[Crónicas do vírus, CMI]
Legados da peste (212):
A guerra,
ou o Homem
metamorfoseado
em peste.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O que se penhora
não tem fundo
e do fundo do vulcão
os pertences gastos fogem do periscópio
onde levita o sangue sem fala.
Temperamento colérico
nas brandas que espevitam o céu baço
cobra o preço último
enquanto a multidão coloniza as ruas
em silêncio.
As ruas servem de corrimão
aos que sem elas
seriam desamparados.
Em pose observadora,
como se fosse antropólogo,
junto as estrofes que desentorpecem a espécie
junto-as num compêndio de significados
enquanto retiro aos demónios
a albumina que os protege;
antes desprotegidos os demónios
do que por eles acossados
os inocentes.
E há inocentes?
Há verbos que se conjugam
na tumular profecia em abono dos inocentes,
ou tudo não passa da soberba
de quem dá aval a conceitos por determinar?
Dos púlpitos sem pertença
o vazio esvoaça
contundente
emasculadamente impuro.
Nos preparos
o tóxico raciocinar adere à retórica
e os lugares soam a prisões
melhor:
a navios onde viajam desterrados
que não têm cais que os queira
e por isso
talvez estejam destinados ao naufrágio.
Nunca se disse
que os eugenistas eram higienizadores.
Os palcos errantes
somam-se à cacofonia dos eruditos.
Oxalá fossem militantes do silêncio
que em poemas seria substituto perfeito
da prosápia sem arrefecimento.
Por enquanto
o sofrimento só pertence ao dicionário.
Não se vê que seja um senão
se até os deuses advertem
com mnemónica diligentemente doutrinada
que o sofrimento não se divorcia do Homem.
A menos que hoje
por ser dia em que a mulher é celebrada
(e porque se achou apenas um dia
no imenso calendário de um ano
para celebrar a mulher
é matéria que ultrapassa a lógica)
não se diga que os homens merecem palco
pois eles
são os procuradores máximos da beligerância
fautores máximos da impiedade
com lugar direto ao banco dos réus
onde juízas aprumadas no escorreito manejo das leis
esperam pela vingança sem opróbrio.
Pois delas é a mitologia
e dos homens
a fé cega na marcial expropriação do tempo.
Queria voltar a ser criança
só para dizer
que queria ser forasteiro
quando fosse adulto.
O sonho maior
era sair sem mapa
que me pudesse ensinar
um destino.
Falo da metáfora
que se aviva
na limalha do ocaso.
O crepúsculo macilento
é refúgio dos sortilégios,
e a fala
debate-se com a vertigem
arrancada ao precipício da noite.
Falo por metáforas
que o medo de ser entendido
fala por cima.
[Crónicas do vírus, DCCCXCVIII]
Legados da peste (209):
O irrisório dano da peste
comparado com o dano
que o Homem pratica
em si mesmo.
Deslembrado
o lastro em que assentamos
sobramos como desmemória
ofensores do futuro
párias em sangue próprio.
Às vezes pressinto:
a humanidade
não é digna de si mesma
não sabe dar conta de si
e merecia extinção.
[Crónicas do vírus, DCCCXCVII]
Legados da peste (208):
O tempo hibernou
e agora
cuidamos do degelo.
Se pudesse ao tempo ordenar
para meter marcha-atrás
só para ser revisor dos planos pueris
(o que queres ser em grande?)
só
para me ajuramentar
futuro gangster
e das juras sina tornar
para
em grande
andarilhar de estepe em estepe
a fazer de Robin das estepes
mas virado do avesso
e contra os justiceiros desembainhar o coldre
julgando-os na ponta da arma
por mitomania compulsiva
logro militante
e oportunismo sem desculpa.
[Crónicas do vírus, DCCCXCVI]
Legados da peste (207):
Com vagar
a tela em que somos tecidos
desabilita-se das caricaturas que fomos.
Soube do mar
pela janela
que subia pelo luar.
Jurei
que o mar
não seria penhor
da solidão.
Havia dias,
dias tempestuosos,
em que o mar e eu
partilhávamos a solidão.
Era capaz de jurar
que o mar traduzia
os meus avulsos pensamentos
a julgar
pelo tumulto
deixado
em memória futura.
[Crónicas do vírus, DCCCXCV]
Legados da peste (206):
As almas segredam
no mapa dos rumores,
resgatadas ao exílio inconsciente.
Correria num estreito labirinto
na correria desenfreada de quase todos
e nos lampejos de loucura
desenharia a lucidez desamparada
contra os fulgurantes sábios de si mesmos.
E na desalinhada pele destatuada
diria os versos arrancados aos ossos
por dentro de um limite sem marcos geodésicos
ou balizas estertores.
Correria na correria de um só
no plúmbeo areal escondido das esquinas
afocinhadas no braço
e de resto
contra todas as probabilidades
daria conta das contas sem conta no fim.
Depois da correria
diria ao corpo cansado
para se exilar nas paredes húmidas da noite
onde o luar se engana com tolos
e os versos tropeçam em páginas preenchidas.
Até a correria ser parecida
com um moinho de vento
e às sereias alinhadas no cais
vozes de vultos fossem avoengas prescrições
contra os impropérios da distração.
[Crónicas do vírus, DCCCXCIV]
Legados da peste (205):
Contra os dias soterrados
a avalanche que deixou os rostos
submersos,
a memória do futuro.
[Crónicas do vírus, DCCCXCIII]
Legados da peste (204):
A corrosão
deixada em destroços
a tempo de ser invalidada.
Somos
a fatura
do medo.
Somos
– em terrífica dilação –
astronautas
do desdesejo.
Párias,
amiúde,
na imunda contrafação
o leite pútrido
que nos fermenta
em sistemática negação.
Somos
pátrias gastas
funestos zeladores de nada
coldres gastos
ardendo na lava sem gasto
alpinistas a fundo
procuradores do desmedo
traduzido
em tresloucado verbo.
É do medo
que levamos
esta fatura
em futura expedição
nos compêndios legados
na armadilhada faca
que desfeita o porvir.
Falamos
o idioma do medo
e no medo
consumidos
arrefecemos o sangue
deixamos de ser
promessas vindouras,
murchados.
[Crónicas do vírus, DCCCXCII]
Legados da peste (203):
No acerto de contas
com o tempo de chumbo
quanto de nós
é matéria já diferente?
[Crónicas do vírus, DCCCXCI]
Legados da peste (202):
Reconciliação
com a parcela forçada
ao fingimento.
Procuro
na tua pele
agasalho.
Entendo
as cores do mundo
pelo teu olhar.
Sacio
a sede
no teu suor vertido.
Amparo
a angústia
no teu manancial.
Revejo
o porvir
nos versos
da tua fala.
Armo-me
da alegria
que esparges.
Encerro
num mar sitiado
demónios contumazes.
Cresce
em bandeiras sem algemas
a gramática
do prazer.
Amanheço
no desembaciado lugar
que ofereces
em deslimite.
Traduzo
na boca sem peias
a paga merecida.
Tomo
no teu corpo
a ideia de mim.
Concebo
o atlas
na página de rosto
da tua pele.
Desenho
o idioma particular
que entrelaça.
Procuro
num relógio a ouro
o tesouro de teu nome.
E sei
que o ocaso
não se furta nas mãos.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXVII]
Legados da peste (198):
O reconhecimento facial
a caminho de ser restabelecido
como idioma oficial.
A tempo do destempo
os nomes costuram as suas profecias
no hesterno troar que encontra manancial.
Se dizem
que amanhecem as palavras
é porque a fala não se sitia
na mudez dolorosa
e através delas o corpo refaz-se
na aritmética dos melhores imperadores.
Não é a escuridão impante
que disfarça os medos.
O corpo não foge das convulsões:
acerta contas
de frente
corajoso
antes que o anoitecer faça do dia terminal
um outro esquecimento.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXVI]
Legados da peste (197):
Eis a autofagia humana
a refulgir:
mal despachada a guerra da peste
e já há outra beligerância a bater à porta.
Não conto impérios
no remanso das mãos impuras
nem são meus os magistérios
que definham nos mais altos curas.
Se as mãos a convulsão chamar
e nas pedras chãs fizerem morada
direi de o porvir ser incerto como o mar
vocabulário hasteado em luar emparedado.
E depois em tardio ocaso
regresso ao moroso parapeito
com as estrofes seguidas ao acaso
nesta desambição do perfeito.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXV]
Legados da peste (196):
A reminiscência
da tela a preto de branco
como marca registada
de um pesadelo.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXIV]
Legados da peste (195):
Tribos em reabilitação
desfilam com a coroa da vaidade
de quem desafiou o infortúnio
e trouxe a glória à lapela.