20.4.22

#2369

[Crónicas do vírus, CMLXVI]

 

Legados da peste (257):

Prudência

como eufemismo

de teimosia 

– ou de perpetuação de poder.

19.4.22

Ph algo

Sólidas 

as cofragens

que se enchem 

na urdidura dos dedos. 

As arestas 

são aprumadas

que de ângulos mortos se estiolam

angústias sem lugar. 

Os rostos 

amontoam-se

num mapa sem nomes

sem mosto que seja mecenas 

de um inventário de sombras. 

As mãos 

agarram as sílabas

enquanto a manhã se agiganta

no otimista oblívio dos apoderados. 

Sem ser 

por remédio

a maré assustada foge 

e do mar alto ateia o dia que sobra.

#2368

[Crónicas do vírus, CMLXV]

 

Legados da peste (256):

Um espelho baço

tutela a penumbra,

a herança indesejada.

18.4.22

Tabuleiro dos boémios

Qual é 

a silhueta

da glória

se nos degraus do sono

habita uma pirotecnia magra

a estulta máscara de si

um rogo de piedade

a recusa gratuita

candeias vãs

e um rosnar.

 

Qual é

a geografia

do medo

se nos corrimões da água

se denuncia o algoz emaciado

a claraboia sem contornos

um magistrado sem toga

o tirocínio puído

poetas de giz

e um bolçar.

#2367

[Crónicas do vírus, CMLXIV]

 

Legados da peste (255):

Sobra a hipótese

de postergamento da peste

pelos seus tutores

sob pena de perderem o palco.

#2366

[Crónicas do vírus, CMLXIII]

 

Legados da peste (254):

As fragas 

nada pastoris

que arqueiam o dorso.

17.4.22

A cirurgia do medo

Os mastins

sozinhos

colonizam a cidade.

Deles é

a derradeira palavra

sentenciadores sem dó.

Talvez por serem temidos

muitos aspiram sê-lo.

O poder

sempre constituiu

a maior 

(e pior) 

embriaguez de todas.

#2365

[Crónicas do vírus, CMLXII]

 

Legados da peste (253):

Cortinas de fumo

insistentemente

vestem os palcos.

16.4.22

#2364

[Crónicas do vírus, CMLXI]

 

Legados da peste (252):

Esplanadas

sem cadeiras vazias

no remoçar da Primavera

ateando as vidas de antes.

15.4.22

Anti corrosão

Devo as mãos ao asfalto fundente. 

O provérbio arrasta-se na boca

é como se 

picaretas matraqueassem a língua

e da tortura o sangue falasse 

em vez da voz. 

Se esta varanda está gasta

vou a outra embocadura

onde o rio seja eflúvio de mim

e as portas sejam altas fortalezas

abertas contra a tirania do silêncio. 

Possam beijos dar cor às bocas

e da escotilha segredar as manhãs altivas

nem que a penumbra seja o espelho 

em que se acalmam as sílabas. 

Ao longe

o castelo

sozinho

desamparado na paisagem secular

sulca as nuvens que aterram no seu regaço. 

A partida não é o avesso da chegada

apenas

um apeadeiro

no abundante esmo de apeadeiros

onde se hasteia a escolha. 

#2363

[Crónicas do vírus, CMLX]

 

Legados da peste (251):

O manual de instruções

em nova edição

as páginas tingidas

com cor diferente.

14.4.22

Poluição semântica

Será por acaso

que europeia

mete as mãos pelos pés

com epopeia?

#2362

[Crónicas do vírus, CMXXXIX]

 

Legados da peste (250):

A voz

enfim

desembargada.

13.4.22

Lado B

Não é plano

selar comendas

aos lados B. 

Não é um plano,

anjo zelador 

da contingência. 

Do lado B

aprende-se o avesso

uma margem 

contra a repetição. 

São as medusas

o verbo tentacular

agitando estandartes

sem a framboesa noturna. 

Nos tabuleiros gastos

os acordes retirados à maresia

importam da alma

as casas prontas a ser morada. 

Até que se deita

o dorso das mãos

e lado B cogita

desfazendo conspirações pueris

dos magos peritos no improvável. 

#2361

[Crónicas do vírus, CMXXXVIII]

 

Legados da peste (249):

Lotaria,

ou o prolongamento

do jogo por jogar.

12.4.22

Cláusula número um

Corte-se a eito

a casaca ou a língua viperina

se as varandas forem extintas

e sobrarem os contrafortes a esmo

na paisagem dilacerante.

Corte-se a eito:

volta-se ao princípio

onde o verbo se constrói

em ondas alterosas no auge da tempestade

pois todo o ato criativo

é um verso de tumulto.

E depois

quando sobrar o sono

e de pesadelos não for composto

arrume-se o arsenal genesíaco

e faça-se a contagem do avesso

a contar do porvir que não tem horizonte.

#2360

[Crónicas do vírus, CMXXXVII]

 

Legados da peste (248):

A ovação

de vida

ao futuro.

11.4.22

Contracapa

Se a rasura na página

tem o dedo do contramestre

o que dizer da censura

do peso que se arqueia no ocaso sem nome

das bandeiras impostoras que se revoltam

e nos basaltos enquistados se deitam?

Não são desenfreadas, as palavras.

Não são irrefreáveis

nem se acostumam às prisões mendazes

e seus torcionários advogados.

Não é nas entrelinhas

que se abriga o sumo puro

das palavras impuras

o adubo que mente às colheitas desassisadas.

É na contracapa

em poros disfarçados de tinta dourada

como eram dantes as lombadas

um espelho de falsificações

sem se saber da nota da contrafação.

#2359

[Crónicas do vírus, CMXXXVI]

 

Legados da peste (247):

Depois do biombo forçado

o ser pela metade,

vagaroso.

10.4.22

#2358

[Crónicas do vírus, CMXXXV]

 

Legados da peste (246):

As bandeiras

ainda do avesso

vão por gramáticas

desaprendidas.

9.4.22

Ingente

Consegue-se o peso boreal

quando se encerram os olhos

e a mudez se desfaz 

em nuvens de ócio. 

#2357

[Crónicas do vírus, CMXXXIV]

 

Legados da peste (245):

As fronteiras achadas

são apenas

interiores.

8.4.22

A diástole dos perseverantes

Rio sem nome

voraz se cumpre

na exatidão da chuva semente;

 

outono a destempo

ditando para as páginas sem rosto

a álgebra sem mantimento;

 

vozes escondidas no sótão

cuidando da pele amarrotada

no museu dos déspotas embainhados;

 

miragens vertidas no olhar

imensas paisagens sem mapa alegado

afogam angústias dantes sopesadas;

 

vertigem na planície

ajuramentada para ser moldura

antes que seja império o anoitecer.

Quinze horas, hora continental

O ocaso

senta-se ao jantar

nas suadas palmas das mãos

que se refugiam

no silêncio. 

Por medo

talvez seja por medo

metendo as facas longas

no espelho estilhaçado

pelo crepúsculo. 

Joga-se

a mirífica mentira

no pedestal onde se fruem ilusões

antes que a pele acorde

presa na hibernação. 

Não se cuida

a decadência em prováveis regatos

nem a alucinação transforma o sangue

em altivez. 

O xisto

não é a pedra tumular

arrancada à falésia matinal

e o peito carnudo procura as cicatrizes

nas estrofes surdas. 

Até que o alívio

seja o campanário irrelevante

e as fragas tomem o corpo por semente

sem avisar os deuses de permeio.

#2356

[Crónicas do vírus, CMXXXIII]

 

Legados da peste (244):

Um espelho,

sem centelha,

puído e baço.

7.4.22

Desminagem

Vozes

armadilhadas

templos sem tributo

vozes

sem remissão

sem medo da estatueta do amanhã

irrompem desde a mudez

mudando

verbos e fermentos

à espera

de vozes em seu desalinho

por corrimões frágeis

desatando preces enjeitadas

como se fossem ideias fracassadas

desembaraçadas do outono

desminadas.

#2355

[Crónicas do vírus, CMXXXII]

 

Legados da peste (243):

Uma guerra

para disfarçar outra

ainda por extinguir.

6.4.22

Por vocação

Dentro desta roupagem

pastoreio a aragem 

no sumiço do miradouro.

O horizonte não tem fim

e colho no rosto

o frio abraçado no vento 

que rasura a pele.

Longe

onde só o silêncio se autoriza

não contesto as vozes que não ouço

e de minhas palavras murmuradas

faço a fogueira que me aquece.

Depois do dia válido

é o lugar onde a terra se ausentou

mais o furtivo clamor da multidão indiferente.

Oxalá o exílio

não andasse por longe

ou a lonjura não fosse a albufeira

onde se desfazem as bandeiras gastas

para da aragem constituir

a levedura de ânimo.

#2354

[Crónicas do vírus, CMXXXI]

 

Legados da peste (242):

O calendário

é uma ardósia

o seu negrume

um destino por revelar.

5.4.22

A-Z

Arremesso

beócios

contra

diásporas

elementares.

Fogos

guturais

hoje

ilustrados

jogados

livremente.

Mostos

neófitos

olvidados

partidários

quando

resfolegam.

Serpenteiam

todos

úberes

válidos

Xenofonte

(e) Zaratustra.