12.3.23

#2708

É o irrepetível sangue

que desmente

a hereditariedade.

11.3.23

Cosmos

O corsário

respira a pele outonal. 

Exilado

esqueceu o idioma-mãe

e de si. 

Joga 

batalha naval

contra a inteligência artificial. 

Quando perde

embriaga-se;

nunca conseguiu esquecer

como a injustiça era pródiga consigo. 

Injustiças indocumentadas (75)

Um desejo ávido

não é um desejo havido.

 

[Inspirado num erro ortográfico, pescado algures]

#2707

Arrastas

no ruir da miragem

o teu corpo derruído.

10.3.23

Injustiças indocumentadas (75)

As águas de bacalhau

nunca foram de confiança.

#2706

Na colher do tempo

o açafrão que adoça a pele.

Injustiças indocumentadas (74)

Nada é impossível

Nada

é impossível.

9.3.23

Teclado

Arregaço as vírgulas

antes que o mel cristalize

e as sílabas fiquem presas na língua.

O vinho arroteia a verve;

aos vermes que nidificam em barda

dizemos a indiferença axial

(pode ser que deixem de ser fantasmas).

Oxalá as penitências não doessem

como doem as indulgências tiradas a ferro.

O amanhã viria

nesse caso

tingido pelas palavras amansadas

e todos os grotescos lugares seriam banidos

como banidos seriam 

os bandidos resistentes.

#2705

Este é o estaleiro ingente,

as obras vincadas no rosto

a pele avessada no viés do tempo.

8.3.23

Dispensa

Passo o corpo amordaçado

a mortalha que desce sobre o silêncio 

sem armas. 

 

Ao fundo

a gruta evoca o medo. 

O medo de quem não tem medo. 

 

As cortinas embainhadas fogem do dia

escutam a voz gutural dos ontens desarmados. 

 

Às voltas com as páginas amarrotadas

junto os dedos 

como se fossem espadas enredadas

e dou ao dia o poema sem nome

avivando as centelhas 

que derrotam as sombras.

#2704

Junta-se a assembleia

que a gangrena 

cai sobre o horizonte

roubando os nomes 

aos fantasmas.

Misalignment

Not the knot:

knot the not

wait

for knock-out.

Un-note the knot,

unknot the note

knock-out

the wait.

7.3.23

Autodefesa

Do caminho raso

as métricas possíveis

afogadas num aguaceiro

desviam as trovoadas triviais;

as copas das árvores parecem sorvetes

mas não se armam os alçapões

sem os arneses por perto.

 

De caminho

o avesso amoeda-se na pele

sua tatuagem impura que se subleva

na parte de trás da catedral

enquanto os rapazotes sobem aos pedestais

em marés de estultícia.

 

Caminho

nas oitenta e oito teclas do piano

desenho as notas no sopé do vulcão

e deixo o peito recolher os frutos ateados

sem sair do caudal de onde sorvo as lágrimas

sem pesar na carne as legendas cegas

e à porta sentar os medos pueris.

 

A caminho da alvorada

levanto a âncora que arrastou o corpo

sitiado por tribunais estéreis

amarrado ao represado manto de água

como se ele próprio, o corpo,

anuísse nas comportas que largam o degelo

mudando a consoante muda

consoante o que muda no jusante.

#2703

A boca faminta

sanguínea

não traz vítimas à lapela.

6.3.23

Falávamos de marés e de outros sortilégios

Dizias

com as palavras ditas em dourado,

as sílabas armadas com destreza,

que eras capaz de secar a maré 

– e eu queria 

que todas as marés fossem 

apenas 

praia-mar

para não molhares mais

do que os dedos dos pés.

#2702

Se as mãos fossem um mapa

quanto património genético

seriam as suas rugas?

5.3.23

Sísifo em trabalhos

Sísifo

não sabia

onde se ia meter. 

Pior seria

se a rocha corresse

montanha abaixo

atrás de Sísifo. 

Dele se diga

com a devida propriedade

que merece a linhagem de astuto. 

#2701

O dedo na ferida

antes que se faça

cicatriz.

4.3.23

#2700

Não se ajeite

alcunha

que a caravela 

é lesa-majestade.

3.3.23

Cinemático

Se não houvesse luar

as páginas

reféns da penumbra

seriam um luto sem fim.

 

Se não houvesse sombras

e a noite 

fosse um espelho sem fundo

o luar seria mecenas do dia.

Injustiças indocumentadas (73)

A mão de semear

e o pé de colher.

#2699

Não se invente a roda

que os nomes dos inventores

já ganharam o seu panteão.

2.3.23

Verde-esmeralda

Às palavras esquecidas no futuro.

À boca que ateia a combustão das almas.

Ao Inverno que transporta a candeia 

que trespassa o olhar.

Ao suor das mãos que falam, 

caindo das árvores que ciciam na penumbra.

Ao ocaso, que é uma jura de futuro.

Injustiças indocumentadas (72)

Eu penso.

Eu,

penso.

#2698

Espreito

pela escotilha

os versos da madrugada. 

1.3.23

Injustiças indocumentadas (71)

Salvo o conduto

faltava 

declarar o ázimo. 

O panteão dos órfãos

Houvesse um trunfo na manga;

mas estava calor

e não tinha mangas apostadas

e do meio de tudo

encenei o palco ruidoso

onde o silêncio subia à cena. 

 

Houvesse um teatro por perto;

mas era um ermo

o lugar em que coabitava com o luar

e a meio da solidão

agarrei as estrelas que passavam na noite

se a noite não fosse

o lugar onde o medo se prefacia. 

 

Houvesse um astrolábio;

mas medieval não era o tempo atolado

e a meio de um nada

arranquei uma confissão à divindade de atalaia

e dela soube que de oráculos sabe nada

de si se desmentindo 

na qualidade em que se apresentava. 

 

Houvesse um remédio à distância de uma mão;

mas a cidade era a toponímia das ausências

e por demissão dos espíritos

ficavam as maleitas à mercê da sua sorte. 

 

Houvesse um navio sem escolta,

seus sem domador os mares atravessados;

mas as marés não estavam de modas

e no meio de mim

arranquei à força 

a ilha que se instalara. 

Injustiças indocumentadas (70)

A mão de semear

é aquela que não é

a esquerda.

#2697

Escondida na noite

uma luz boreal espreita

entre as rugas da alma.

28.2.23

Sinuoso

O tornado

respira os poros

que se distraem ao entardecer. 

 

Os ventos

desaprovam a sirene calada

e conspiram no avesso do tempo.

 

Armada a contenda

os coreógrafos pedem lema

em braços suados de tanto tentarem.

 

Depois da fronteira

um idioma que arranha os ouvidos

em gente que parece sósia de nós.

 

Na margem da manhã

o ciciar duradouro de um porta-voz

despejando ouro em cima dos sonhos.