Um labirinto de metáforas
incendeia o sangue
aviva o vulcão
adormecido.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O cais é a morada de contentores.
Parecem casas empilhadas
sem critério
como o mesmo acaso
com que cruzam os mares todos
de porto em porto
conhecendo os climas todos
os idiomas de que o mundo é feito
levando mercadorias
fazendo as pontes marítimas
entre remotos lugares.
No cais,
uma cidade de contentores.
Quantas voltas as mundo estão às costas
de todos os contentores amontoados?
Este é o inferno sem demónio:
as casas empenham-se atrás dos limoeiros
na dedicatória ao fermento que trava a morte
o fecundo bolor em pétalas de sol inaugural.
As ferramentas desarrumadas
intuem as desregras que não se escondem:
os vilões podem ascender ao promontório
podem colonizar os idiomas
pretender que os demais sejam escravos
do silêncio
mas não passam de mastins desdentados
meras hipóteses de inferno
escaras que só sabem ser pútridas
como pútridos são os seus lamentos
ciciados na babugem soez
– o seu passaporte,
que nunca prescreve.
Esse é o inferno
onde os outros são mesmo os outros
empilhando todos os escaravelhos mentais
decifrando as luas que regurgitam
das entranhas
enquanto passeiam inesteticamente nus
sentados nas coroas de espinhas
de deuses que caducaram às mãos vingativas.
Os vestígios de sangue escrevem a pauta
e não há fronteira que se desembarace
das facas,
o ultraje desfilando
com a pompa dos órfãos de lágrimas
através das claraboias que ensinam as palavras
as temidas, as dissolvidas, as polissémicas,
as palavras-desfiladeiro.
Se as falas apodrecidas fossem gémeas
da mentira
não havia páginas para contar
não havia sucessores habilitados
e os lugares seriam ermos
como ermas são as luas
se em viagem as visitarmos.
O vento aluga-se aos interessados
mas não aceita rendas em saldo:
de cada vez que formos heróis,
nem que seja por conta própria,
saberemos
que as páginas não se viram do avesso
a menos que a fome seja intencional.
Ninguém trava a imensa roda da vida,
ninguém a consegue travar.
A matéria infecunda que é a tela do deserto
deve ser a mátria do inferno,
o lugar onde a pele se descola da alma
e fica ao deus-dará
órfã
destruindo os trunfos orquestrados
vingando os pulsos amordaçados
coabitando com as corpos tão puídos
na fábrica que não tem morada
a fábrica que não precisa de operários.
A boca treme
tropeçando nas sílabas cortadas pela metade;
não há cicerones
neste lugar sem morada
não há dicionários nas estantes
apenas a poeira vetusta que tatua a pele
e anestesia os diligentes estetas,
sem esperar por instruções
abocanhando o podre do dia que decai.
O Natal
é quando um homem quiser:
e as mulheres
não têm nada a dizer?
[Parte do manifesto contra a masculinidade tóxica]
As palavras que doem:
poços fundos de águas mortiças
as sílabas arrastadas no letargo ancião
na afortunada gramática que não sabe
das regras.
As palavras que doem
podem ser
um silêncio.
Os segredos
estão escondidos
numa mina.
Os segredos
são uma mina.
Os segredos
não precisam
de desminagem.
Ao pisar um segredo
ganha-se um módico
de outra vida.
Um segredo pisado
é todo um mar de acasos
que se abraça à vida.
Um segredo alheio
tanto é uma mina
que se entesoura
como uma mina
que mutila.
Antes não saber
o mapa dos segredos
e deixá-los ser,
segredos.
Por mais que se esforçasse
o busca-pólos só encontrava
o Norte e o Sul.
Se naquele dia
não tivéssemos tido medo
quem sabe se não seríamos
heróis
heróis de nós mesmos
e se do medo fugíssemos
como se de um exílio heurístico se tratasse
nos tornássemos maiores do que somos.
Mas naquele dia
o tédio disfarçou-se de medo
e o dia ficou pela meação
como se dele tivéssemos sido algozes
e o amputássemos de ossos e carne.
Anda hoje tenho a impressão
que cercámos o dia
para que ele não se tornasse
maior do que somos
e consagrámo-lo
dele bebemos o sangue.
Não queríamos
que ao dia fosse permitida
tamanha ousadia;
quanto à nós
não queríamos ser maiores
por imensa ser
já
a nossa grandeza.
Podem ser janelas
puídas com o ciciar dos estorninhos
filmes a preto e branco
enxertando pétalas crepusculares
manhãs ditas
no avesso de versos angulares
um êxtase que se consome
nas ilusões em saldo.
Podem ser os braços que não capitulam
as estátuas que dormem em pé
os estereótipos deixados sem herança
as portas fechadas que saciam a indigência
os dias claros arrumados num canto da esperança
os estilos disfarçados que se ajeitam à lapela
o sono sem adiamento no palco contrafeito.
E tudo se amedronta
no leito onde se suavizam as marés
enquanto os violinos despontam na alvorada.
O corsário
respira a pele outonal.
Exilado
esqueceu o idioma-mãe
e de si.
Joga
batalha naval
contra a inteligência artificial.
Quando perde
embriaga-se;
nunca conseguiu esquecer
como a injustiça era pródiga consigo.
Um desejo ávido
não é um desejo havido.
[Inspirado num erro ortográfico, pescado algures]
Arregaço as vírgulas
antes que o mel cristalize
e as sílabas fiquem presas na língua.
O vinho arroteia a verve;
aos vermes que nidificam em barda
dizemos a indiferença axial
(pode ser que deixem de ser fantasmas).
Oxalá as penitências não doessem
como doem as indulgências tiradas a ferro.
O amanhã viria
nesse caso
tingido pelas palavras amansadas
e todos os grotescos lugares seriam banidos
como banidos seriam
os bandidos resistentes.
Passo o corpo amordaçado
a mortalha que desce sobre o silêncio
sem armas.
Ao fundo
a gruta evoca o medo.
O medo de quem não tem medo.
As cortinas embainhadas fogem do dia
escutam a voz gutural dos ontens desarmados.
Às voltas com as páginas amarrotadas
junto os dedos
como se fossem espadas enredadas
e dou ao dia o poema sem nome
avivando as centelhas
que derrotam as sombras.
Not the knot:
knot the not
wait
for knock-out.
Un-note the knot,
unknot the note
knock-out
the wait.