10.1.22

Pérgula

Jogo o jogo dos seixos que sobram

da maré. 

O tempo, hipnotizado,

não é um embaraço. 

Se soubesse desenhar

tirava partido da areia molhada

deixada pela arqueologia de uma maré cheia

para emoldurar as baias do mundo. 

Não fosse o cadáver de um caranguejo

que não pedia epitáfio

ou a vozearia das crianças outras

que jogavam às escondidas

com a timidez absoluta. 

#2264

[Crónicas do vírus, DCCCXXXVI]

 

Legados da peste (152):

os estilhaços

preenchem a paisagem

como campos minados.

9.1.22

#2263

[Crónicas do vírus, DCCCXXXV]

 

Legados da peste (151):

nem sempre

a vindima de cachos apodrecidos

é colheita tardia.

8.1.22

#2262

[Crónicas do vírus, DCCCXXXIV]

 

Legados da peste (150):

a tradução da fala,

ou o véu que se abate

sobre a boca.

7.1.22

Passagem de nível (outro patamar)

As horas são cortinas que ascendem 

na matricial pose do corpo. Pegam-se 

nos mastros que dominam o estuário 

e os olhos convocados exoneram a culpa

dos órfãos do medo. Se ao menos 

a contagem obedecesse aos caprichos 

de cada alma não seríamos subúrbios 

da vontade. Todas as verdades 

se extinguem na sua formulação. 

Sobram as palavras não sopesadas, 

as palavras desenfreadas que saltam 

por cima das fronteiras, ficando à espera

dos internos sobressaltos arrancados 

ao magma combustível. As horas deviam

ser silêncios estendidos na geografia 

onde os corpos habitam. Deviam olhar 

para dentro da carne, isentando o seu 

labirinto dos modos que se hasteiam 

na mais pura fala totalitária. Ficam 

nas mãos os desenhos furtivos que isolam

as horas dos minutos que as alimentam. 

Quem sabe se não é esse o segredo.

#2261

[Crónicas do vírus, DCCCXXXIII]

 

Legados da peste (149):

as bandeiras

retêm o bolor

dos ventos a desfavor.

6.1.22

D. Sebastião (com a devida genuflexão)

Sai-te a fava

mas encomenda-os

à mesma

antes 

que a fava se torne fada

e a fama se converta 

em fado. 

#2260

[Crónicas do vírus, DCCCXXXII]

 

Legados da peste (148):

empossados como guerreiros

na perene fragilidade 

do prélio contra os sicários 

que tomam de assalto

o nosso domínio.

5.1.22

#2259

[Crónicas do vírus, DCCCXXXI]

 

Legados da peste (147):

a peste

banaliza-se

e deixa de ser

peste.

(Manifesto da esperança)

Economia das palavras

Podia dizê-lo

um trilião de vezes

até as palavras 

se esgotarem no seu sentido

e, presas à vacuidade,

serem letradas menores

do idioma exaurido.

 

Podia dizê-lo

modestamente

na austeridade de palavras

que é sua predileta homenagem

antes que,

açambarcadas,

sejam reféns da vulgaridade.

 

E não,

não digam que

as palavras são imunes

ao gasto. 

4.1.22

#2258

[Crónicas do vírus, DCCCXXX]

 

Legados da peste (146):

a memória

é um paradoxo

que convoca o futuro.

3.1.22

Rosa dos ventos

A roda dos ventos

vestira-se com o mais fino traje

aquele que se servia

de nobre fazenda 

– o traje cerimonioso

que vê a luz do dia 

um punhado de vezes. 

Apessoada e vaidosa

a rosa dos ventos esperava pelo vento 

que se jurava iracundo. 

As previsões dos peritos saíram furadas. 

E ali ficou a rosa dos ventos

prostrada

refém da melancolia

ao saber que o vento 

primara pela inércia. 

#2257

[Crónicas do vírus, DCCCXXIX]

 

Legados da peste (145):

os braços atirados

em riste

contra as promessas

de passado.

Antes que o futuro seja

A metáfora cantada

na consequência do dia

atualiza a pele antecipada.

Das rugas não há inventário:

o espelho está partido

e a linhagem do tempo

é o esquecimento.

2.1.22

#2256

[Crónicas do vírus, DCCCXXVIII]

 

Legados da peste (144):

a lava torrencial

enfim cristalizada

ou o disfarce de um disfarce

em forma de logro (disfarçado)?

1.1.22

#2255

[Crónicas do vírus, DCCCXXVII]

 

Legados da peste (143):

pandemia ou endemia:

jura de alívio

ou apenas o jogo da semântica?

31.12.21

Confirmação

Podia ser 

a fuligem que açaima o mar

a insaciável sede de maresia

ou apenas

o embaraço de ser.

 

Podia ser

um beijo sem cor

a temperar o rosto melancólico

e as temporadas não seriam vãs

no seu improvável presságio.

 

Fossem as palavras castelos sem sombra

e a fala um idioma sem segredos

todos os versos combinariam com a manhã

por fim 

os mastins seriam calados.

 

Sem que fossem promessas à espera

o caudal servia de paramento para as juras

e de véspera em véspera

Aas mãos incansáveis seriam mestras do dia.

 

Até que

enfim

o céu consumido pelo ocaso

já não fosse um segredo sem cofre

e as rimas

fossem o lugar possível da fala.

#2254

[Crónicas do vírus, DCCCXXVI]

 

Legados da peste (142):

somos de porcelana,

reativos.

#2253

[Crónicas do vírus, DCCCXXV]

 

Legados da peste (141):

uma tela

tão impressionista

que é tatuagem imorredoira.

30.12.21

Sobre a pequenez dos Homens

A lava rejeita a pele

como tatuagem.

Deixa para a erupção

o magma tangencial

que sobe aos olhos lívidos

antes que a tarde suba 

num frémito peregrino.

As casas são feitas de papel 

– diz-se por aí

como se o pranto não tivesse

lágrimas.

Somos irrisórios

e disso

é que podemos ter a certeza.

#2252

[Crónicas do vírus, DCCCXXIV]

 

Legados da peste (140):

os muitos véus 

sobrepostos

num labirinto sem mapa.

29.12.21

#2251

[Crónicas do vírus, DCCCXXIII]

 

Legados da peste (139):

a porta dos fundos

outra vez

(quando 

já tinham jurado o Éden

precipitadamente).

28.12.21

Se as pessoas conhecessem os gatos

Se as pessoas conhecessem os gatos

não diriam

“caga nisso”,

como quem diz

não dês importância ao sucedido

ele faz-se esquecer por si mesmo. 

Se as pessoas conhecessem os gatos

saberiam

que os gatos escondem o que cagam

para não deixarem vestígios

à sua passagem.

#2250

[Crónicas do vírus, DCCCXXII]

 

Legados da peste (138):

timoneiros

que não passam de regentes

e regentes

que não têm cepa

de timoneiros.

27.12.21

Eternidade

Não se é novo

na véspera da eternidade.

 

Uma centelha foge do céu.

Desenha uma estrada de sonhos

e nós, 

que novos somos,

anexamos o orvalho pendido das uvas

por sabermos

que é o elixir alojado na pele sem regras.

 

Nos socalcos a poente

o refrão entoa desde o vale profundo.

Não somos nós a profanar

o austero relógio que encomenda as almas;

deixamo-nos

por conta da vontade

arqueada na frontaria desimpedida

onde se assina o livro de honra.

 

Não se é novo 

na véspera da eternidade;

E o que é a eternidade

se não uma servidão?

#2249

[Crónicas do vírus, DCCCXXI]

 

Legados da peste (137):

tivemos direito

à (todavia dispensável) quota

de homens providenciais.

26.12.21

#2248

[Crónicas do vírus, DCCCXX]

 

Legados da peste (136):

porque será 

que disfarce

quase rima 

com farsa?

25.12.21

#2247

[Crónicas do vírus, DCCCXIX]

 

Legados da peste (135):

quando nos for devolvido

o que somos 

– ou: se nos for devolvido 

o que fomos?

24.12.21

#2246

[Crónicas do vírus, DCCCXVIII]

 

Legados da peste (134):

nunca 

tão invadidos

foram os narizes

(precondição do Natal).

23.12.21

Vitamina

Seria enxovalho da alma

Aa cobrança à revelia

enquanto os pregões dos eruditos

subiam no estuário das desideias.

O piano gasto era testemunha.

Sem as nuvens como página

as mãos trémulas arriscavam as palavras

à espera de doutrina válida

à espera

da caução sem remorso

como se fosse a antítese da angústia.

Não eram as chuvas de inverno

que desarranjavam o sangue;

a chama entediada jogava-se nos quarteis

os lugares perdidos que não sabiam de chão

nem cortejavam o mapa das almas.

Como não houve enxovalho

as almas não desistiram.

Hoje

falam ao ouvido dos deuses

e ensinam-lhes

em bom idioma

o povoamento das almas.