22.11.22

#2593

Entre dois dedos de conversa

o encargo e a filosofia

“o dever de falar”.

Injustiças indocumentadas (42)

(Ter) culpa no notário

é fazer um golpe de Estado

à lei.

21.11.22

E assim sucessivamente

Se o mar não fosse fundo;

se as lágrimas tivessem nascente;

se a lava não amanhecesse irascível;

se os lados do mundo fossem fungíveis;

se as bocas não se embebessem em falso mel;

se os países não tivessem bandeira;

se o luto fosse anulado por decreto;

se a lua tivesse paradeiro na orla do dia;

se os peões soubessem que são peões;

se a lucidez não fosse emparcelada;

se os condutores de almas fossem para o diabo;

se os regentes não rimassem com mitomania;

se os corpos não mentissem ao tempo

(ou será o tempo que mente aos corpos?);

se todas as coisas válidas se extinguissem;

se não deixássemos de lado as palavras por dizer;

se não fôssemos reféns de um labirinto;

se nós adiássemos no passado sem causas;

se não fosse perda toda a matéria venal;

se não houvesse carestia de sermos nós;

se os disfarces não ocupassem o palco;

se os versos não se fizessem desacompanhar de mãos;

se a maresia tombasse sobre o entardecer;

se os rostos dos filhos fossem sempre pueris;

se as pernas não tergiversassem ao menor sinal do medo;

se a raiz quadrada de tudo fosse o sangue combustível;

“e assim sucessivamente”.

Injustiças indocumentadas (41)

Dar o braço a torcer

causa uma dor

excruciante.

#2592

Não é 

à conta de esperança

que se contam mentiras

ao futuro.

20.11.22

O palimpsesto de cada dia

O palimpsesto de cada dia:

aqui há um século,

aqui há um século.

#2591

Entoava as sílabas

com o mesmo vagar 

das folhas sem sono

e esperava

que um arco-íris tendesse

a gramática do tempo.

19.11.22

#2590

Não é 

a volumetria das costas

que mede 

o tamanho da culpa.

18.11.22

Nonetheless

É um acaso

a porta opaca

escrita com a maresia. 

Sobram os olhares

uma sombra de xisto

sentada sobre os socalcos

a desafiar o tempo. 

Um acaso

e por nada que seja

provável

ensinam-se as páginas decorativas;

se não se hasteassem 

tantos

no entanto

desertas ficariam as perguntas

e à maré entediada

seriam conferidos os saberes

afastada a humildade metódica

e a matemática precisa. 

Pela porta fundeada

o basalto cimeiro 

dá um ar de sua graça:

o chão limpo

é o passe social para desfeitear

a soberba 

– e, no entanto,

ninguém desiste 

de dar segunda hipótese

aos prováveis fautores 

de tantos caminhos sobrepostos. 

#2589

Maldito

eu 

conflito

o frete em bodo.

17.11.22

Betão armado contra espátula

As veias tornadas paredes

na sumptuosa enseada

à prova de juras

abjuram o medo consular 

a matéria funda que bolça

sobre a inocência.

A inocência,

ah!

como rima com incoerência

 

(a proscrita, hélas! incoerência)

 

como são remotos os paladares

as virgens que nunca o foram

as estantes destinadas ao vazio

as fábricas sem operários

um pouco

como aqueles comboios modernos

que viajam sem condutor.

As veias

congeminadas por dentro de vulcões

imperatrizes da sua própria lava

não se intimidam:

atirem-se os mastins a elas

para serem derrotados sem remissão

num remoinho nuclear que tudo dilacera

até a palavra estilhaços

banida do dicionário

banida das convenções outorgadas

banida de

banida de...

banida.

Os modos perderam-se

ainda a tempo

de serem desmentidos.

E todo o sangue devolvido às veias

tradução válida de um corpo inamovível

avisa os destemidos que tinham de o ser

contra a avassaladora tempestade sideral

o céu a fugir por entre os dedos da alma

e um copo de água

singelamente

derramado 

para avivar as sementes

para memória futura.

#2588

O ativamente conservador

rasgou o futuro,

tatuado 

nas paredes do passado.

16.11.22

Má fama

Não se diga

da má fama

que é uma fama 

a desproveito;

pois de uma fama

não se dirá

ser de má rés

ou fama não será.

#2587

Desse à chave um destino

soubesse do paradeiro 

da porta.

15.11.22

Azulejo

A ave espacial

esbarrou

à nascença

com a nave especial. 

 

Os fundos conjunturais

afinal têm fundo

pois o fundo que as fundeia

tem um forro de anteparo. 

 

Os senescentes não têm medo do futuro

o futuro é que se inquieta

ao saber que o será

sem a companhia dos senescentes. 

 

As estrelas fugiram do dia

confirmando

que o jogo que interessa

se joga à noite.

#2586

Devia haver 

na toponímia da cidade alvar

a avenida do presente imperfeito.

14.11.22

As flores e os nomes

Os nomes

escritos sobre as fotografias

como se as palavras evocassem

flores

flores contíguas ao sangue contínuo

e os nomes

apenas uma distância vaga

entre os despojos do dia

e a maresia do amanhã.

#2585

O sal sulca o suor

o sol síndico

dos sonhos.

13.11.22

Injustiças indocumentadas (40)

O dedo mindinho

como metáfora da adivinhação

é a revolta dos pequenos

a revolução

sem inventário nos compêndios.

Metafísica às metades

Chegou a mim 

a descoberta

que deus não existe

porque tem joanetes.

#2584

Uma ponte sem alfândega

uma pertença sem limites.

12.11.22

#2583

São estas palavras

o nome do sangue

em sacrifício do passado.

11.11.22

Certificado

Dizias

que o peito se enche de alma

quando a noite se disfarça

de um verbo que não esconde

o desejo. 

Dizias

com o olhar desembaraçado

que as palavras emprestam o sal

que se tornou rarefeito

neste lugar composto por gente meã

neste lugar

onde todos calçam as galochas do videirinho

e afocinham no juízo sumário

à custa de ordenanças gozadas por preconceito. 

Dizias

como se fosse preciso fazê-lo

que lugares destes são poços inválidos

cidades órfãs de mapa

idiomas que põem as pessoas a desentenderem-se. 

Dizias

que estás cansado deste desentendimento

que toma partido dos vãos

e que extinguem os voos largos

que asas decepadas não deixam embainhar.

#2582

Não é do futuro

que se alimenta 

o medo;

é do passado.

Cabalística (2)

11+11=22.

10.11.22

#2581

Cada um devia ter o direito

à revisão constitucional

e isso devia fazer parte

da revisão constitucional.

9.11.22

Triunvirato

Registo a patente

antes 

que a preguiça me tente

e em brancos dentes

se afogueie um tenente.

 

Vejo com desdém as pontes

e arrumo

antes que tu os contes

os anéis que cuido com aprumo

no balcão que guarda os dotes.

 

Das mãos verto este sumo

alteroso

e remedeio sem medo do fumo

o miado medroso

a que não me acostumo.

#2580

O acento

toma assento

na tónica

que não é água.

Os espanhóis

Os espanhóis

precisam de quem lhes faça 

desenhos 

no pecúlio da gramática;

de outro modo 

não teriam

pontos de exclamação

e pontos de interrogação

a prefaciar as frases. 

8.11.22

O elefante não saiu do jardim zoológico

Afinal

o elefante esteve 

este tempo todo

no jardim zoológico. 

Injustas foram as injunções

sobre o seu parco estatuto diplomático

em metáfora que mexia

com porcelanas de fino calibre

e salões onde solenes salamaleques

decorriam a preceito 

– os senhores 

pressurosamente 

desfazendo-se em cortesias hipócritas

e as senhoras

contrafeitas

reprimindo fantasias nas ameias da mente. 

Ao elefante

vítima de injustificada injustiça

devia ser reconhecido o direito de reparação

que hoje quadra tanto com os modismos

que às vítimas de outrora

assiste a reposição da justiça a seu favor

para que possam descansar 

no sossego da consciência dos outros. 

O mundo inteiro

(concessão ao rigor: 

o mundo quase inteiro

que não se impetra o consenso forçado

tão próprio de um centralismo democrático

de má memória)

devia saldar uma interrogação:

como foi possível

passar tanto tempo agrilhoado

à metáfora do elefante na loja de porcelanas

se o elefante

tão paquidérmica criatura

nem sequer cabia na loja?

Ninguém 

dera conta

que o elefante

não tinha saído do jardim zoológico.