19.5.22

#2400

[Crónicas do vírus, CMXCVII]

 

Legados da peste (288):

Somos

privilégio exorbitante

a praça centrípeta de tudo

ou a tela da mais frágil fragilidade?

18.5.22

Bandeira branca

É esta

a bandeira branca

a que as mãos

herculeamente se hasteiam.

A bandeira branca

contra a desarte da beligerância 

dos que se armam em gente armada

peritos no idioma da força.

Desconfio

que haja uma afeção 

de quem aos olhos

não seja permitido

o branco

e numa embriaguez de morte

prossiga a vida.

#2399

[Crónicas do vírus, CMXCVI]

 

Legados da peste (287):

O tempo

com saudades

do seu passado;

ou o tempo

pautado por uma nova

cartografia?

17.5.22

Marxismo de pacotilha em forma poética

Malparado

o caso ficou malparado.

Mesmo a jeito

de uma multa

por mau estacionamento.

 

Quando havia crise

 

(não quer dizer

que tenha deixado de haver)

 

sobre nós adejava 

o fantasma

do crédito malparado.

 

Não consta

que tenha sido autuado

por mal estacionamento.

#2398

[Crónicas do vírus, CMXCV]

 

Legados da peste (286):

Muito se ouve falar

das tradições restauradas,

o que nem sempre

(ou vezes poucas)

é motivo de regozijo.

16.5.22

O reino é dos filósofos

Jogo de cintura:

sem ser odalisca

apenas 

uma baleia impertinente

o pálio atirado ao mar sofrível.

A estremunhada irrisão

socorre o destempero:

isto nem são ondas que se vejam

perorava

em ardilosa ufania 

o rapaz 

ostentando a simbiose com o mar.

E ele meneava a cintura

uma e outra vez

avinagrado cometa

na viril, garbosa, vaidade

assisada em proezas fingidas.

Os filósofos

é que não sabem da poda 

– dizia um deles

enquanto 

bebericava na perplexidade da espécie

no conformado ensimesmar da solidão.

Ao menos

não temos de praticar

o jogo de cintura

– aquietou-se outro dos filósofos amestrados.

#2397

[Crónicas do vírus, CMXCIV]

 

Legados da peste (285):

Com o alto patrocínio

de prolixos adjetivos,

um cortejo renovado 

de disfarces.

15.5.22

Marés caladas

Olhava 

o fundo bem fundo 

de uma garrafa

sem saber de que latitude proviera

sem saber do paradeiro

de quem a deixara à mercê

do mar.

Olhava 

o fundo bem fundo

da garrafa.

Parecia enferrujada pelo salitre

a cor desbotada

e no seu fundo bem fundo

assentavam os vestígios de um papel

já apenas uma pasta disforme

no que fora

talvez

o segredo do legítimo proprietário

ou apenas um estado de alma

legado

a quem o viesse a tutelar

depois de o mar 

vomitar a garrafa puída

num lugar ao acaso.

Olhava

o fundo bem fundo

da garrafa

e não soube dizer

às demandas postuladas

se o estado de alma se contagiava

se podia ser o mecenas do segredo

ou se estava anestesiado

pelo tremor da especulação.

#2396

[Crónicas do vírus, CMXCIII]

 

Legados da peste (284):

Às lágrimas

que falam

pelo futuro.

Investigação científica

O escroque monsieur

debilita as asas

boçalmente deitadas

sobre a mesa.

O sensível

peida um murmúrio:

quem assim se descomporta

não merece amesendação.

Já o bêbado apenas desconsidera

apanhado no radar da alucinação

como se estivesse

numa sessão de electroestimulação.

Nada disto

vem nas capas dos jornais.

14.5.22

#2395

[Crónicas do vírus, CMXCII]

 

Legados da peste (283):

Levedámos

no adro sobranceiro

ao cativeiro.

13.5.22

Programa das festividades

Não participo das litanias

dos sufrágios elegantes

dos fantoches fingidores

e do palco embalsamado

por figurões fora de prazo.

Esta sombra é madrigalesca

e as páginas que dançam sob os dedos

são como néctares que agigantam a alma.

 

É só disto que preciso.

 

Disso 

e de léguas sem fim entre mim

e as apressadas, fúteis personalidades

no cortejo de fingimentos

avais certos do mais puro vazio

enquanto passeiam a notoriedade.

#2394

[Crónicas do vírus, CMXCI]

 

Legados da peste (282):

Conseguimos coincidir

na extravagante versão de nós

e na nossa vulnerabilidade?

12.5.22

Lobotomia

As pedras que se arrastam

escondidas sob a boca

sobem ao teto baço da tarde

enquanto o tempo foge

com vagar

adulterando as sílabas conspiradas.

 

Lá fora há gente que passa.

Indiferente

terçando a mesma indiferença

que fora véspera minha.

 

Os toros de madeira alinhados

pressagiam o inverno

ou coutadas de predadores mal tecidos

antes de arrancarem para as serranias

em temporadas de atavismo cercado.

 

A trela do remoçado canto

continua apertada.

À vez

mastins e presas trocam créditos

e ensinam os alinhavos do armistício.

Em vez de linguagem,

onomatopeias céleres e distintas,

um truísmo de cores coléricas,

preenchem as páginas onde reside a fala.

 

À vez

sem saberem por mote próprio

dos deslimites da loucura 

– das fragas de onde se despenha 

a alucinação grupal – 

emprestam seus corpos frágeis

ao fogo em que se incensam.

 

Tarde de mais

deram conta do ocorrido.

 

Já não vão a tempo

de olhar por si

como lobos de si mesmos.

#2393

[Crónicas do vírus, CMXC]

 

Legados da peste (281):

Ainda falta apurar

os danos permanentes averbados 

nos despojos da peste.

11.5.22

Work in the progress

Damos o relógio

o compasso desastrado

vinho estiolado no esgoto da vaidade

ou apenas

a matéria-prima roubada ao dédalo da noite

no acampamento das desvirtudes

entre nuvens amortalhadas

e falas inválidas feitas de verbos

imponderáveis.

E depois

antes que um entretanto se sobreponha

juntamos os dedos aos pares

sem o grão que atravanca o entardecer

sem a venda sobre os olhos açambarcados

nos vestígios apagados das desmemórias,

o fado acampado no baldio sem apeadeiro.

As mãos desatadas

irrompem no vazamento da maré

e, reféns da vontade irrefreável

(como os gatos com cio),

hasteiam os silêncios que se jogam

no chão puído do palco.

#2392

[Crónicas do vírus, CMLXXXIX]

 

Legados da peste (280):

É da torre de Babel

a linhagem das ilusões.

10.5.22

#2391

[Crónicas do vírus, CMLXXXVIII]

 

Legados da peste (279):

Admirável

a generosidade

dos cidadãos ainda dependentes

do açaime.

Como dança a matemática?

A justa medida

do medo;

as manhãs sem futuro

litanias que se sublevam

por dentro do peito amarrado

jogam o jugo contra a angústia

como se fosse 

um fogo ateado contra um fogo:

dois negativos fazem um positivo 

– aprendemos da matemática. 

Não é do lúgubre verbo,

o verbo gasto,

que se lançam as artes no mar iracundo. 

Dois negativos fazem um positivo:

o mar iracundo aplaca a angústia derramada,

ou o contrário. 

O palco

em suas fortuitas congeminações

o dirá. 

#2390

[Crónicas do vírus, CMLXXXVII]

 

Legados da peste (278):

Claudicar 

– verbo não albergado

na gramática da peste.

9.5.22

Descaça

Os fósforos mostravam a cor 

a um céu plúmbeo. 

Vozes ciciadas

esconjuravam o Inverno, 

como se as pessoas 

estivessem cansadas de auroras boreais 

e de campos tingidos por neve. 

A paisagem caiada de branco 

era tão cansativa 

como a oratória minimal-repetitiva 

dos camaradas do comité central 

(que ainda sonham com o politburo). 

Os fósforos

ateavam a claridade 

onde se amontoavam as divergências. 

Por fora das janelas,

uma multidão exultava 

com a diversidade. 

Ninguém emudecia vozes 

contra a vontade das próprias. 

Como pano de fundo,

uma música levemente folk. 

As cordas repuxadas dos reposteiros 

inclinando a claridade para dentro da casa. 

Os livros nas estantes 

recebiam a claridade com equanimidade. 

Os livros estavam à espera 

de vozes que fossem suas. 

Não bolçavam estultícia, 

que tantas páginas proibiam a estultícia. 

Se as provações fossem entrada na equação, 

os profetas das contradições de termos

teriam direito constitucional ao silêncio 

(forçado).

A linhagem é outra. 

Sempre fomos razoáveis 

a ofertar a metade do rosto não torturada. 

Não chamem a polícia dos costumes. 

Não clamem

por uma contradição de termos elevada ao quadrado. 

Se ainda não perdemos a peugada da liberdade, 

sabemos de que lado ficar.

#2389

[Crónicas do vírus, CMLXXXVI]

 

Legados da peste (277):

Deixámos de ser

metáfora por dentro de uma metáfora

e somos 

outra vez

uma metáfora.

8.5.22

Contradição

Não persigo esta matança

os verbos sumidos em estrofes macilentas.

De cada vez que somam flores

protestam os capitães desleixados

nadando contra os tribunícios gongóricos

deles a acusação contra a palavra insondável

a hipérbole embrulhada em labirínticas ideias.

Em vez da fraqueza dos comuns

os aperaltados catedráticos inventam o complexo

só para serem apanhados à má-fé

na retórica retorcida 

que farsa contra o entendimento.

É desta matança do verbo

que os apoderados na simplicidade

são juras vivas

curadores da fala sem espinhas na garganta.

#2388

[Crónicas do vírus, CMLXXXV]

 

Legados da peste (276):

Prova dos nove:

dos tentáculos da peste 

ficou a salvo

um módico de solipsismo.

7.5.22

Merciful lie

I will not

fuck you

while

a war is going

on.

#2387

[Crónicas do vírus, CMLXXXIV]

 

Legados da peste (275):

Por tanta fragilidade que somos

não derruímos 

perante o terramoto

que esbracejou a decadência.

6.5.22

#2386

[Crónicas do vírus, CMLXXXIII]

 

Legados da peste (274):

Pegamos nos estilhaços

e voltamos a ser

futuro.

5.5.22

Sobre a paz (que devia) ser perpétua

A boca que se desabotoa

como beligerante sem armas

beija bocas outras

na abastada paz que se abrilhanta

no bastão dos destemidos

antes que os biltres tudo abastardem

e as bocas se abotoem de volta

e, beócias, se abespinhem.

#2385

[Crónicas do vírus, CMLXXXII]

 

Legados da peste (273):

Os rostos

em vagaroso processo

de re-significação.

Casta

O poema que morde

calado que seja o sacerdote altivo

e jura

nos olhos marejados que seja

pelo futuro onde esbracejam, 

mortiços,

os braços embaraçados.

E de uma casta apurada

seja casta a ideia desembainhada.