28.3.23

Atlas

Se os corpos fossem mapas

seríamos atlas sedentos

danças sem paradeiro 

um luar à espera de vez. 

 

[Sigur Rós, “Fjögur Piano]

Por inteiro

A pedra que repousa no miradouro

dita a sentença boreal

a armadura desfeita

que revela a nudez,

simplicidade sem cilada

o mosto inteiro 

que fala na vez da voz gongórica

o rosto incindível

que não tergiversa diante dos lobos

matéria fundida de ouro e lágrimas

os versos como âncora certificada

no improvável vinho servido em xisto.

Os socalcos descem às mãos

e das estrofes empunhadas sobra o mel

o dorso desimpedido

contra os embaraços de mastins por aí,

avulsos e estultos.

Não capitularemos

– diz-se em coro

desembainhando a alvura 

que caia a pele, os ossos, o corpo inteiro,

a garantia perene das coisas

na sua verosimilhança insuspeita.

Somos os esteios que não precisam de esteios

e ao espelho não contamos gramas de pudor

nem perfilhamos sermões não encomendados.

#2726

O fio

e o pavio

em leilão.

 

[Manual de instruções para terroristas de trazer por casa]

27.3.23

O indulto

O indulto 

abate-se sobre o dia finito

a jeito da indigência,

o princípio geral de tudo

a confusão entre arbustos baldios

e folhagem extravagante da selva. 

 

Dizia-se:

é por estas desconclusões

que se arremata a desconfiança:

uns olham para os outros

de pé atrás

 

            (caso, único, 

            que os que partem atrás

            estão em vantagem)

 

para serem retribuídos 

com a mesma indiferença. 

 

Ao menos,

não há assimetrias

no escrutínio de um mínimo denominador comum. 

 

O indulto

diz mais de quem perdoa

do que do perdão

 

(o perdoado é o que menos interessava).

 

Esta é a terra de ninguém

em que o indultado desconfia da piedade

e o indultor pratica generosidade 

de que é usufrutuário. 

Os bons espíritos

de tanta bondade que a si convocam

nunca se descomprometeram dos padrões válidos:

a bondade é um reflexivo ato,

no inconfessável pressentimento

das indulgências provadas 

por mercê da bondade.

Injustiças indocumentadas (79)

Dava o corpo ao manifesto

sem ser importar se o manifesto 

estava interessado

no corpo dado.

#2725

Não se faça de um lamento

o hino e a bandeira

amarelecidos em prantos.

26.3.23

Museologia

Corpos 

como mares,

imensos,

e imensas são as marés

que derruem a sua sede.

Ficam à mercê das mãos

que os esculpem

sem remorsos

enquanto a tabuada do tempo

se pressente

imóvel

como se a dança fosse uma gramática

e a coreografia

a sua tradução.

#2724

Atravesso 

um mar de campos baldios:

a metáfora da despertença;

a homenagem 

à vontade sem freio.

25.3.23

Injustiças indocumentadas (78)

Quem havia.

Quem a avia.

#2723

As mãos herdaram a geada

e atiraram-se, repentinas,

ao ouro caiado da pele.

24.3.23

Dramaturgia

Se os pesares

pesarem no vento cortante

e formos o chão em que se deitam

não se espere 

uma centelha do dia consecutivo

a diligência sobre nós como dádiva 

que nada é perene

e os danos de que somos culpados

interrompem o mel que cicia de longe.

#2722

As sombras

abatiam-se sobre o entardecer

num pressentimento telúrico. 

23.3.23

Armistício

Um canto do corpo

a pele arrancada ao sono

pauta que se adia no luar fundente

e um sinal

o travo doce de uma boca

à espera de um lugar

do vulcão que não se demora.

Sideral

Em luz

insinuada

entre sombras

o exorcismo

o futuro devolvido

 

ao lugar distante.

 

A matéria

diadema embaciado

dia constante nas veias

ocaso

juro sem regra

 

a jura contumaz.

 

O rio 

dobrado sobre si

sol hirsuto do estio

o açúcar nas uvas

o vinho promitente

à sombra do descanso

as mãos vincadas

suadas

 

à espera do tempo.

 

O xisto

ao acaso atapetando o chão

orvalho nascente

e o rio

profundamente longe

contagiando

o perfume das uvas

o som do sangue

o troar do anoitecer

vago

 

o murmurar vago

e sobrante.

 

A luz

abraçada ao dia

dando ramos às árvores

tirando frutos às bocas

as bocas que se saciam

umas às outras

arrancam às raízes fundas

o mosto primacial

 

o magma centrípeto.

#2721

Fugia da matilha

como quem renasce

de um prejuízo venal.

22.3.23

Matéria combustível

A matéria combustível

agarra-se à pele. 

Ontem era tatuagem. 

Hoje 

que se fala apenas de babugem

os arroios vão cheios de água

que houve chuva fora do tempo

talvez um rio de lágrimas,

a descondição dos melancólicos. 

 

Alguém diz:

é preciso partir pedra,

naquela irritante mania

de usar expressões idiomáticas. 

 

(Como se partir pedra

desse para jurar um caminho

ou assegurar um destino

e uma pedreira fosse o embaraço inicial

e todos os que não capitulam

tivessem de vestir o fato de macaco 

– outra expressão idiomática 

sem paradeiro – 

e, na posse de uma humilde picareta,

pacientemente desatasse 

a partir a pedra-obstáculo.)

 

Alguém diz

a maré não está a preceito

e a matéria combustível oferece-se

ao arrefecimento,

a preguiça como aval

que a persistência não é uma arte que se domina. 

 

Os olhos embotados desistem do dia. 

Ficam as rugas em salmoura

à espera de serem convertidas 

na pele que se dá ao tempo restante. 

 

Por dentro

escondido

o vulcão resiste à hibernação. 

As convulsões interiores são como revoluções

espasmos atirando as partes contraditórias

umas contra as outras

como se por dentro do houvesse labirintos

por onde se esgueira a lava

que teimosamente resiste à anestesia forçada. 

 

Por dentro

a resistência dos elementos

ateia a força bruta das páginas arrancadas

ao torpor. 

Contra a letargia do futuro

contra as expressões idiomáticas

e os espasmos dos lugares-comuns

a favor dos versos que se sublevam

contra a tirania do que 

 

(dizem ser)

 

irremediável. 

 

Até prova em contrário,

avivada na carne-viva que deixou de ser,

não estou convencido que a finitude

é o verbo forte. 

#2720

Uma epifania 

é coisa

que a ateia não ateia.

#2719

As bandeiras puídas

arrastam-se

na ferrugem do tempo.

21.3.23

Retrovisor

Dizem 

que uma bruma tardia

se apoderou do olhar

e ele, embaciado,

passou a amansar a fala

tartamudeada. 

 

Dizem

que uma maré fugidia

dissolveu o mal-estar

e ele, embuçado,

perdeu a linhagem de bala

torpedeada. 

 

Dizem

que uma cara gentia

se contaminou ao destinar

e ele, desembaraçado,

extinguiu a mala

desarrumada. 

#2718

Um labirinto de metáforas

incendeia o sangue

aviva o vulcão

adormecido.

20.3.23

As muitas voltas ao mundo (contentores)

O cais é a morada de contentores. 

Parecem casas empilhadas 

sem critério

como o mesmo acaso

com que cruzam os mares todos

de porto em porto 

conhecendo os climas todos

os idiomas de que o mundo é feito

levando mercadorias 

fazendo as pontes marítimas 

entre remotos lugares. 

No cais,

uma cidade de contentores. 

Quantas voltas as mundo estão às costas

de todos os contentores amontoados? 

#2717

Podia-se fazer um poema

com nódoa

nafta 

e nefelibata.

19.3.23

#2716

Deve-se evitar

os santos e as santas,

a crer no mal que fazem

os doces conventuais.

18.3.23

#2715

Ao menos no xadrez

há quem coma bispos.

 

[Justiça restaurativa]

Sem destinatário

Este é o inferno sem demónio:

as casas empenham-se atrás dos limoeiros

na dedicatória ao fermento que trava a morte

o fecundo bolor em pétalas de sol inaugural. 

As ferramentas desarrumadas

intuem as desregras que não se escondem:

os vilões podem ascender ao promontório

podem colonizar os idiomas

pretender que os demais sejam escravos 

do silêncio

mas não passam de mastins desdentados

meras hipóteses de inferno

escaras que só sabem ser pútridas

como pútridos são os seus lamentos

ciciados na babugem soez 

– o seu passaporte,

que nunca prescreve. 

Esse é o inferno

onde os outros são mesmo os outros

empilhando todos os escaravelhos mentais

decifrando as luas que regurgitam 

das entranhas

enquanto passeiam inesteticamente nus

sentados nas coroas de espinhas

de deuses que caducaram às mãos vingativas. 

Os vestígios de sangue escrevem a pauta

e não há fronteira que se desembarace 

das facas,

o ultraje desfilando 

com a pompa dos órfãos de lágrimas

através das claraboias que ensinam as palavras

as temidas, as dissolvidas, as polissémicas,

as palavras-desfiladeiro. 

Se as falas apodrecidas fossem gémeas 

da mentira

não havia páginas para contar

não havia sucessores habilitados

e os lugares seriam ermos

como ermas são as luas 

se em viagem as visitarmos. 

O vento aluga-se aos interessados

mas não aceita rendas em saldo:

de cada vez que formos heróis,

nem que seja por conta própria,

saberemos 

que as páginas não se viram do avesso

a menos que a fome seja intencional. 

Ninguém trava a imensa roda da vida,

ninguém a consegue travar. 

A matéria infecunda que é a tela do deserto

deve ser a mátria do inferno,

o lugar onde a pele se descola da alma 

e fica ao deus-dará

órfã

destruindo os trunfos orquestrados

vingando os pulsos amordaçados

coabitando com as corpos tão puídos

na fábrica que não tem morada

a fábrica que não precisa de operários. 

A boca treme

tropeçando nas sílabas cortadas pela metade;

não há cicerones

neste lugar sem morada

não há dicionários nas estantes

apenas a poeira vetusta que tatua a pele

e anestesia os diligentes estetas,

sem esperar por instruções

abocanhando o podre do dia que decai. 

17.3.23

Injustiças indocumentadas (77)

O Natal 

é quando um homem quiser:

e as mulheres 

não têm nada a dizer?

 

[Parte do manifesto contra a masculinidade tóxica]

#2714

Arrumas os despojos:

gaguejas o resto,

as esporas sem rosto.

#2713

O verso encurralado

as sílabas caladas

os braços caídos.

16.3.23

Silêncio em praça fraca

As palavras que doem:

poços fundos de águas mortiças

as sílabas arrastadas no letargo ancião

na afortunada gramática que não sabe

das regras.

As palavras que doem

podem ser

um silêncio.

#2712

No bazar dos olhares

mercam-se

cumplicidades e indiferenças.