam,

exiladas no casulo dos auscultadores.

 

Vulgo

o peão anónimo

em andanças contra a vida

enquanto a vida conspirava

(na maneira de ver do peão anónimo)

na borda de um pão seco

esfarelado por um velho na ilharga do lago

enquanto o farsante

bem disfarçado

(ou não fosse o farsante)

se escondia dentro da gabardina XXL.

 

Vulgo

um teatro sem agenda

corrompe o povaréu indiferente

com mulheres nuas

desmúsica popularucha

e couratos banhados em unto 

– só para ver

se a populaça comparece

 

(e para tirar as conclusões a preceito).

#1953

[Crónicas do vírus, DXXV]

 

Da desinfeção dos apóstatas,

ou o tumultuoso 

amanhecer contínuo.

22.3.21

Memória

Jurava que o contexto

era a parte do verbete

que menos interessava. 

Os dias movem-se

pelos dados atirados ao jogo

e ninguém tinha uma teoria

sobre o comportamento dos dados

(e a correspondência dos feitos).

Podia ser da marcha-atrás 

que às vezes é o penhor em falta

ou apenas 

a indizível farsa

desenhada na silhueta das palavras. 

E elas, 

as palavras,

reunidas na boca do vulcão,

acertadas no limiar do medo,

entoavam uma prece 

murmurada no estreito muro das sílabas

enquanto à volta a chuva entrava no cais

e as palavras impetravam

a luz sibilina que juntava as bocas ávidas. 

As sílabas abraçavam-se

num tentava

não vã

de compor os lados visíveis dos sonhos. 

Numa estimativa aproximada

as pessoas alinhadas no sopé do vulcão

esperavam pelo sinal das palavras

como se elas fossem 

o rastilho sem embaraço

o caudal que se oferecia ao navio

ainda em doca seca,

a contrafação dos boçais. 

Já ninguém esperava

pelos engenheiros das almas. 

O palco está cheio de partidas. 

Por cada tempestade

antecipam-se manhãs puídas

os olhos macilentos 

esconjuram as marés vivas

deixando a água a remoer-se 

no tamanho do dia. 

Não sabiam do que estavam à espera

as palavras pacientes na embocadura do vulcão

e as pessoas que as testemunhavam tão pouco,

como se as palavras 

pudessem ser ateadas pela lava

que ninguém esperava. 

O palco estava armadilhado,

alguém sussurrou. 

Logo se saberia

quando o fermento transbordasse do estuário

e a matéria-primasse se cindisse

nas estrelas avulsas que tutelam as juras. 

#1952

[Crónicas do vírus, DXXIV]

 

O efeito

mostarda de Dijon

quando as zaragatoas

forem invasoras dos narizes.

21.3.21

Areia molhada

Quando era criança

não sabia dos poetas. 

Quando 

o tempo chegou

deixei de saber

como é ser criança.

Casa

“They turn houses into homes (...)”.

Eistürzende Neubauten, “Youme & Meyou”

 

Não é apenas o cimento

os móveis que obedecem

ao manual de estilo

os cortinados

que reservam o interior

o número de assoalhadas

o crédito hipotecário

e o condomínio

a paisagem fruída à janela

o código postal

as fundações que ficaram escondidas:

é a casa com nome próprio

o mundo reservado

que não cabe 

na vaga do mundo inteiro

as paredes que respiram

as almas residentes

sob o pseudónimo de poetas

servidos à refeição. 

#1951

[Crónicas do vírus, DXXIII]

 

A ferro e fogo

o nome do insurgente

no esqueleto de um submarino.

20.3.21

#1950

[Crónicas do vírus, DXXII]

 

Um lápis vermelho

constantemente

a rasurar o futuro. 

19.3.21

Ecuménico

Tinjo

a aguarela

com o sangue

do desespero.

O sangue

não é meu,

nem o desespero.

Apenas os ouço

em surdina

querendo feitoria

no meu alabastro.

Da aguarela

pressentem-se

as cicatrizes do medo.

O oráculo

invade o tempo

leva-o

a um forasteiro lugar.

Disseram

que a aguarela

já puída

perdeu valor.

Conservo a moldura

por via das dúvidas

não vá ser precisa

para emudecer

o desespero

por ora

apenas em surdina.

A aguarela

tem paradeiro incógnito.

Nem os aflitos

que a assinaram

convocam a sua posse. 

#1949

[Crónicas do vírus, DXXI]

 

Momento heurístico da peste

(redescoberta do vocabulário):

postigo.

#1948

[Crónicas do vírus, DXX]

 

Uma fundação

engenhosamente artilhada

prepara-se para resistir 

aos seus escombros.

18.3.21

Enigma

Consigo consigo 

– e não revelo 

por que ordem 

aparece o verbo.

 

(E devo dizer

que a ordem

não é arbitrária.)

#1947

[Crónicas do vírus, DXIX]

 

Este caminho

cheio de acúleos

no biscate de uma redenção 

imperativa.

17.3.21

Franco atirador

O franco atirador

é um fraco atirador

(ou pretendente a ditador).

Pouco lhe vale

ser um atirador franco

que a franqueza

não é atestado de pontaria.

As guerras de todos os tempos

ficariam a ganhar

se os beligerantes

fracos atiradores fossem:

as balas perdidas 

seriam proveito para a humanidade,

à medida que fossem destinadas 

ao fosso.

Montra

[Ólafur Arnalds, “Re:member”]

 

Rasgo o céu com um verso órfão. 

Deixo à mercê da boca quente

o gelo sem pátria,

o vulcânico pedaço na maré baixa

a tocha nas mãos a povoar o entardecer. 

Deito ao céu

a jura que se amotina

e da carne íntegra tenho a medida certa,

as palavras de que sou embaixador.

#1946

[Crónicas do vírus, DXVIII]

 

Abotoar o desmedo

na alquimia da contingência.

16.3.21

18:34 (17:34 nos Açores)

Esta é a ponte sem abismo

o logotipo dos amadores

verbo ajuramentado no colóquio dos eruditos. 

 

Este é o degrau rombo

na escadaria dos ilustres

em falta a passadeira vermelha

e o acetinado tecido da cortina

que desce sobre a cena,

cobrindo-a com o fim. 

 

Este é um lampejo de lucidez

a fria matéria campestre 

no algoritmo dos amanuenses

distopia contra os madraços da folia. 

 

Esta é a folha em que maceram

à espera de dia nenhum

andaluzes alfarrabistas de livros sem edição

os milhafres que espiam a sombra escassa

no auge do Verão. 

 

Esta é a geografia distante

uma paisagem lunar que se agiganta no mapa

atirando o olhar contra o nanismo dos seres

enquanto coiotes febris procuram o coldre

e as presas emudecem no crepúsculo. 

 

Este é o contrabando que dissolve as almas

penhores inválidos de um oráculo dispensado

enquanto às mãos dos marinheiros

vem uma esfíngica bailarina 

em forma de estatueta de cera

(quando sereias tinham sido prometidas).

 

Esta é a pergunta sem fronteiras

o contrabando da lógica

em passarelas de nevoeiro

que pedem um arnês. 

 

Esta é a pose senhorial

o esfíngico balbuciar de impropérios

no amuralhado silêncio

contra os mastins que a fala adulteram. 

 

Esta é a pista venal

o rosto lodoso, irrepresentável,

o cerco tentacular à adivinha sem resposta

o pulcro que espera pela prescrição. 

 

Este é o diadema sobrante

o tiro de partida para a decadência

no alistamento de muitos

e resistência de uns poucos

na haste visível de um minarete de ouro

enquanto o vento traz o perfume do rio

que se espalha pelos interstícios da cidade

e se abraça ao dia vindouro. 

 

Este é o espelho

antes de ser estilhaçado

pela força centrífuga de um sismo

o espelho agora despedaçado

fronteira renascida

à espera do rastilho da maré. 

 

Este é o pinheiro matricial

o bravo escudeiro dos sublevados

bandeira hasteada no pórtico da ponte

que não esperou pelo abismo.

#1945

[Crónicas do vírus, DXVII]

 

Só estamos à espera

de um sinal

para sermos nómadas

outra vez.