[Crónicas do vírus, DCCCLXXI]
Legados da peste (182):
A Primavera prematura,
metáfora
de uma armadilha disfarçada.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCCLXXI]
Legados da peste (182):
A Primavera prematura,
metáfora
de uma armadilha disfarçada.
Legados da peste (181):
Na televisão
uma senhora sentencia:
“houve pandemia,
mas não houve pandemónio”.
E ninguém lhe perguntou
quanto seria preciso
para decretar o pandemónio.
Contas o dia por pétalas
e no aprumo da manhã
dizes que sondas o luar aferido.
Tiras um oráculo à sorte
– assim como assim
pouco palco têm os druidas do futuro.
A mortalha do futuro
prende-se ao fumo tóxico
e das marés que hão de ser
espera-se que o sejam
no tempo devido.
Até lá,
contas o dia por pétalas.
[Crónicas do vírus, DCCCLXIX]
Legados da peste (180):
A manhã válida coalesce
na pele que se aviva
passada a longa noite dos vultos.
Não é o corpo
que é obsceno.
Não é literal
o contorno do desejo.
Não é ser refém da manhã
que atribui a coroa
aos amantes.
O vocabulário é algoz.
Obsceno
devia ser banido
do dicionário.
E ilibar o corpo
não deixando para o pensamento
o pecado por ação.
[Crónicas do vírus, DCCCLXIII]
Legados da peste (179):
Atravessado o eclipse
falta resgatar
a centelha dos corpos solares.
Ninguém orçamentou
a simpatia.
Deve ser moeda fraca
um estipêndio dos timoratos
farsa cicatrizada sobre pele de verniz.
A simpatia precisa de orçamentista,
diz-se à boca grande.
Mas ninguém ousou ainda
tirar o selo ao véu
que escondeu
o silêncio que a boca amordaçou.
[Crónicas do vírus, DCCCLXII]
Legados da peste (178):
Foi mais a alma do que a pele
que perdemos durante
esta demorada demanda.
O porta-voz
porta que voz
a voz de quem?
E se é porta de uma voz
que soberano é
para à voz franquear passagem?
O porta-voz
é um usurpador.
O usurpado
ingénuo ou poltrão
para não se chegar à frente
com a voz de que tem sinecura.
Se não fosse contra proibições
era de propor um abaixo-assinado
para proibir os porta-vozes.
[Crónicas do vírus, DCCCLXI]
Legados da peste (177):
Varremos a penumbra
com a diligência de um eremita
à espera da manhã luminosa.
Sou estes braços quentes
na suposição de um cais
o rosto furtivo
que não sabe da meada
o intenso lugar de abertura
por entram os feixes de luz
tratado sem solenidade
nem palavras seladas
um longo passo na passadeira tingida
com o sangue colhido em tempestades
a boca sem saliva
aliviada
que se enamora das sílabas sopesadas
artilharia povoada pela alvura
em ramos de acácias avulsas
na lombada das escrituras armadas.
Sou
o dia que se alimenta do luar
o rastilho homérico que apaga o mar
páginas marejadas pelo orvalho jurado
um peito
que não se adia na promessa da finitude
o olhar reinventado
pulsão acelerada pela lava anestesiada.
Homem,
apenas,
na fortaleza que de mim quero arcar
ou enseada escondida do mapa
para não deixar os meus domínios
nos braços da erosão.
[Crónicas do vírus, DCCCLIX]
Legados da peste (175):
A sôfrega arriba do medo
para onde somos lembrados
com pontual indiscrição.
Durante a viagem
os contrafortes da montanha
parecem o leito da memória:
as rochas amontoadas na aridez
uns vagos tufos de flores silvestres
como se fizessem a vez dos catos no deserto.
O passado
precisava de banho-maria.
As lembranças
iam ao coldre onde armazenadas estavam
desfilando à velocidade de um TGV
como se o corpo morasse nos carris
e eles,
cortando o passado pela metade,
deixassem numa solução alcalina
as memórias em dissolução aprazada.
A cordilheira estava mais próxima.
Conseguia descrever a silhueta dos montes.
Na aridez que campeava
os arbustos rarefeitos eram a tradução líquida
do inacessível pretérito.
Apetecia
pedir o conceito de pretérito imperfeito
de empréstimo às regras gramaticais,
como metáfora perfeita de um pretérito imperfeito.
Como era de esperar,
a travessia da cordilheira deixou à mostra
um sinuoso caminho.
O planalto consecutivo
cuidaria de aplacar as dores acomodadas
dando-lhes
o sono apostado no olvido.
[Crónicas do vírus, DCCCLVIII]
Legados da peste (174):
Uma epifania:
a devolução de um paraíso
como logro que se não gasta.
Exonerou o til do bolor
e das lombadas dos livros
varreu a poeira arcaica.
De vez em quando
reinterpretava o seu papel
como se fosse
ator por dentro de um ator.
Daí extraía o maior enigma
pois se nem ator era.
[Crónicas do vírus, DCCCLVII]
Legados da peste (173):
Fomos
e somos
náufragos
o salva-vidas
como seguro em dia.
Senti os poros do mar
na semântica do entardecer.
Não era reparador
e as candeias que esperavam pelo rastilho
faziam de conta
– faziam de conta que eram másculas
ou feitorias
por onde espreitavam espiões desarmados
ou amorfos periscópios que espiavam
a penumbra.
Do entardecer válido
reuni as mãos por adestrar
no convencimento das noites sem paradeiro
entre o sal sangrado carne adentro
e o povoado chão
que ardia na silhueta desmaiada da escopeta.
Dantes
os muros não fugiam do olhar angustiado.
Dantes
o mar era o exílio.
[Crónicas do vírus, DCCCLVI]
Legados da peste (172):
A jura da derrogação
como mnemónica da paciência.
[Crónicas do vírus, DCCCLV]
Legados da peste (171):
Do tempo
medrou um gládio
que amanheceu antídoto.
[Crónicas do vírus, DCCCLIV]
Legados da peste (170):
Num lugar público
cercado por rostos açaimados
adivinho a desabituação futura
aos rostos desembarcados e inteiros.
Sou
vento do Norte
onda refeita no verso da tempestade
boca à espera de loucura
varanda que amansa a paisagem
voz que se levanta na pátria da mudez
corpo comprometido com a tela da avidez
jura infundamentada
fonte de ideias enredadas na desarrumação
posfácio de um epitáfio proibido
montanha adiada sem medo do tempo
verso singular no emaranhado de vozes
caudal em frémito esperando pelo estuário
página iracunda domada no bálsamo da noite
madrugada sem atalaia
a rua rochosa
sem medo das espadas desembainhadas
sede por dentro das veias
instinto consuetudinário inaugurado no leme vão.
Sou
a desarmante face
de que o porvir é trunfo
sombra no avesso do luar maior
a mão caiada em página nunca gasta.
[Crónicas do vírus, DCCCLIII]
Legados da peste (169):
Despontou uma alvorada radiosa
quando (enfim)
anunciaram
o fim esperado do pesadelo.
A tempestade
acorda o sangue hibernado.
As palavras
elevam-se ao sopé da cordilheira.
A pele
derrama suor nos acordes da ira.
Os navios
esperam por vez
desenhando o estuário com suas silhuetas.
A manhã
demora no emaranhado do inverno.
O mar
envaidece com a pose tumultuosa.
A fala
inventaria as palavras destemidas
agora que o sal invadiu a pele
e os ossos rejeitam a melancolia.
[Crónicas do vírus, DCCCLII]
Legados da peste (168):
Num campo branco
sem flores
a partida da paisagem desertora.
O degelo cresce na sombra da noite.
Em comandita,
os cães vadios varejam as ruas
– pode ser
que se façam delas
imperadores.
O sono fundo das pessoas
traz uma impressão de hibernação
e as ruas são não lugares
momentâneos.
Ninguém sabe o que povoa
os sonhos que inventariam os fundos sonos.
Possivelmente
corpos errantes num adro sombrio
eclipsados pela sua tremenda fragilidade
transidos pelo latido da matilha
que se faz passar por uivos de lobos
famintos.
Neste espessar dos verbos
o suor fala em vez das palavras.
Os sonhos não esperam pela manhã.
Sabem que o seu império chega a uma foz
mal a noite é destronada pela manhã
ínvia.
O sangue
sem dar conta
terça esta batalha
entre um sono que amedronta
e a vontade não escrutinada
de se libertar da tirania dos sonhos.
Se ao menos
a insónia se fundisse com a noite
saberia
do paradeiro da matilha.
[Crónicas do vírus, DCCCLI]
Legados da peste (167):
Às vezes
parece apenas
a interrupção de um pesadelo.
As sílabas contam as bocas.
Esperam pela fala gorda
no desprotesto que se cala
na vigésima-terceira hora do dia.
As bocas cantam as sílabas
e a fala em catarse foge da mudez
no tirocínio do tempo.
As bocas:
escondidas na pose circense
arrumam-se em gestos pueris
e, todavia,
diplomáticos.
A muda fala que se muda
e se esforça em estrofes fadadas
mutila o silêncio,
impraticável.
[Crónicas do vírus, DCCCL]
Legados da peste (166):
Ganhamos sentinelas
numa atalaia
de que somos perdedores.
[Crónicas do vírus, DCCCXLIX]
Legados da peste (165):
Tal como ases autorreverenciais
refugiados em torres de marfim,
postiços apenas.