[Crónicas do vírus, DCXLIII]
A História é feita
de histórias
que nunca mais acabam.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Se falamos
a linguagem da lua
somos mandatários maiores
dos mapas em segredo.
Se ao luar
trazemos um caiar
juramos as estrofes sem tempo
que coabitam nas mãos.
Se da lua
habitamos a sua lava
hasteamos a alma crepuscular
e aprendemos a modéstia.
Se não é estranho
o idioma que nos sagra
é por termos terraplanado as crateras
que infundiam os medos.
[Crónicas do vírus, DCXLI]
Num mergulho pelo medievalismo,
os arcaicos que fogem das seringas
como (diz-se)
o diabo foge da cruz.
O jogo furtivo
aquece nas telhas rubras
da tarde soalheira.
Mandatamos um de nós
para ser teste-de-ferro da provocação,
sem saber se o fazemos
por preguiça ou por utilidade
(alguém sugere
que não podemos falar todos
ao mesmo tempo).
É como deixar a palavra embebida
numa ruela lisérgica
enquanto a tarde se consome
e arrefece nos corpos à sombra.
O lugar de procurador de todos nós
fica deserto.
No jogo do empurra
sobra o abismo onde não há vivalma.
Já prefaciava o adágio
sobre cães danados e vozeiros
e almas estranhamente silenciosas.
[Crónicas do vírus, DCXL]
Manual para lidar com uma peste
(segundo os regentes em funções):
sucessivas camadas de desigualdade
umas em cima das outras.
O silêncio
não é estrutural.
A bandeira que o traduz
não é um ocaso.
O silêncio
compreende todas as palavras.
As videiras arcanas
habilitam a fala emudecida.
Nem as mãos fundidas nas serranias
devolvem a voz articulada.
O silêncio
é um momento
que se efemeriza.
E nem a cólera
que substitui a maré deitada
distribui uma fala inerente.
A voz prolixa
escuda-se no banal;
empossa o silêncio
na armadura contra o desmedido.
Não é por cima do crepúsculo
que amolecem as palavras duras.
Um gesto a jeito,
um amparo no ocaso
e a ajuda de umas mãos gentis
é tudo quanto se precisa
no fingimento da farsa imanente.
Não se diga
que não houve aconselhamento.
No tira teimas
hão de pesar as palavras alvorada.
Entardece a boca substantiva
e as luzes desmaiadas
não são embaraço ao olhar visionário.
A boca não se feira no ocaso,
penhora diligente das cordas desalmaras
enquanto no avesso da maré se cantam versos.
Não deixo a pele puída pelo sal
e se de redenção se fala
dou o meu caso como perdido.
E se no espelho do futuro
as mãos se voluteiam
o exílio não é o esperanto que ninguém
fala.
Assinam os nomes
como animais acossados
o medo a precipitar-se sobre eles
como uma trovoada perene
que desarruma estantes sem livros.
Não podem desenhar uma arritmia
que a pele ensanguentada
disfarça a fala.
Quando percebem
foram reféns de um pesadelo
que açambarcou a parte melhor
da noite.
A cidade
joga-se contra a luz entediada.
A cidade
joga-se contra a luz
entediada.
Sente-se enteada
perdida no mapa crepuscular.
A cidade enteada
amanhece desarmada
e terça os braços
contra a maré afluente.
A cidade amuralhada
rebela-se contra os almocreves da dissidência.
Não espera nada
(a não ser
a imodesta condição
de cidade centrípeta
onde todas as pessoas encontram
estuário).
A cidade insubordinada
ferve nas jugulares exasperadas
enquanto o sangue entardece
em forma de lava.
E a cidade arruma as unhas
no espólio de quem se oferece,
acolhedora.
A cidade madrasta
deixa os moradores no oblívio.
A cidade iconoclasta dissolveu-se
no enamoramento dos forasteiros.
A cidade
é só uma manta de retalhos.
A matéria perdida:
subsídio da alma
que parte em demanda
de inventário.
A janela do tempo
agiganta-se nas palmas das mãos
entre as cadeiras desarrumadas
e o diligente critério interior
que desorganiza as coisas frívolas.
Não é de tempestades
que fala o corpo;
é de paisagens emolduradas em frações do sangue
como uma escultura partida em partes.
Pudesse a memória
lembrar-se do futuro;
pudessem as palavras
ecoar o nunca desdito;
pudessem os muros caiados
ser as páginas de um livro sem autor;
pudessem as noites
traduzir o oblívio
– e as juras
deixariam de pertencer aos arrependimentos
absorvidas pela saga
da simplicidade.
Não
não me curvo perante a angústia
nem quero saber minhas
as lágrimas que cimentam o chão sem prumo.
Na espiral dos dias combustíveis
terçam-se as fragilidades
contra os mastins sem rosto.
Não serão deles os sonhos vindouros.
Não serão as comezinhas farsas
a transfigurar um céu
onde apetece arrebatar as estrelas
fazendo do olhar ávido
o suor
que arrefece os deificados por equívoco.
Não saio de onde pertenço.
Não fujo das fraquezas que enriquecem.
Deixo ao que não sou
a fugaz espada que se rebaixa
na obnóxia condição dos beligerantes.
Deixo aí que não dou
as preces no idioma sem gramática.
Em vez de avareza
dou-me à combustão da alma
que se não gasta
e ao gosto dos oráculos
que se esqueceram das costuras.
Em vez da volta
prometo a partida.
O maior mentiroso
era o detetor de mentiras
– segredava a metáfora,
toda porteira,
ao bispo da província.
O cura,
sem saber do paradeiro
da rosa-dos-ventos,
deixou de saber
a quem conferir indulgências.
À parte as partes em parte incerta
ninguém obcecado pelos marcos geodésicos
ninguém se propunha para estafeta dos ideais.
Pois havia gente a aprender a liberdade
como gente estava inventariada
a prender a liberdade.
As horas estavam em saldo
para atribulados inestetas de tiranias,
uns absolvidos pela ignorância que os embacia
outros mordendo
com deleite
o lábio das desliberdades.
A paisagem estremunhada
tinha agora vastos baldios
adubados por orações em nome da glória pátria
ou por ódio visceral a toda a moeda,
considerada má.
Às narinas assomam ventos pútridos
exsudados por diáconos só com estola
mas sem corpo.
Os acólitos bolçam
imponderadamente
a dogmática que traduz a farsa das liberdades.
Preferiam mercá-las
como má moeda dos promitentes
conductores.
Que mal não lhes faça a História
quando sobre eles cair
em pétalas apodrecidas de memória futura.
Estendo as mãos
no colchão onde se antecipa a noite.
As ruas arrefecem na ausência que se abate.
Depois da voz distante
a lareira enche-se de rostos furtivos
e os garfos orquestram a claraboia baça.
Se ao menos os olhos não mentissem;
se os corpos não fossem fugitivos
e os verbos não fossem danças arcaicas;
as varandas ensolaradas diriam ser ficção
ao falarem dos degraus antecedentes
– e os animais não seriam a sua margem do medo
na bestial confissão do Homem animalesco.
A razia entre os beligerantes
seria a caução da paz.
A espécie seria procuradora de um agradecimento,
o primeiro por extinção de uma espécie
dentro da espécie.
Os sonhos ainda não pesam como ónus.
Deixem os poetas investidos nesse ministério
e as causas perdidas viram o jogo do avesso.
Os ossos fundeiam no palco fundente.
Já não há olhos tingidos de lágrimas
e mesmo que houvesse
seriam lágrimas de júbilo,
a celebração mais alta dos sonhos inviáveis.
As páginas datadas não o desmentem.
As palavras são escolhidas a dedo
amamentadas no úbere dos poetas,
os angariadores das flores disfarçadas
de estrofes
o ar desfeito de impurezas
que vem ao regaço dos ávidos do mundo completo.
[Crónicas do vírus, DCXXIX]
Montados num carrossel
a excitação do apogeu
apenas
como pressentimento de um baldio.