11.7.21

#2071

[Crónicas do vírus, DCXLIII]

 

A História é feita

de histórias 

que nunca mais acabam.

#2070

[Crónicas do vírus, DCXLII]

 

Continuamos

no avesso da vida.

(E não 

com a vida do avesso.)

10.7.21

Engenharia

Se falamos

a linguagem da lua

somos mandatários maiores

dos mapas em segredo.

 

Se ao luar

trazemos um caiar

juramos as estrofes sem tempo

que coabitam nas mãos.

 

Se da lua

habitamos a sua lava

hasteamos a alma crepuscular

e aprendemos a modéstia.

 

Se não é estranho

o idioma que nos sagra

é por termos terraplanado as crateras

que infundiam os medos.

#2069

[Crónicas do vírus, DCXLI]

 

Num mergulho pelo medievalismo,

os arcaicos que fogem das seringas

como (diz-se)

o diabo foge da cruz.

9.7.21

Da coragem

O jogo furtivo

aquece nas telhas rubras

da tarde soalheira.

Mandatamos um de nós

para ser teste-de-ferro da provocação,

sem saber se o fazemos 

por preguiça ou por utilidade

 

(alguém sugere 

que não podemos falar todos

ao mesmo tempo).

 

É como deixar a palavra embebida

numa ruela lisérgica

enquanto a tarde se consome

e arrefece nos corpos à sombra.

 

O lugar de procurador de todos nós

fica deserto.

No jogo do empurra

sobra o abismo onde não há vivalma.

Já prefaciava o adágio

sobre cães danados e vozeiros 

e almas estranhamente silenciosas.

#2068

[Crónicas do vírus, DCXL]

 

Manual para lidar com uma peste

(segundo os regentes em funções):

sucessivas camadas de desigualdade

umas em cima das outras. 

8.7.21

O gato comeu-te a língua

O silêncio

não é estrutural. 

 

A bandeira que o traduz

não é um ocaso. 

 

O silêncio

compreende todas as palavras. 

 

As videiras arcanas

habilitam a fala emudecida. 

 

Nem as mãos fundidas nas serranias

devolvem a voz articulada. 

 

O silêncio

é um momento

que se efemeriza. 

 

E nem a cólera

que substitui a maré deitada

distribui uma fala inerente. 

 

A voz prolixa

escuda-se no banal;

empossa o silêncio

na armadura contra o desmedido. 

#2067

[Crónicas do vírus, DCXXXIX]

 

Há sempre novos muros 

que se levantam

por mais que os neguem.

7.7.21

Paragem

Não é por cima do crepúsculo

que amolecem as palavras duras.

Um gesto a jeito,

um amparo no ocaso

e a ajuda de umas mãos gentis

é tudo quanto se precisa

no fingimento da farsa imanente.

Não se diga

que não houve aconselhamento.

No tira teimas

hão de pesar as palavras alvorada.

#2066

[Crónicas do vírus, DCXXXVIII]

 

Este jogo que jogamos

é a cabra-cega

ou a roleta russa?

6.7.21

Travessia

Entardece a boca substantiva

e as luzes desmaiadas

não são embaraço ao olhar visionário.

 

A boca não se feira no ocaso,

penhora diligente das cordas desalmaras

enquanto no avesso da maré se cantam versos. 

 

Não deixo a pele puída pelo sal

e se de redenção se fala

dou o meu caso como perdido. 

 

E se no espelho do futuro

as mãos se voluteiam

o exílio não é o esperanto que ninguém

fala. 

#2065

[Crónicas do vírus, DCXXXVII]

 

Dobra-se a página

e a noite arrasta-se

vagarosa e acasmurrada.

5.7.21

Proeza

Prematuro

o beijo pagão

arrancou os dentes

à decadência.

#2064

[Crónicas do vírus, DCXXXVI]

 

Desta ferrugem

que não nos larga,

um legado.

4.7.21

#2063

[Crónicas do vírus, DCXXXV]

 

As tréguas moram

na deslembrança do dicionário. 

3.7.21

Farsa em ré menor

Assinam os nomes

como animais acossados

o medo a precipitar-se sobre eles

como uma trovoada perene

que desarruma estantes sem livros.

Não podem desenhar uma arritmia

que a pele ensanguentada

disfarça a fala.

Quando percebem

foram reféns de um pesadelo

que açambarcou a parte melhor

da noite. 

#2062

[Crónicas do vírus, DCXXXIV]

 

Jogos

com 

fronteiras.

2.7.21

Colherada de urbanismo

A cidade 

joga-se contra a luz entediada. 

A cidade

joga-se contra a luz

entediada. 

Sente-se enteada

perdida no mapa crepuscular.

A cidade enteada

amanhece desarmada 

e terça os braços 

contra a maré afluente. 

A cidade amuralhada

rebela-se contra os almocreves da dissidência. 

Não espera nada

 

(a não ser

a imodesta condição

de cidade centrípeta

onde todas as pessoas encontram

estuário).

 

A cidade insubordinada

ferve nas jugulares exasperadas

enquanto o sangue entardece

em forma de lava. 

E a cidade arruma as unhas

no espólio de quem se oferece,

acolhedora. 

A cidade madrasta

deixa os moradores no oblívio. 

A cidade iconoclasta dissolveu-se

no enamoramento dos forasteiros. 

A cidade

é só uma manta de retalhos.

#2061

[Crónicas do vírus, DCXXXIII]

 

E sentimos

sem pré-aviso

o corrimão a fugir sob a mão.

1.7.21

Granito

A matéria perdida:

subsídio da alma

que parte em demanda

de inventário. 

A janela do tempo

agiganta-se nas palmas das mãos

entre as cadeiras desarrumadas

e o diligente critério interior

que desorganiza as coisas frívolas. 

Não é de tempestades

que fala o corpo;

é de paisagens emolduradas em frações do sangue

como uma escultura partida em partes. 

Pudesse a memória

lembrar-se do futuro;

pudessem as palavras

ecoar o nunca desdito;

pudessem os muros caiados

ser as páginas de um livro sem autor;

pudessem as noites

traduzir o oblívio 

– e as juras 

deixariam de pertencer aos arrependimentos

absorvidas pela saga 

da simplicidade. 

Não

não me curvo perante a angústia

nem quero saber minhas

as lágrimas que cimentam o chão sem prumo. 

Na espiral dos dias combustíveis

terçam-se as fragilidades

contra os mastins sem rosto. 

Não serão deles os sonhos vindouros. 

Não serão as comezinhas farsas

a transfigurar um céu 

onde apetece arrebatar as estrelas

fazendo do olhar ávido

o suor 

que arrefece os deificados por equívoco. 

Não saio de onde pertenço. 

Não fujo das fraquezas que enriquecem. 

Deixo ao que não sou

a fugaz espada que se rebaixa

na obnóxia condição dos beligerantes. 

Deixo aí que não dou

as preces no idioma sem gramática. 

Em vez de avareza

dou-me à combustão da alma 

que se não gasta

e ao gosto dos oráculos 

que se esqueceram das costuras. 

Em vez da volta

prometo a partida.

#2060

[Crónicas do vírus, DCXXXII]

 

O direito de admissão

ainda reservado 

à periferia do que somos.

30.6.21

Tautologia

O maior mentiroso

era o detetor de mentiras 

– segredava a metáfora, 

toda porteira,

ao bispo da província. 

O cura,

sem saber do paradeiro 

da rosa-dos-ventos,

deixou de saber

a quem conferir indulgências.

#2059

[Crónicas do vírus, DCXXXI]

 

Estado de negação

ou apenas 

administração de risco?

29.6.21

Braço de ferro

À parte as partes em parte incerta

ninguém obcecado pelos marcos geodésicos

ninguém se propunha para estafeta dos ideais. 

Pois havia gente a aprender a liberdade

como gente estava inventariada

a prender a liberdade. 

As horas estavam em saldo

para atribulados inestetas de tiranias,

uns absolvidos pela ignorância que os embacia

outros mordendo 

com deleite

o lábio das desliberdades. 

A paisagem estremunhada

tinha agora vastos baldios 

adubados por orações em nome da glória pátria

ou por ódio visceral a toda a moeda,

considerada má. 

Às narinas assomam ventos pútridos

exsudados por diáconos só com estola

mas sem corpo. 

Os acólitos bolçam

imponderadamente

a dogmática que traduz a farsa das liberdades. 

Preferiam mercá-las

como má moeda dos promitentes 

conductores. 

Que mal não lhes faça a História

quando sobre eles cair

em pétalas apodrecidas de memória futura.

 

#2058

[Crónicas do vírus, DCXXX]

 

A peste reinventa-se

dois passos à frente de nós.

28.6.21

Sela

Estendo as mãos 

no colchão onde se antecipa a noite. 

As ruas arrefecem na ausência que se abate. 

Depois da voz distante

a lareira enche-se de rostos furtivos

e os garfos orquestram a claraboia baça. 

Se ao menos os olhos não mentissem;

se os corpos não fossem fugitivos

e os verbos não fossem danças arcaicas;

as varandas ensolaradas diriam ser ficção

ao falarem dos degraus antecedentes 

– e os animais não seriam a sua margem do medo

na bestial confissão do Homem animalesco. 

 

A razia entre os beligerantes

seria a caução da paz. 

A espécie seria procuradora de um agradecimento,

o primeiro por extinção de uma espécie

dentro da espécie. 

 

Os sonhos ainda não pesam como ónus. 

Deixem os poetas investidos nesse ministério

e as causas perdidas viram o jogo do avesso. 

Os ossos fundeiam no palco fundente. 

Já não há olhos tingidos de lágrimas

e mesmo que houvesse

seriam lágrimas de júbilo,

a celebração mais alta dos sonhos inviáveis. 

As páginas datadas não o desmentem. 

As palavras são escolhidas a dedo

amamentadas no úbere dos poetas,

os angariadores das flores disfarçadas

de estrofes

o ar desfeito de impurezas

que vem ao regaço dos ávidos do mundo completo.

#2057

[Crónicas do vírus, DCXXIX]

 

Montados num carrossel

a excitação do apogeu

apenas

como pressentimento de um baldio.

27.6.21

Rearrangement

Dreams come true.

Dreams

come true.

Dreams come

true.

#2056

[Crónicas do vírus, DCXXVIII]

 

Uma obra

constantemente

inacabada.

26.6.21

#2055

[Crónicas do vírus, DCXXVII]

 

A antropologia do futuro

é estarmos sob suspeita.