10.5.22

#2390

[Crónicas do vírus, CMLXXXVII]

 

Legados da peste (278):

Claudicar 

– verbo não albergado

na gramática da peste.

9.5.22

Descaça

Os fósforos mostravam a cor 

a um céu plúmbeo. 

Vozes ciciadas

esconjuravam o Inverno, 

como se as pessoas 

estivessem cansadas de auroras boreais 

e de campos tingidos por neve. 

A paisagem caiada de branco 

era tão cansativa 

como a oratória minimal-repetitiva 

dos camaradas do comité central 

(que ainda sonham com o politburo). 

Os fósforos

ateavam a claridade 

onde se amontoavam as divergências. 

Por fora das janelas,

uma multidão exultava 

com a diversidade. 

Ninguém emudecia vozes 

contra a vontade das próprias. 

Como pano de fundo,

uma música levemente folk. 

As cordas repuxadas dos reposteiros 

inclinando a claridade para dentro da casa. 

Os livros nas estantes 

recebiam a claridade com equanimidade. 

Os livros estavam à espera 

de vozes que fossem suas. 

Não bolçavam estultícia, 

que tantas páginas proibiam a estultícia. 

Se as provações fossem entrada na equação, 

os profetas das contradições de termos

teriam direito constitucional ao silêncio 

(forçado).

A linhagem é outra. 

Sempre fomos razoáveis 

a ofertar a metade do rosto não torturada. 

Não chamem a polícia dos costumes. 

Não clamem

por uma contradição de termos elevada ao quadrado. 

Se ainda não perdemos a peugada da liberdade, 

sabemos de que lado ficar.

#2389

[Crónicas do vírus, CMLXXXVI]

 

Legados da peste (277):

Deixámos de ser

metáfora por dentro de uma metáfora

e somos 

outra vez

uma metáfora.

8.5.22

Contradição

Não persigo esta matança

os verbos sumidos em estrofes macilentas.

De cada vez que somam flores

protestam os capitães desleixados

nadando contra os tribunícios gongóricos

deles a acusação contra a palavra insondável

a hipérbole embrulhada em labirínticas ideias.

Em vez da fraqueza dos comuns

os aperaltados catedráticos inventam o complexo

só para serem apanhados à má-fé

na retórica retorcida 

que farsa contra o entendimento.

É desta matança do verbo

que os apoderados na simplicidade

são juras vivas

curadores da fala sem espinhas na garganta.

#2388

[Crónicas do vírus, CMLXXXV]

 

Legados da peste (276):

Prova dos nove:

dos tentáculos da peste 

ficou a salvo

um módico de solipsismo.

7.5.22

Merciful lie

I will not

fuck you

while

a war is going

on.

#2387

[Crónicas do vírus, CMLXXXIV]

 

Legados da peste (275):

Por tanta fragilidade que somos

não derruímos 

perante o terramoto

que esbracejou a decadência.

6.5.22

#2386

[Crónicas do vírus, CMLXXXIII]

 

Legados da peste (274):

Pegamos nos estilhaços

e voltamos a ser

futuro.

5.5.22

Sobre a paz (que devia) ser perpétua

A boca que se desabotoa

como beligerante sem armas

beija bocas outras

na abastada paz que se abrilhanta

no bastão dos destemidos

antes que os biltres tudo abastardem

e as bocas se abotoem de volta

e, beócias, se abespinhem.

#2385

[Crónicas do vírus, CMLXXXII]

 

Legados da peste (273):

Os rostos

em vagaroso processo

de re-significação.

Casta

O poema que morde

calado que seja o sacerdote altivo

e jura

nos olhos marejados que seja

pelo futuro onde esbracejam, 

mortiços,

os braços embaraçados.

E de uma casta apurada

seja casta a ideia desembainhada.

4.5.22

#2384

[Crónicas do vírus, CMLXXXI]

 

Legados da peste (272):

Ainda há espelhos

que teimam,

embaciados por máscaras.

3.5.22

Freguesia

São estes dados

certeiros

o desfecho pungente no magma convulsivo

dilacerando os despojos ora arrumados

pacientemente. 

Às árvores da Primavera estiolada

não deixemos os braços caídos

no pendor assintomático do verbo mortiço. 

Aos primos sem sangue

os avalizados embaixadores do nada

os temerários salteadores sem nome

aqueles foragidos de cemitérios a destempo

os tribunícios de fala escorreita, e solitária

paguem-se 

honorários pelo silêncio

a fecunda fala que esbofeteia o idioma órfão

enquanto se espera

que a maré combine com o sol vetusto

e o vento seja sinónimo de espadas cortantes

os corpos trespassados na sua inteireza

até que deles fiquem estilhaços

em forma de alma sem tamanho.

#2383

[Crónicas do vírus, CMLXXX]

 

Legados da peste (271):

Da vacina como arma

às armas como vacina.

Esvaziamento

A voz do vulcão

ao colo nas veias tumulares

no atroz congeminar da claridade. 

Descomeçam os inviáveis penhores

lagares de angústia deixados órfãos

enquanto se prepara a alvorada. 

O desempate das teimas

é jogado na planura onde se enfeita o fértil

e em dez estocadas nos profetas

se deixa um oráculo em seu devido estatuto. 

Sobra nas mãos o úbere abundante

sem manual de instruções

apenas 

a visível imagem 

de um avesso oculto. 

2.5.22

#2382

[Crónicas do vírus, CMLXXIX]

 

Legados da peste (270):

Os olhos

enfim

desanestesiados.

Desmoda

O risco de acreditar

na própria sombra

é proporcionalmente inverso

à pujante ilusão de si mesmo.

Nas equações que se terçam

os algarismos dançam sem mapa.

Se a altivez não sorrisse desmedida

o dicionário era capaz de recuperar

a humildade.

1.5.22

#2381

[Crónicas do vírus, CMLXXVIII]

 

Legados da peste (269):

E agora somos

a explosão de nós

desde o promontório

que selou a liberdade.

30.4.22

The driver’s seat

O prontuário

de manhãs sem nome

sobe nas bocas desassisadas

e compõe 

o terno inventário da coragem. 

Servirá

em generosas talhadas

o medo antecipatório

que das mãos aguadas

retira os verbos invencíveis.

#2380

[Crónicas do vírus, CMLXXVII]

 

Legados da peste (268):

A queda do açaime

é liberdade exercida em dobro:

uns aliviaram-se da opressão

outros mantêm o direito de o usar.

29.4.22

RPM

 

Sault, “Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=-5OzNTZystM

O sonho que cicia

na fronteira do ouvido

harpeja o crepitar da lareira

sem que da angústia contumaz

o dia tenha entendimento.

Os degraus movem-se

verticais

à medida que os dedos caiam

a silhueta da enseada.

Ouço palavras atropeladas

espanholadamente atropeladas

num grasnar singular

e o barco promete-se ao mar alto.

 

E quem não tem as suas enseadas?

 

Pergunto-me

silenciosamente

omitindo o bramido deslimítrofe

arrumando as cortinas que retesam a claridade

se as enseadas não são privados exílios

ocultando a multitudinária fala gongórica.

#2379

[Crónicas do vírus, CMLXXVI]

 

Legados da peste (267):

Tremenda é a empreitada

de que somos

únicos capatazes.

28.4.22

#2378

[Crónicas do vírus, CMLXXV]

 

Legados da peste (266):

Caíram os açaimes,

longa vida

à beleza e à feiura!

O cinturão negro das letras amaldiçoadas

O tratado das coisas

envergonha compêndio

de páginas amarelecidas

embota o rugido das feras

na sincronia das falas sem dicionário.

 

Trago tratado o dilema

e sem bolçar a digestão dos tempos

arremeto as cores contra o silêncio

neste lugar

que está entre mim 

e um outro eu sem paradeiro.

Azulam-se as abóbadas do olhar

em acetinadas colheres que bebem o mar

e no provérbio que dá de viver às almas

arrisco uma vírgula a destempo

arrisco o deleite do provérbio despedaçado.

 

As coisas tratadas

desembaraçam-se em páginas avulsas

páginas ainda luminosas

dando corda ao mutismo dos timoratos

na divergência das oratórias maduras.

#2377

[Crónicas do vírus, CMLXXIV]

 

Legados da peste (265):

Tudo 

não passou

de um pesadelo

que se demorou

numa passerelle encarvoada.

27.4.22

#2376

[Crónicas do vírus, CMLXXIII]

 

Legados da peste (264):

As pessoas

ganharam

(e de vez?)

vergonha na cara.

 

[Sobre os efeitos duradouros do açaime]

 

26.4.22

Um lugar chamado “Sonhos”

Passei por um autocarro 

ia para “Sonhos”.

Não sabia de um lugar

que dá pelo nome de sonhos, 

o que ditará

de seus habitantes

serem sonhadores. 

Sem nenhuma altercação do pensamento

nem figuração de fingidores a preceito. 

Se a alguém

forem visitação assídua

os pesadelos

aconselha-se 

temporada nos sonhos

para os habilitar

em detrimento dos pesadelos tentaculares.

Estou convencido:

os antepassados deram nome de sonhos

a este lugar

para um exílio haver

para os fustigados por pesadelos. 

#2375

[Crónicas do vírus, CMLXXII]

 

Legados da peste (263):

A comédia

torrencialmente precipitada

sobre a angústia.

25.4.22

Vira o voto e fica o mesmo

Peçam 

uma lavagem cerebral

um imorredoiro compêndio de instruções

semáforos diligentemente semeados

em todos os cruzamentos

instruções sobre como ser e atuar

e até como devem proceder

quando as hormonas convidam ao sexo.

 

Peçam 

regulamentos e leis e posturas

e decretos-regulamentares

e uma miríade de regras minuciosas

todas as possibilidades da vida

tatuadas no sortilégio do dedo regulador.

 

Peçam

para haver regentes em vez de pais

(ou regentes substituindo-se aos pais)

obediência religiosa a uma bandeira

educação meticulosa pelos mestres de escola

dando seguimento à bitola das autoridades

e peçam, ainda,

para as autoridades não se esquecerem

da exibição do poder de império

substituindo-se

a páginas tantas

por autoritários

 

(que o povo madraço adora “pulso forte”

como se fosse preciso 

para um qualquer onanismo místico

que cavalga no poder dos regentes).

 

Peçam

para tutelarem eufemismos

que escondam farsas bem disfarçadas

e, ato contínuo,

atirem toda a areia do Saara para os olhos

até que a capacidade de inteleção dos súbditos

fique presa por arames.

 

Nesta altura

não se esqueçam 

de pedir

o boletim de voto

e repitam

de preferência,

todo o antecedente.

#2374

[Crónicas do vírus, CMLXXI]

 

Legados da peste (262):

A pedra sobre o assunto

é à prova

de estilhaços?