O Instituto Nacional de Estatística
teimosamente
bolça números ingratos,
números que causam desprazer nos regentes.
[Inspirado em Auden]
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O Instituto Nacional de Estatística
teimosamente
bolça números ingratos,
números que causam desprazer nos regentes.
[Inspirado em Auden]
Em reparações convulsivas,
os arrependimentos.
Não choram as lágrimas
ausentes:
fingem
no fingimento irresponsável
de quem é intencionalmente farsante
do passado.
No fim do ciclo
tudo fica por reparar,
pese embora convicção usada,
pois o irreparável apenas se adestra
com o jugo do futuro.
Neste matadouro colossal
que é o teatro
onde somos matéria pública
não há direito a segundas hipóteses.
Às páginas do calendário
penhores máximos da crueza do tempo:
antes desfocadas,
vasos sanguíneos por onde desfila
o tremendo apetite que esconjura
o medo.
Dizemos
em brandos sinais
que um teatro herético que absorve a geografia
a abundante lógica sem formalização
ou apenas
a telúrica palavra
que abranda as dores que destilam o corpo.
As ideias passeiam
insubmissas
no copo que recebe os lábios em ebulição:
parecem folhas outonais
desarrumadas
por um vento que entoa a tempestade
vão e veem no indeclarado óbito dos soezes
desautorizados artesãos que esculpem
o céu perenemente plúmbeo.
Tomo o dia
como pressentimento de mim
e julgo
com as armas retóricas que não tenho
as relíquias que esperam pela minha feição.
Se as mãos
não servem para agarrar o dia
antes nos destinem a proibição do modo
o intempestivo flagelar que lembra,
com a persuasão da dor que de nós se abraça,
que somos filhos pródigos
da vontade que se agiganta
nos poros suados.
Quem sobra da catástrofe silenciosa
quem se opõe à vertigem dos argutos
da perseguição dos rostos irreferendáveis
dos povoadores de ideias sem paternidade?
As laranjas secas
fruem nas planícies decadentes.
Os latidos rompem a placidez da madrugada
entoados por sacerdotes sem séquito
em alvoroço
pela ausência das estatuárias credenciais
em vez da orfandade que os segue.
Sobram do vento futuro
as profecias que não cobram rostos
a matéria puída dos filamentos frágeis
que são os vasos capilares que mantêm
vidas sem biografia.
A janela não é nada
se não se abrir
para uma rua formosa.
A janela não é nada
se corromper o silêncio.
A janela
não é nada.
A não ser
que esbraceje a manhã sumptuosa
e no teatro fundacional
perfume a casa com o aroma
inaugural.
És uma bruxa,
ou és uma bruxa,
Derruído pelo abismo do tempo?
Uma bruxa que resfolega o mirante
sucedâneo de morteiro andante
morteiro mortal
morteiro mortal
(como se a musicalidade das sílabas
se abraçasse numa tela hedionda
onde está vertida a venalidade da espécie).
Bruxas
somos todos?
Se demandássemos um compasso,
um compasso comprovado
pelas entidades regulamentadoras,
diria de nós o compasso
que somos bruxas,
depravadas na exaustão que rima
com autofagia.
Espantam-se até os espantalhos,
primos diletos de todas as bruxas,
avoengos das rezes lisérgicas
que compõem a paisagem sem nome.
Pedem
que não se sonegue
a curadoria dos estultos.
As manhãs correm no seu tempo.
Cada feixe de luz
devora a letargia herdada da noite.
Não são os olhos estremunhados
que depõem o dia emergente.
De cada vez
que as veias incendeiam o sangue
abre-se a escotilha por onde espreitam
os mais ácidos marinheiros
da vida.
Não se intimida o espírito
com os laivos de apatia somados ao tempo;
o fogo que levita no magma
cuida dos preparos do dia
inventariando-o como porta-voz
de um saber viver
que não se aprende nos compêndios.
A poeira não sobe à boca:
não está vento de feição
e neste cais
as paredes são fortaleza.
Os tumultos desfazem-se na maré
elidindo os sobressaltos com escritura
dissolvidos num nada sem vestígios por dentro.
Sem os olhos embaciados
a transgressão esconjura-se
e ficam por contar as centelhas venais
contra as miosótis promitentes
e as páginas esplêndidas que amanhecem
a despeito dos maus prognósticos.
Os rostos
amontoam-se nas esquinas da memória.
Não falam:
passeiam as suas expressões sintomáticas
com a ajuda de sucessivas camadas de silêncio,
a proverbial consumição das palavras vãs.
As folhas das árvores ainda não estão caducas.
Resistem
como só os espíritos enraizados sabem resistir.
Daqui a uns meses
quando as folhas cadáveres derem à estampa
saber-se-á da linhagem das gentes
se conservam a volumetria de deuses improváveis
ou se capitulam
na sincera decadência da sua fragilidade.
Um astrolábio rudimentar
como oráculo:
se fossem visíveis
as constelações apareciam
com os nomes de flores
e os nomes outros seriam
imitação das constelações.
Dizias:
não quero outro paradeiro
a não ser as tuas mãos desordeiras
e eu concordava;
os molhos de jasmim
cuidavam da minha estultícia,
a estultícia
(julgava eu)
irremediável,
à mercê do teu patronato diligente
em forma de dissolução desse mal.
Teríamos estrelas de atalaia
no intenso precipício acobreado
o breve flúmen pendido no fundo
quase renunciável
quase martirizado pelo estio a desoras.
Sabes:
remexi a terra emoliente com as mãos nuas,
nem parece meu, eu sei,
e de lá trouxe os miríficos saberes
que não se cuidam em compêndios vetustos.
Se as constelações arcarem os nomes de flores
sabê-las-ei de cor
mesmo nada sabendo sobre as flores
que têm esses nomes.
Sossegas-me
contemplativamente juntando ao havido
que esses são nomes furtivos
como se pertencessem à curadoria
das estrelas-cadentes.
Os ecos
património ou destroços
em equação que sinaliza
a vontade desembaraçada.
Os ecos:
o que fazes com eles
é gramática que é teu assunto
fabulosa erupção sem som.
Desse estendal
retira para o lado
as mentiras sem quartel.