Entre dois dedos de conversa
o encargo e a filosofia
“o dever de falar”.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Se o mar não fosse fundo;
se as lágrimas tivessem nascente;
se a lava não amanhecesse irascível;
se os lados do mundo fossem fungíveis;
se as bocas não se embebessem em falso mel;
se os países não tivessem bandeira;
se o luto fosse anulado por decreto;
se a lua tivesse paradeiro na orla do dia;
se os peões soubessem que são peões;
se a lucidez não fosse emparcelada;
se os condutores de almas fossem para o diabo;
se os regentes não rimassem com mitomania;
se os corpos não mentissem ao tempo
(ou será o tempo que mente aos corpos?);
se todas as coisas válidas se extinguissem;
se não deixássemos de lado as palavras por dizer;
se não fôssemos reféns de um labirinto;
se nós adiássemos no passado sem causas;
se não fosse perda toda a matéria venal;
se não houvesse carestia de sermos nós;
se os disfarces não ocupassem o palco;
se os versos não se fizessem desacompanhar de mãos;
se a maresia tombasse sobre o entardecer;
se os rostos dos filhos fossem sempre pueris;
se as pernas não tergiversassem ao menor sinal do medo;
se a raiz quadrada de tudo fosse o sangue combustível;
“e assim sucessivamente”.
Entoava as sílabas
com o mesmo vagar
das folhas sem sono
e esperava
que um arco-íris tendesse
a gramática do tempo.
É um acaso
a porta opaca
escrita com a maresia.
Sobram os olhares
uma sombra de xisto
sentada sobre os socalcos
a desafiar o tempo.
Um acaso
e por nada que seja
provável
ensinam-se as páginas decorativas;
se não se hasteassem
tantos
no entanto
desertas ficariam as perguntas
e à maré entediada
seriam conferidos os saberes
afastada a humildade metódica
e a matemática precisa.
Pela porta fundeada
o basalto cimeiro
dá um ar de sua graça:
o chão limpo
é o passe social para desfeitear
a soberba
– e, no entanto,
ninguém desiste
de dar segunda hipótese
aos prováveis fautores
de tantos caminhos sobrepostos.
As veias tornadas paredes
na sumptuosa enseada
à prova de juras
abjuram o medo consular
a matéria funda que bolça
sobre a inocência.
A inocência,
ah!
como rima com incoerência
(a proscrita, hélas! incoerência)
como são remotos os paladares
as virgens que nunca o foram
as estantes destinadas ao vazio
as fábricas sem operários
um pouco
como aqueles comboios modernos
que viajam sem condutor.
As veias
congeminadas por dentro de vulcões
imperatrizes da sua própria lava
não se intimidam:
atirem-se os mastins a elas
para serem derrotados sem remissão
num remoinho nuclear que tudo dilacera
até a palavra estilhaços
banida do dicionário
banida das convenções outorgadas
banida de
banida de...
banida.
Os modos perderam-se
ainda a tempo
de serem desmentidos.
E todo o sangue devolvido às veias
tradução válida de um corpo inamovível
avisa os destemidos que tinham de o ser
contra a avassaladora tempestade sideral
o céu a fugir por entre os dedos da alma
e um copo de água
singelamente
derramado
para avivar as sementes
para memória futura.
A ave espacial
esbarrou
à nascença
com a nave especial.
Os fundos conjunturais
afinal têm fundo
pois o fundo que as fundeia
tem um forro de anteparo.
Os senescentes não têm medo do futuro
o futuro é que se inquieta
ao saber que o será
sem a companhia dos senescentes.
As estrelas fugiram do dia
confirmando
que o jogo que interessa
se joga à noite.
Os nomes
escritos sobre as fotografias
como se as palavras evocassem
flores
flores contíguas ao sangue contínuo
e os nomes
apenas uma distância vaga
entre os despojos do dia
e a maresia do amanhã.
O dedo mindinho
como metáfora da adivinhação
é a revolta dos pequenos
a revolução
sem inventário nos compêndios.
Dizias
que o peito se enche de alma
quando a noite se disfarça
de um verbo que não esconde
o desejo.
Dizias
com o olhar desembaraçado
que as palavras emprestam o sal
que se tornou rarefeito
neste lugar composto por gente meã
neste lugar
onde todos calçam as galochas do videirinho
e afocinham no juízo sumário
à custa de ordenanças gozadas por preconceito.
Dizias
como se fosse preciso fazê-lo
que lugares destes são poços inválidos
cidades órfãs de mapa
idiomas que põem as pessoas a desentenderem-se.
Dizias
que estás cansado deste desentendimento
que toma partido dos vãos
e que extinguem os voos largos
que asas decepadas não deixam embainhar.
Cada um devia ter o direito
à revisão constitucional
e isso devia fazer parte
da revisão constitucional.
Registo a patente
antes
que a preguiça me tente
e em brancos dentes
se afogueie um tenente.
Vejo com desdém as pontes
e arrumo
antes que tu os contes
os anéis que cuido com aprumo
no balcão que guarda os dotes.
Das mãos verto este sumo
alteroso
e remedeio sem medo do fumo
o miado medroso
a que não me acostumo.
Os espanhóis
precisam de quem lhes faça
desenhos
no pecúlio da gramática;
de outro modo
não teriam
pontos de exclamação
e pontos de interrogação
a prefaciar as frases.
Afinal
o elefante esteve
este tempo todo
no jardim zoológico.
Injustas foram as injunções
sobre o seu parco estatuto diplomático
em metáfora que mexia
com porcelanas de fino calibre
e salões onde solenes salamaleques
decorriam a preceito
– os senhores
pressurosamente
desfazendo-se em cortesias hipócritas
e as senhoras
contrafeitas
reprimindo fantasias nas ameias da mente.
Ao elefante
vítima de injustificada injustiça
devia ser reconhecido o direito de reparação
que hoje quadra tanto com os modismos
que às vítimas de outrora
assiste a reposição da justiça a seu favor
para que possam descansar
no sossego da consciência dos outros.
O mundo inteiro
(concessão ao rigor:
o mundo quase inteiro
que não se impetra o consenso forçado
tão próprio de um centralismo democrático
de má memória)
devia saldar uma interrogação:
como foi possível
passar tanto tempo agrilhoado
à metáfora do elefante na loja de porcelanas
se o elefante
tão paquidérmica criatura
nem sequer cabia na loja?
Ninguém
dera conta
que o elefante
não tinha saído do jardim zoológico.