5.5.22

#2385

[Crónicas do vírus, CMLXXXII]

 

Legados da peste (273):

Os rostos

em vagaroso processo

de re-significação.

Casta

O poema que morde

calado que seja o sacerdote altivo

e jura

nos olhos marejados que seja

pelo futuro onde esbracejam, 

mortiços,

os braços embaraçados.

E de uma casta apurada

seja casta a ideia desembainhada.

4.5.22

#2384

[Crónicas do vírus, CMLXXXI]

 

Legados da peste (272):

Ainda há espelhos

que teimam,

embaciados por máscaras.

3.5.22

Freguesia

São estes dados

certeiros

o desfecho pungente no magma convulsivo

dilacerando os despojos ora arrumados

pacientemente. 

Às árvores da Primavera estiolada

não deixemos os braços caídos

no pendor assintomático do verbo mortiço. 

Aos primos sem sangue

os avalizados embaixadores do nada

os temerários salteadores sem nome

aqueles foragidos de cemitérios a destempo

os tribunícios de fala escorreita, e solitária

paguem-se 

honorários pelo silêncio

a fecunda fala que esbofeteia o idioma órfão

enquanto se espera

que a maré combine com o sol vetusto

e o vento seja sinónimo de espadas cortantes

os corpos trespassados na sua inteireza

até que deles fiquem estilhaços

em forma de alma sem tamanho.

#2383

[Crónicas do vírus, CMLXXX]

 

Legados da peste (271):

Da vacina como arma

às armas como vacina.

Esvaziamento

A voz do vulcão

ao colo nas veias tumulares

no atroz congeminar da claridade. 

Descomeçam os inviáveis penhores

lagares de angústia deixados órfãos

enquanto se prepara a alvorada. 

O desempate das teimas

é jogado na planura onde se enfeita o fértil

e em dez estocadas nos profetas

se deixa um oráculo em seu devido estatuto. 

Sobra nas mãos o úbere abundante

sem manual de instruções

apenas 

a visível imagem 

de um avesso oculto. 

2.5.22

#2382

[Crónicas do vírus, CMLXXIX]

 

Legados da peste (270):

Os olhos

enfim

desanestesiados.

Desmoda

O risco de acreditar

na própria sombra

é proporcionalmente inverso

à pujante ilusão de si mesmo.

Nas equações que se terçam

os algarismos dançam sem mapa.

Se a altivez não sorrisse desmedida

o dicionário era capaz de recuperar

a humildade.

1.5.22

#2381

[Crónicas do vírus, CMLXXVIII]

 

Legados da peste (269):

E agora somos

a explosão de nós

desde o promontório

que selou a liberdade.

30.4.22

The driver’s seat

O prontuário

de manhãs sem nome

sobe nas bocas desassisadas

e compõe 

o terno inventário da coragem. 

Servirá

em generosas talhadas

o medo antecipatório

que das mãos aguadas

retira os verbos invencíveis.

#2380

[Crónicas do vírus, CMLXXVII]

 

Legados da peste (268):

A queda do açaime

é liberdade exercida em dobro:

uns aliviaram-se da opressão

outros mantêm o direito de o usar.

29.4.22

RPM

 

Sault, “Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=-5OzNTZystM

O sonho que cicia

na fronteira do ouvido

harpeja o crepitar da lareira

sem que da angústia contumaz

o dia tenha entendimento.

Os degraus movem-se

verticais

à medida que os dedos caiam

a silhueta da enseada.

Ouço palavras atropeladas

espanholadamente atropeladas

num grasnar singular

e o barco promete-se ao mar alto.

 

E quem não tem as suas enseadas?

 

Pergunto-me

silenciosamente

omitindo o bramido deslimítrofe

arrumando as cortinas que retesam a claridade

se as enseadas não são privados exílios

ocultando a multitudinária fala gongórica.

#2379

[Crónicas do vírus, CMLXXVI]

 

Legados da peste (267):

Tremenda é a empreitada

de que somos

únicos capatazes.

28.4.22

#2378

[Crónicas do vírus, CMLXXV]

 

Legados da peste (266):

Caíram os açaimes,

longa vida

à beleza e à feiura!

O cinturão negro das letras amaldiçoadas

O tratado das coisas

envergonha compêndio

de páginas amarelecidas

embota o rugido das feras

na sincronia das falas sem dicionário.

 

Trago tratado o dilema

e sem bolçar a digestão dos tempos

arremeto as cores contra o silêncio

neste lugar

que está entre mim 

e um outro eu sem paradeiro.

Azulam-se as abóbadas do olhar

em acetinadas colheres que bebem o mar

e no provérbio que dá de viver às almas

arrisco uma vírgula a destempo

arrisco o deleite do provérbio despedaçado.

 

As coisas tratadas

desembaraçam-se em páginas avulsas

páginas ainda luminosas

dando corda ao mutismo dos timoratos

na divergência das oratórias maduras.

#2377

[Crónicas do vírus, CMLXXIV]

 

Legados da peste (265):

Tudo 

não passou

de um pesadelo

que se demorou

numa passerelle encarvoada.

27.4.22

#2376

[Crónicas do vírus, CMLXXIII]

 

Legados da peste (264):

As pessoas

ganharam

(e de vez?)

vergonha na cara.

 

[Sobre os efeitos duradouros do açaime]

 

26.4.22

Um lugar chamado “Sonhos”

Passei por um autocarro 

ia para “Sonhos”.

Não sabia de um lugar

que dá pelo nome de sonhos, 

o que ditará

de seus habitantes

serem sonhadores. 

Sem nenhuma altercação do pensamento

nem figuração de fingidores a preceito. 

Se a alguém

forem visitação assídua

os pesadelos

aconselha-se 

temporada nos sonhos

para os habilitar

em detrimento dos pesadelos tentaculares.

Estou convencido:

os antepassados deram nome de sonhos

a este lugar

para um exílio haver

para os fustigados por pesadelos. 

#2375

[Crónicas do vírus, CMLXXII]

 

Legados da peste (263):

A comédia

torrencialmente precipitada

sobre a angústia.

25.4.22

Vira o voto e fica o mesmo

Peçam 

uma lavagem cerebral

um imorredoiro compêndio de instruções

semáforos diligentemente semeados

em todos os cruzamentos

instruções sobre como ser e atuar

e até como devem proceder

quando as hormonas convidam ao sexo.

 

Peçam 

regulamentos e leis e posturas

e decretos-regulamentares

e uma miríade de regras minuciosas

todas as possibilidades da vida

tatuadas no sortilégio do dedo regulador.

 

Peçam

para haver regentes em vez de pais

(ou regentes substituindo-se aos pais)

obediência religiosa a uma bandeira

educação meticulosa pelos mestres de escola

dando seguimento à bitola das autoridades

e peçam, ainda,

para as autoridades não se esquecerem

da exibição do poder de império

substituindo-se

a páginas tantas

por autoritários

 

(que o povo madraço adora “pulso forte”

como se fosse preciso 

para um qualquer onanismo místico

que cavalga no poder dos regentes).

 

Peçam

para tutelarem eufemismos

que escondam farsas bem disfarçadas

e, ato contínuo,

atirem toda a areia do Saara para os olhos

até que a capacidade de inteleção dos súbditos

fique presa por arames.

 

Nesta altura

não se esqueçam 

de pedir

o boletim de voto

e repitam

de preferência,

todo o antecedente.

#2374

[Crónicas do vírus, CMLXXI]

 

Legados da peste (262):

A pedra sobre o assunto

é à prova

de estilhaços?

24.4.22

O guarda-redes abstrato

O verbo na trave

não vá o velho improvável

acertar no buraco da agulha

e ao longe perceber

as pestanas das cortinas

que desviam o olhar para os subúrbios.

Nunca se dispensem

as mãos audazes que se metem

na frente dos provérbios sentenciais.

O guarda-redes abstrato

é um seguro de vida,

perene.

#2373

[Crónicas do vírus, CMLXX]

 

Legados da peste (261):

Herdeiros

da servidão

à mercê de uma peste.

23.4.22

Cepa direita

Às vezes

é como se precisasse

de fazer a vindima

o corpo sentido por excesso

e antes que de excessos mais

se encolerize

refém dos meus próprios degraus

habilito o silo com as sobras de mim

para memória futura. 

Outras vezes

sento-me no miradouro colateral

e dou de mim à vontade 

sem pejo

os fragmentos

os visíveis e os ocultos

no aleatório desconspirar que arremete

basilar

nos socalcos do futuro.

#2372

[Crónicas do vírus, CMLXIX]

 

Legados da peste (260):

As altas paredes da ameia

enfim logradas. 

22.4.22

Válvula de segurança

Não fosse o zero

as arestas quadradas

seriam gelo sobre as feridas

 

o milhão inteiro de profecias

sem dívida por legado

 

sem vestígios das lágrimas 

abandonadas. 

#2371

[Crónicas do vírus, CMLXVIII]

 

Legados da peste (259):

A liberdade

não ficou

esquecida. 

21.4.22

UNESCO para uso pessoal

Por esconder

o que de mais feio se contém

no humano corpo,

ao sapato

devia ser aposta a comenda

de património da humanidade. 

#2370

[Crónicas do vírus, CMLXVII]

 

Legados da peste (258):

Já pouco tempo falta

para reaprendermos 

os rostos.

20.4.22

Almamómetro

O caminho do silêncio

arroteia marés hasteadas em breve

no descolorido cenário habitado por vultos. 

Na gramática do silêncio

contam todas as sílabas

para o apuro dos déspotas. 

Descombinam-se os álibis

na congeminação perfeita dos fingimentos

sem cesuras ou outros pespontos

à espera dos promitentes do verbo hausto

à espera

dos mantimentos especulados 

nas janelas que tecem suas próprias paisagens. 

No caminho do silêncio

nem o arvoredo cicia

e não é pelo vento que se ausentou. 

Do silêncio a caminho

o poema que exulta

em frações diferidas do vocabulário loquaz

a mirífica palavra 

regida pelas ameias da alma.