[Crónicas do vírus, CMXCVII]
Legados da peste (288):
Somos
privilégio exorbitante
a praça centrípeta de tudo
ou a tela da mais frágil fragilidade?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CMXCVII]
Legados da peste (288):
Somos
privilégio exorbitante
a praça centrípeta de tudo
ou a tela da mais frágil fragilidade?
É esta
a bandeira branca
a que as mãos
herculeamente se hasteiam.
A bandeira branca
contra a desarte da beligerância
dos que se armam em gente armada
peritos no idioma da força.
Desconfio
que haja uma afeção
de quem aos olhos
não seja permitido
o branco
e numa embriaguez de morte
prossiga a vida.
[Crónicas do vírus, CMXCVI]
Legados da peste (287):
O tempo
com saudades
do seu passado;
ou o tempo
pautado por uma nova
cartografia?
Malparado
o caso ficou malparado.
Mesmo a jeito
de uma multa
por mau estacionamento.
Quando havia crise
(não quer dizer
que tenha deixado de haver)
sobre nós adejava
o fantasma
do crédito malparado.
Não consta
que tenha sido autuado
por mal estacionamento.
[Crónicas do vírus, CMXCV]
Legados da peste (286):
Muito se ouve falar
das tradições restauradas,
o que nem sempre
(ou vezes poucas)
é motivo de regozijo.
Jogo de cintura:
sem ser odalisca
apenas
uma baleia impertinente
o pálio atirado ao mar sofrível.
A estremunhada irrisão
socorre o destempero:
isto nem são ondas que se vejam
perorava
em ardilosa ufania
o rapaz
ostentando a simbiose com o mar.
E ele meneava a cintura
uma e outra vez
avinagrado cometa
na viril, garbosa, vaidade
assisada em proezas fingidas.
Os filósofos
é que não sabem da poda
– dizia um deles
enquanto
bebericava na perplexidade da espécie
no conformado ensimesmar da solidão.
Ao menos
não temos de praticar
o jogo de cintura
– aquietou-se outro dos filósofos amestrados.
[Crónicas do vírus, CMXCIV]
Legados da peste (285):
Com o alto patrocínio
de prolixos adjetivos,
um cortejo renovado
de disfarces.
Olhava
o fundo bem fundo
de uma garrafa
sem saber de que latitude proviera
sem saber do paradeiro
de quem a deixara à mercê
do mar.
Olhava
o fundo bem fundo
da garrafa.
Parecia enferrujada pelo salitre
a cor desbotada
e no seu fundo bem fundo
assentavam os vestígios de um papel
já apenas uma pasta disforme
no que fora
talvez
o segredo do legítimo proprietário
ou apenas um estado de alma
legado
a quem o viesse a tutelar
depois de o mar
vomitar a garrafa puída
num lugar ao acaso.
Olhava
o fundo bem fundo
da garrafa
e não soube dizer
às demandas postuladas
se o estado de alma se contagiava
se podia ser o mecenas do segredo
ou se estava anestesiado
pelo tremor da especulação.
O escroque monsieur
debilita as asas
boçalmente deitadas
sobre a mesa.
O sensível
peida um murmúrio:
quem assim se descomporta
não merece amesendação.
Já o bêbado apenas desconsidera
apanhado no radar da alucinação
como se estivesse
numa sessão de electroestimulação.
Nada disto
vem nas capas dos jornais.
Não participo das litanias
dos sufrágios elegantes
dos fantoches fingidores
e do palco embalsamado
por figurões fora de prazo.
Esta sombra é madrigalesca
e as páginas que dançam sob os dedos
são como néctares que agigantam a alma.
É só disto que preciso.
Disso
e de léguas sem fim entre mim
e as apressadas, fúteis personalidades
no cortejo de fingimentos
avais certos do mais puro vazio
enquanto passeiam a notoriedade.
[Crónicas do vírus, CMXCI]
Legados da peste (282):
Conseguimos coincidir
na extravagante versão de nós
e na nossa vulnerabilidade?
As pedras que se arrastam
escondidas sob a boca
sobem ao teto baço da tarde
enquanto o tempo foge
com vagar
adulterando as sílabas conspiradas.
Lá fora há gente que passa.
Indiferente
terçando a mesma indiferença
que fora véspera minha.
Os toros de madeira alinhados
pressagiam o inverno
ou coutadas de predadores mal tecidos
antes de arrancarem para as serranias
em temporadas de atavismo cercado.
A trela do remoçado canto
continua apertada.
À vez
mastins e presas trocam créditos
e ensinam os alinhavos do armistício.
Em vez de linguagem,
onomatopeias céleres e distintas,
um truísmo de cores coléricas,
preenchem as páginas onde reside a fala.
À vez
sem saberem por mote próprio
dos deslimites da loucura
– das fragas de onde se despenha
a alucinação grupal –
emprestam seus corpos frágeis
ao fogo em que se incensam.
Tarde de mais
deram conta do ocorrido.
Já não vão a tempo
de olhar por si
como lobos de si mesmos.
[Crónicas do vírus, CMXC]
Legados da peste (281):
Ainda falta apurar
os danos permanentes averbados
nos despojos da peste.
Damos o relógio
o compasso desastrado
vinho estiolado no esgoto da vaidade
ou apenas
a matéria-prima roubada ao dédalo da noite
no acampamento das desvirtudes
entre nuvens amortalhadas
e falas inválidas feitas de verbos
imponderáveis.
E depois
antes que um entretanto se sobreponha
juntamos os dedos aos pares
sem o grão que atravanca o entardecer
sem a venda sobre os olhos açambarcados
nos vestígios apagados das desmemórias,
o fado acampado no baldio sem apeadeiro.
As mãos desatadas
irrompem no vazamento da maré
e, reféns da vontade irrefreável
(como os gatos com cio),
hasteiam os silêncios que se jogam
no chão puído do palco.
[Crónicas do vírus, CMLXXXIX]
Legados da peste (280):
É da torre de Babel
a linhagem das ilusões.
[Crónicas do vírus, CMLXXXVIII]
Legados da peste (279):
Admirável
a generosidade
dos cidadãos ainda dependentes
do açaime.
A justa medida
do medo;
as manhãs sem futuro
litanias que se sublevam
por dentro do peito amarrado
jogam o jugo contra a angústia
como se fosse
um fogo ateado contra um fogo:
dois negativos fazem um positivo
– aprendemos da matemática.
Não é do lúgubre verbo,
o verbo gasto,
que se lançam as artes no mar iracundo.
Dois negativos fazem um positivo:
o mar iracundo aplaca a angústia derramada,
ou o contrário.
O palco
em suas fortuitas congeminações
o dirá.
[Crónicas do vírus, CMLXXXVII]
Legados da peste (278):
Claudicar
– verbo não albergado
na gramática da peste.
Os fósforos mostravam a cor
a um céu plúmbeo.
Vozes ciciadas
esconjuravam o Inverno,
como se as pessoas
estivessem cansadas de auroras boreais
e de campos tingidos por neve.
A paisagem caiada de branco
era tão cansativa
como a oratória minimal-repetitiva
dos camaradas do comité central
(que ainda sonham com o politburo).
Os fósforos
ateavam a claridade
onde se amontoavam as divergências.
Por fora das janelas,
uma multidão exultava
com a diversidade.
Ninguém emudecia vozes
contra a vontade das próprias.
Como pano de fundo,
uma música levemente folk.
As cordas repuxadas dos reposteiros
inclinando a claridade para dentro da casa.
Os livros nas estantes
recebiam a claridade com equanimidade.
Os livros estavam à espera
de vozes que fossem suas.
Não bolçavam estultícia,
que tantas páginas proibiam a estultícia.
Se as provações fossem entrada na equação,
os profetas das contradições de termos
teriam direito constitucional ao silêncio
(forçado).
A linhagem é outra.
Sempre fomos razoáveis
a ofertar a metade do rosto não torturada.
Não chamem a polícia dos costumes.
Não clamem
por uma contradição de termos elevada ao quadrado.
Se ainda não perdemos a peugada da liberdade,
sabemos de que lado ficar.
[Crónicas do vírus, CMLXXXVI]
Legados da peste (277):
Deixámos de ser
metáfora por dentro de uma metáfora
e somos
outra vez
uma metáfora.
Não persigo esta matança
os verbos sumidos em estrofes macilentas.
De cada vez que somam flores
protestam os capitães desleixados
nadando contra os tribunícios gongóricos
deles a acusação contra a palavra insondável
a hipérbole embrulhada em labirínticas ideias.
Em vez da fraqueza dos comuns
os aperaltados catedráticos inventam o complexo
só para serem apanhados à má-fé
na retórica retorcida
que farsa contra o entendimento.
É desta matança do verbo
que os apoderados na simplicidade
são juras vivas
curadores da fala sem espinhas na garganta.
[Crónicas do vírus, CMLXXXV]
Legados da peste (276):
Prova dos nove:
dos tentáculos da peste
ficou a salvo
um módico de solipsismo.
[Crónicas do vírus, CMLXXXIV]
Legados da peste (275):
Por tanta fragilidade que somos
não derruímos
perante o terramoto
que esbracejou a decadência.
[Crónicas do vírus, CMLXXXIII]
Legados da peste (274):
Pegamos nos estilhaços
e voltamos a ser
futuro.
A boca que se desabotoa
como beligerante sem armas
beija bocas outras
na abastada paz que se abrilhanta
no bastão dos destemidos
antes que os biltres tudo abastardem
e as bocas se abotoem de volta
e, beócias, se abespinhem.
[Crónicas do vírus, CMLXXXII]
Legados da peste (273):
Os rostos
em vagaroso processo
de re-significação.
O poema que morde
calado que seja o sacerdote altivo
e jura
nos olhos marejados que seja
pelo futuro onde esbracejam,
mortiços,
os braços embaraçados.
E de uma casta apurada
seja casta a ideia desembainhada.