21.9.22

As cicatrizes

As cicatrizes homologadas

antes que o tempo traga uma razia

e os penhores subam aos mastros,

o aval emprestado ao grito.

São as vozes de comando

que emudecem

matrizes frágeis no tabuleiro dos corpos.

Dizem:

amanhã tratamos do assunto.

É por isso

que as cicatrizes 

se tornam tatuagens.

20.9.22

Injustiças indocumentadas (19)

Ir desta para melhor

é mentira de um distraído

ou é contado

pelo suicida

ou pelo afogado em antidepressivos.

O oráculo de Cesariny

“(...) o vinco das tuas calças

está cheio de frio

e há quatro mil pessoas interessadas

nisso. (...)”

 

Mário Cesariny, “De Profundis Amamus”, in Pena Capital, Assírio & Alvim, 1957.

 

Cesariny

foi um iluminado

um homem muito à frente

do seu tempo;

em 1957

já pressentia

o fogo-fátuo

das redes sociais.

#2530

Sou

o xisto

onde se deita

o luar.

19.9.22

O Homem como lobo de si mesmo

Arranca-se a voz trémula

aos peões que aparecem à frente

em substituição das covardia

dos mandantes.

Eram a carne para canhão

hoje

são a carne e os ossos e o sangue

e almas

em dádiva

aos arsenais perfidamente sofisticados.

 

De um golpe só

o pensamento estaciona na angústia

de quem sabe

tanta ser a lucidez dos Homens

em proveito de totens que tornam

ridiculamente nula

a vida do Homem sem nome 

– em proveito dos soezes 

que não sabem que os Homens têm nome.

 

Aos soldados

devia-se ensinar

a saberem soletrar os seus nomes

e meia dúzia de artigos

(apenas os mais distintos)

da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Para que o Homem

todo o Homem que tem um nome

e uma alma não venal

não tenha de derramar a angústia

ao saber de todas as terras

onde o sangue vertido 

tomou o lugar

das lágrimas.

Para que esse Homem,

todo e sem exceção Homem,

não se esqueça do seu nome.

 

Para que não haja 

soldados

apenas Homens.

#2529

Delírios místicos 

– dizia, ufano

Convencido do que fora

Património pretérito;

não precisava de ter como morada

o hospital psiquiátrico.

 

[“Pára-me de repente o pensamento”, de Jorge Pelicano]

18.9.22

Concurso

Dos jacarandás

o verbo irradiante

uma centelha 

que adormece as trevas

o curso de um rio

de onde mana o ar sem areias

o decilitro cheio

sem se disfarçar de meias medidas

a fronteira desaproveitada

no caudal de calendários

que aformoseia 

um dia 

sozinho. 

No estábulo das ideias

o jacarandá acabou de florir

e eu sei

que por maior prodigalidade que seja

ninguém se encontra 

nem nas bainhas descosidas

nem no centímetro a mais,

condenado 

ao desperdício. 

#2528

Dos chás

em possibilidade referencial

cheias ainda as chávenas

que por endereço têm

almas outras. 

 

[Londres]

17.9.22

Mentir ou viver

Mentir para viver

a praça-forte do resignado

disfarce que já nem é 

fingimento

acorrentando num palimpsesto 

de paralelas inverdades

sem se constituir arguido 

por mitomania. 

 

Mentir para viver:

ou não saber 

que a mentira vem no dicionário

e não se subleva 

contra os seus patriarcas.

#2527

A resina nas mãos

divide o dia

em hemisférios não calafetados.

16.9.22

Injustiças indocumentadas (18)

Desconfio

que um rasgado elogio

é um elogio rasgado.

Injustiças indocumentadas (17)

Se há um Porto Santo

que agravo cairá

sobre o outro Porto?

#2526

E agora

que o luar emudeceu

dizemos que o mar

é composto pelo nosso olhar.

15.9.22

Cassiopeia

 

Ólafur Arnalds, “The Invisible Front”, 
in https://www.youtube.com/watch?v=9yfL28dhedc

Na boca

o meu corpo

um vulcão pária

onde a tua pele se tatua

na certeza que é amanhã.

Acerto de contas

Se ao menos

hoje

houvesse um vulcão ativo

só para cobrir os olhos

com a cinza.

Se ao menos

do sangue vívido fruíssem

peixes 

– eu lá sei se peixes – 

e um detonador ressuscitasse o zero

e desse zero subissem montanhas 

o punho irado a remexer o céu

e dele, 

indisposto,

um vulcão do avesso

bolçasse a sua lava amoedada.

Hoje

só hoje

até que a fratura dos dias

dissesse

em murmúrio sortílego

que as migalhas do medo

não contam para o PIB

nem as realezas defuntas

passam das páginas amarelecidas

em que se sepultam.

Do pé do precipício

com paisagem improvável a beijar os olhos

sacudimos as cinzas que os embotaram

e de alma lavada

as mãos tingindo o céu com uma cor despoluída

dizemos o que dantes não foi dito

e dançamos

– ah! sim, dançamos! – 

para povoar o sangue com a História do futuro.

#2525

A vela permanente:

o mar que se sente

no mal que se lamente.

14.9.22

Audazes (ode)

Toda esta gente

tanto este arrependimento

todas as luzes desfocadas

talvez o areópago indesejado.

Todo o penhor desalmado

tanta a ferrugem na boca

todos os remédios fingidos

talvez a suposição de um abismo.

Toda esta fala 

tanto o silêncio

todas as estrofes permeáveis

talvez na abastança das almas.

Todo o critério exilado

tanta a bravata improfícua

todos os dedos altivos

talvez a noite aberta aos audazes.

#2524

Deixas na cela

a veia sem sela

a ideia que se sela.

13.9.22

#2523

Um grito

que emudece

na tempestade diuturna.

12.9.22

O Outono prematuro

Um murmúrio do Outono

conta com a chuva morna

vertida pelo céu pendido. 

 

É uma chuva 

que mente ao calendário

e diz aos costumes:

 

os marcos geodésicos do tempo

são arbitrárias convenções. 

 

A chuva inaugural

desmentindo o Verão em seu lugar

amacia a pele gasta pelo sol repetido

em presságio outonal. 

 

Sentado nos lugares da frente

deixando

o corpo experimentar a chuva destemida

como se houvesse um chamamento

pela dobra do Verão:

 

a chuva,

dizem uns protestos ecoados

por vozes em surdina,

foi proclamada a destempo,

cicia

as páginas que são uma profecia

arrancando outras de permeio

em ligação direta 

 

com um tempo que está à espera de tempo. 

#2522

Sob o céu derruído

sequestrado por um pesar

lamacento.

11.9.22

#2521

Não cumpro resposta

para as perguntas salinas

e adio a maré

antes que me constitua 

náufrago. 

10.9.22

Homenagem

Se é da fortuna

o relógio andante

gabo-me da safra

na colheita da medida

do tempo. 

 

Se é do acaso

ou da temperança 

dos dias sucessivos

não tenho modo

de atestar. 

 

Se é das mãos

que se metem, 

fundas,

no chão húmido

em demanda da fortuna

podem testemunhas válidas

certificar em boa memória;

e se é do porvir

que despendo o tempo servil

deixando ao proveito do olvido

o denso passado em lei de bronze

inscrevo no percentil das hipóteses

o rosto parcimonioso

que espera 

sem denunciar o destempo de outros

o poema vivo que espreita

sobre a varanda que deixa ver

o esvoaçar dos dias sucessivos. 

#2520

Rasgo

a profecia rarefeita

antes que seja despojo

da minha própria circunstância. 

9.9.22

Injustiças indocumentadas (16)

Não se aleguem

barrigas de misérias,

não vá cair o libelo

de body shaming.

#2519

[Continuação do #2518 por outras palavras]

 

Ah!

se ao menos

o Instituto Nacional de Estatística

fosse amestrado.

#2518

O Instituto Nacional de Estatística

teimosamente

bolça números ingratos,

números que causam desprazer nos regentes.

 

[Inspirado em Auden]

8.9.22

Sobre a inutilidade dos arrependimentos

Em reparações convulsivas,

os arrependimentos.

Não choram as lágrimas

ausentes:

fingem

no fingimento irresponsável

de quem é intencionalmente farsante

do passado. 

No fim do ciclo

tudo fica por reparar,

pese embora convicção usada,

pois o irreparável apenas se adestra

com o jugo do futuro.

#2517

Neste matadouro colossal

que é o teatro 

onde somos matéria pública

não há direito a segundas hipóteses.

7.9.22

Elixir

Às páginas do calendário

penhores máximos da crueza do tempo:

antes desfocadas,

vasos sanguíneos por onde desfila

o tremendo apetite que esconjura 

o medo. 

 

Dizemos

em brandos sinais

que um teatro herético que absorve a geografia

a abundante lógica sem formalização

ou apenas 

a telúrica palavra

que abranda as dores que destilam o corpo. 

 

As ideias passeiam

insubmissas

no copo que recebe os lábios em ebulição:

parecem folhas outonais

desarrumadas 

por um vento que entoa a tempestade

vão e veem no indeclarado óbito dos soezes

desautorizados artesãos que esculpem

o céu perenemente plúmbeo. 

 

Tomo o dia

como pressentimento de mim

e julgo

com as armas retóricas que não tenho

as relíquias que esperam pela minha feição. 

 

Se as mãos 

não servem para agarrar o dia

antes nos destinem a proibição do modo

o intempestivo flagelar que lembra,

com a persuasão da dor que de nós se abraça,

que somos filhos pródigos 

da vontade que se agiganta 

nos poros suados.