[Crónicas do vírus, DCCIV]
Legados da peste (23):
o direito à véspera,
resgatado das trevas.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Com o mosto,
a filigrana de mim,
um inventário em falta:
aqueles inquéritos em moda
(dizem-se estivais
como se a época tola
precisasse de notários)
convocam as interiores peregrinações
que não tropecem no medo
ou na mentira.
E talvez o medo
seja o avesso da mentira
e os dois ilustram um binómio
(contudo, pouco reconhecido).
Uma história
depressa se transfigura
em estória
e das vozes estroinas
ecoam palavras apenas lúgubres
ou a simulação das palavras intuídas.
Cobram-se as folhas caducas
no pressentimento do Outono
(convém avivar a memória:
o Outono despoja o Verão);
à época tola
arruma-se no demais restolho
e as fantasias
as elucubrações de que se compõem
os fingimentos
ficam sem apeadeiro.
É nesta altura
que se vindimam as cepas
antes que caramelizem
e os frutos se esqueçam na podridão.
(E, todavia,
as colheitas tardias
apuram a doçura.)
[Crónicas do vírus, DCCIII]
Legados da peste (22):
abraçamos as janelas
que desamedrontam o futuro.
Este é o prefácio.
Antes do começo,
um esgrimir de intenções
que amanhecem regras do jogo.
Os verbos telúricos
abraçam-se à vontade sem tutor.
Quando já não houver páginas
e o crepúsculo ditar o seu império
nem de posfácios será embainhada
a memória.
[Crónicas do vírus, DCXCIX]
Legados da peste (18):
mudaram as etiquetas
e os azimutes
mas não mudámos de mais.
Os moinhos adestrados
ensaiam o vento.
No vale
um rumorejo
denúncia o rio
ainda infante.
A manhã adolescente
aprende com o sol
no compasso
das árvores que esbracejam.
O silêncio campestre
povoa o planalto.
O corpo ascende
como se tomasse conta
do horizonte.
Não fala:
o silêncio estrutural
embebido
como idioma.
Um avião
corta o céu
como se fosse uma vírgula
tartamudeada na paisagem.
A urze irrompe
pressentindo o outono.
O olhar fixa-se nas cumeadas
como se estivesse à espera
de miradouros.
No cruzamento
três caminhos oferecem-se
como hipóteses.
A um canto,
discretamente,
umas alminhas apascentam
um bouquet
enquanto as velas exibem
à exaustão do combustível.
Ninguém diria
que tão ermo lugar
é curadoria de uma alma dispensada.
Há vezes
em que o exílio se convoca
imperativo
no desmentido dos contos idílicos
industriados pela cidade.
Vamos rasgar bandeiras
vamos contar histórias a cachalotes
vamos transpirar o medo que poupámos
vamos estrelar a lua por caiar
vamos desenhar as páginas com um poema
vamos ciciar a alvorada junto ao pólen em espera
vamos arrumar os contratempos no parapeito
vamos dançar as marés intempestivas
vamos devolver as flores ao mar de platina
vamos aprender com a latitude hasteada
vamos ornar as tatuagens que se escondem na pele
vamos celebrar todos os corolários
vamos ser a matéria quimérica que somos no sangue.
[Crónicas do vírus, DCXCVII]
Legados da peste (17):
teremos aprendido
a não verter cal
na carne viva?
Faço de meus pés
o planalto
onde estiola o mosto
que murmura versos
às veias incandescentes.
Desconverso a fala diuturna:
o remoço não começa
na haste fruída das flores colonizadas
mas nos baldios
onde a liberdade se antecipa.
O planalto
deixo-o sozinho
a macerar a noite.
[Crónicas do vírus, DCXCVI]
Legados da peste (16):
está por demonstrar
se mantemos a cepa
ou se traduzimos a mudança.
Os comboios
trazem notícias
que são mais
do que a soma do peso
dos passageiros.
Não são
como os fretes nos cargueiros,
muito embora a especialização em fretes
seja uma constante nos compêndios
que nos atiram como lastro.
Já a tara dos comboios
arranja-se no lastro
que se compõe do peso dos passageiros.
Os comboios
não se importam com fretes
e nem supõem
a taragem dos fretes
se pudessem saber das vidas que os habitam
transitoriamente.
(Que é um eufemismo
para o inferno são os outros
que não é lema ensinado
aos comboios).
O regatear
deixou se ser nas feiras;
emigrou
para comícios
e congressos partidários.
O capataz modula a voz
comanda as emoções do séquito
– confirmando
que o séquito não passa de um séquito
ordeiramente obediente
cimentando uma pertença
à medida dos decibéis do palestrante
que usa a batuta desde o púlpito.
[Crónicas do vírus, DCXCIV]
Legados da peste (14):
os narizes assaltados
e não é por mistelas inaladas.
[Crónicas do vírus, DCXCIII]
Legados da peste (13):
um epitáfio
a preto e branco
e o silêncio arrumado
a contemplar.
O leito
onde o rio se faz rio
entre falésias que antecipam a morte
e o doce ciciar dos corços.
Uma pequena balsa
desenha-se no rio
sem medo das fragas escondidas
arrumando o estio no orvalho ainda matinal.
As vozes sobem os penedos
alimentam-se nas arestas que ferem
mas não se intimidam com o precipício.
Onde não há afoiteza diante de contratempos
não há possibilidade de vida
nem o frémito da vontade.
[Crónicas do vírus, DCXCII]
Legados da peste (12):
como azulejos estilhaçados
à procura de estuque.
Por defeito
os palácios enganam os verbos
perdidas as algemas que eram seu
silêncio.
Na argamassa do mundo fátuo
alquimistas venerandos exibem
o elixir da quarta idade.
Os outros
desconfiam de tanta decadência
e perguntam
se podem perguntar
pelas perguntas que investem
a sabedoria.
Nas águas-furtadas,
a pátria do exílio voluntário,
o olhar perde-se onde a sepultura do rio
se mistura com o horizonte.
Poemas potenciais
iluminam a candidatura a vate,
por mais que essa não seja almejada
condição.
As janelas deixam entrar
o ar carregado de calor de agosto.
Maldita a hora
em que ordenou a filiação das janelas:
os pensamentos adormeceram
sob as pálpebras contumazes
e já não sobram palavras para completar
o poema potencial.
O presente é perfeito
e apresenta
o perfeito presente
no tempo cosmopolita
que é fusão
de antanho e porvir.
Corre a marginal
no parapeito do rio
e do sobranceiro patamar
a cidade em socalcos derrete-se
até ao caudal.
É como
se o pretérito se fundisse
no coevo
e no rio morasse
o poço sem fundo
que desarmadilha o futuro.
Até que
na irremediável, breve foz
todos os rostos se extinguem
e sobre apenas uma memória,
ela por sua vez
perecível
assim que os sedimentos são levados
para o fundo mar.
Arranquei a maldição
do meio do dia que estava.
Outros arqueiam-se
na superstição.
Não digo
êxodo.
Nem participo
com o meu corpo transido
na amálgama a que chamam
prazeres;
prefiro a enseada que se desenha
sob os poros que desinibem a respiração;
na moldura
que se justapõe aos tempos contínuos
abraço os verbos repelidos:
nunca me achei capaz
de figurar no elenco
onde quase todos participam.
Os vitrais animam a lucidez.
Ecos distantes
convocam a pele destatuada.
Não são os princípios que amparam um fim:
se soubesse com quantas candeias
se escreve o penhor
deixava-me estar sozinho
a um canto
para luzir o cenho descarregado,
o alvitre cheio de possibilidades
no mapa desarmadilhado de tempos erguidos.
Entronco no grande bazar
onde as vozes se reduzem ao murmúrio.
Coroas sem marca
marcam o cós do tempo.
Ainda estou para saber
como se leem os versos famintos
que correm no estuário desmaiado.
Julgo
que as palavras assim terçadas
explicam as águas termais do estuário.
[Crónicas do vírus, DCLXXXIX]
O rosto mau da política:
uma constante
não interrompida pela peste.
As artes dispostas no estuário
esperam pelas mãos adestradas,
esperam que as suas rugas sejam lição
antes de serem oferendas ao mar.
Os marinheiros admitem os mares a concurso.
Conhecem-nos melhor
do que as suas calejadas mãos;
é como se as mãos se deitassem aos mares
em metafórico alisar das ondas,
as mãos domadoras
dos mares que conduzem a embarcação.
Do mar alto
contam-se lendas avulsas e muitas:
diz-se
que quanto mais as rugas são ornato das mãos,
mais os mares se inclinam
aos vetustos marinheiros que os somam
sem saberem.
Os mares só gostam de levar ao seu magma
vidas se forem ainda tenras.