[Crónicas do vírus, DCCXV]
Legados da peste (31):
conseguiremos
deixar de ser
o ser latente.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Mordomias
– diziam
antes que a noite desfalecesse.
Vultos intrusos
tornavam-se edis sem procuração
e os sonhos desmaiavam
em cadeiras que ardiam
ateadas por tochas contumazes.
Mordomias, não
– que os sonhos
não se transfiguram em pesadelos
no proveito que se acalenta
nas almas tão avarentas.
As estradas
escondem as veias
dos síndicos que as habitam.
Oxalá
houvesse artesãos
pagos para serem escafandros
das estrofes de um dia sábio.
As vozes
aumentam o tamanho das bocas
jogam-se contra a tirania do silêncio
em marés-vivas que sentenciam os cabos belicosos.
Tomara
todos os reclusos da alma
soubessem do sal das estradas
o sortilégio que se insinua na lava das veias
deixando pendidos
os esgares herdados da angústia.
As apostas
adornam o passado sem paradeiro
na exata medida
do entardecer que se deita sobre o olhar
em sucessivas ondas que esbracejam
a virtude de um mar atlanticamente enfurecido.
[Crónicas do vírus, DCCXIII]
Legados da peste (30):
uma coleção de desventuras
(instrução de leitura:
estrofe politicamente relevante).
As portas do avesso
o espelho das munições gastas
e no bolso
o coldre sem vírgulas
as arestas alinhadas no mosto do tempo.
O desfile das hipóteses
arremata as condições
e no dorso
a maresia sem cor
as lágrimas inventariadas nas mãos por gastar.
No lume da noite
o luar à espera de ser caiado
e na alma
o remédio sem amálgamas
os lábios povoados no corrimão do amor.
[Crónicas do vírus, DCCXII]
Legados da peste (29):
aos açaimes involuntários
seguem-se
vendas voluntárias sobre o olhar.
A vida devora.
Mas não é a carne tomada,
que amanhece num fogo de tochas,
a selar o descompromisso.
A vida
devora:
e os dedos
contam a matéria combustível
enquanto adivinham o inverno.
No fim das trevas,
quando os fantasmas forem extintos,
levantar-se-á a tela,
enfim desembaciada,
com uma inscrição:
a vida devolve.
Que mar sem nome
se dá como o cais que protege?
No leilão do medo
convocam-se epitáfios estremunhados,
as pouco convincentes palavras
que dão mote às epifanias sem paradeiro.
As notas amontoadas
são a morada das músicas esquecidas
a meio de uma manhã inglória
e os braços sapadores
que, exaustos,
desfalecem ao próximo amplexo.
Que poltrona já decadente
se oferece na litania do remanso?
As almas que se curam
não se empossam
na curadoria de quem não são;
pegam nos pertences
e hasteiam a fuga,
o exílio, se preciso for,
para serem poupadas às vilanias sem travão.
Há um mosto sem paga
o ramal vindicado à candeia vigente
no dorso da manhã imprevista.
Há um penhor amarrotado
na cordilheira arrematada em promessa
e de mim é o leilão
onde se inventaria o outono.
[Crónicas do vírus, DCCVII]
Legados da peste (26):
uma matemática
cheia de vírgulas,
o algoritmo da incerteza.
Sobre a manhã contrariada
uma causa perdida.
Uma luta
contra as palavras assintomáticas
as boas rebeldes presas a uma véspera.
O corpo não responde,
prolonga o torpor
herdado de pesadelos sem remoço.
Digo que não há começo
para apaziguar com o impassível recomeço.
O dia não será fugitivo.
Espero
em espera diligente
que mude a maré
enquanto muda insiste
a voz.
Dizem
que da antropológica pequenez
vicejam deuses,
duendes que nos amesquinham
no nanismo terminal.
Dizem
talvez por ser costume
dizer quando melhor seria
calar.
Pois se do fundo fado
não somos feudo
não será por metafísicas poses
que seremos desmedo.
[Crónicas do vírus, DCCV]
Legados da peste (24):
as promessas
deixaram de ser
páginas de um sonho.
O bramido
idioma da multidão
cala as vozes únicas
que a discordância se afoga
na estrénua vociferação.
As vozes únicas
átomos perdidos
perdem o direito a serem voz
a menos
que recheiem o caudal tumultuoso
do bramido tonitruante.
O coro imperativo
ensina as sílabas minuciosas
e gravita na gramática rudimentar.
Já se sabia
que os números esbracejam
a antítese da excelência.
Com o mosto,
a filigrana de mim,
um inventário em falta:
aqueles inquéritos em moda
(dizem-se estivais
como se a época tola
precisasse de notários)
convocam as interiores peregrinações
que não tropecem no medo
ou na mentira.
E talvez o medo
seja o avesso da mentira
e os dois ilustram um binómio
(contudo, pouco reconhecido).
Uma história
depressa se transfigura
em estória
e das vozes estroinas
ecoam palavras apenas lúgubres
ou a simulação das palavras intuídas.
Cobram-se as folhas caducas
no pressentimento do Outono
(convém avivar a memória:
o Outono despoja o Verão);
à época tola
arruma-se no demais restolho
e as fantasias
as elucubrações de que se compõem
os fingimentos
ficam sem apeadeiro.
É nesta altura
que se vindimam as cepas
antes que caramelizem
e os frutos se esqueçam na podridão.
(E, todavia,
as colheitas tardias
apuram a doçura.)
[Crónicas do vírus, DCCIII]
Legados da peste (22):
abraçamos as janelas
que desamedrontam o futuro.
Este é o prefácio.
Antes do começo,
um esgrimir de intenções
que amanhecem regras do jogo.
Os verbos telúricos
abraçam-se à vontade sem tutor.
Quando já não houver páginas
e o crepúsculo ditar o seu império
nem de posfácios será embainhada
a memória.
[Crónicas do vírus, DCXCIX]
Legados da peste (18):
mudaram as etiquetas
e os azimutes
mas não mudámos de mais.
Os moinhos adestrados
ensaiam o vento.
No vale
um rumorejo
denúncia o rio
ainda infante.
A manhã adolescente
aprende com o sol
no compasso
das árvores que esbracejam.
O silêncio campestre
povoa o planalto.
O corpo ascende
como se tomasse conta
do horizonte.
Não fala:
o silêncio estrutural
embebido
como idioma.
Um avião
corta o céu
como se fosse uma vírgula
tartamudeada na paisagem.
A urze irrompe
pressentindo o outono.
O olhar fixa-se nas cumeadas
como se estivesse à espera
de miradouros.
No cruzamento
três caminhos oferecem-se
como hipóteses.
A um canto,
discretamente,
umas alminhas apascentam
um bouquet
enquanto as velas exibem
à exaustão do combustível.
Ninguém diria
que tão ermo lugar
é curadoria de uma alma dispensada.
Há vezes
em que o exílio se convoca
imperativo
no desmentido dos contos idílicos
industriados pela cidade.