Se os corpos fossem mapas
seríamos atlas sedentos
danças sem paradeiro
um luar à espera de vez.
[Sigur Rós, “Fjögur Piano]
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Se os corpos fossem mapas
seríamos atlas sedentos
danças sem paradeiro
um luar à espera de vez.
[Sigur Rós, “Fjögur Piano]
A pedra que repousa no miradouro
dita a sentença boreal
a armadura desfeita
que revela a nudez,
simplicidade sem cilada
o mosto inteiro
que fala na vez da voz gongórica
o rosto incindível
que não tergiversa diante dos lobos
matéria fundida de ouro e lágrimas
os versos como âncora certificada
no improvável vinho servido em xisto.
Os socalcos descem às mãos
e das estrofes empunhadas sobra o mel
o dorso desimpedido
contra os embaraços de mastins por aí,
avulsos e estultos.
Não capitularemos
– diz-se em coro
desembainhando a alvura
que caia a pele, os ossos, o corpo inteiro,
a garantia perene das coisas
na sua verosimilhança insuspeita.
Somos os esteios que não precisam de esteios
e ao espelho não contamos gramas de pudor
nem perfilhamos sermões não encomendados.
O indulto
abate-se sobre o dia finito
a jeito da indigência,
o princípio geral de tudo
a confusão entre arbustos baldios
e folhagem extravagante da selva.
Dizia-se:
é por estas desconclusões
que se arremata a desconfiança:
uns olham para os outros
de pé atrás
(caso, único,
que os que partem atrás
estão em vantagem)
para serem retribuídos
com a mesma indiferença.
Ao menos,
não há assimetrias
no escrutínio de um mínimo denominador comum.
O indulto
diz mais de quem perdoa
do que do perdão
(o perdoado é o que menos interessava).
Esta é a terra de ninguém
em que o indultado desconfia da piedade
e o indultor pratica generosidade
de que é usufrutuário.
Os bons espíritos
de tanta bondade que a si convocam
nunca se descomprometeram dos padrões válidos:
a bondade é um reflexivo ato,
no inconfessável pressentimento
das indulgências provadas
por mercê da bondade.
Dava o corpo ao manifesto
sem ser importar se o manifesto
estava interessado
no corpo dado.
Corpos
como mares,
imensos,
e imensas são as marés
que derruem a sua sede.
Ficam à mercê das mãos
que os esculpem
sem remorsos
enquanto a tabuada do tempo
se pressente
imóvel
como se a dança fosse uma gramática
e a coreografia
a sua tradução.
Se os pesares
pesarem no vento cortante
e formos o chão em que se deitam
não se espere
uma centelha do dia consecutivo
a diligência sobre nós como dádiva
que nada é perene
e os danos de que somos culpados
interrompem o mel que cicia de longe.
Um canto do corpo
a pele arrancada ao sono
pauta que se adia no luar fundente
e um sinal
o travo doce de uma boca
à espera de um lugar
do vulcão que não se demora.
Em luz
insinuada
entre sombras
o exorcismo
o futuro devolvido
ao lugar distante.
A matéria
diadema embaciado
dia constante nas veias
ocaso
juro sem regra
a jura contumaz.
O rio
dobrado sobre si
sol hirsuto do estio
o açúcar nas uvas
o vinho promitente
à sombra do descanso
as mãos vincadas
suadas
à espera do tempo.
O xisto
ao acaso atapetando o chão
orvalho nascente
e o rio
profundamente longe
contagiando
o perfume das uvas
o som do sangue
o troar do anoitecer
vago
o murmurar vago
e sobrante.
A luz
abraçada ao dia
dando ramos às árvores
tirando frutos às bocas
as bocas que se saciam
umas às outras
arrancam às raízes fundas
o mosto primacial
o magma centrípeto.
A matéria combustível
agarra-se à pele.
Ontem era tatuagem.
Hoje
que se fala apenas de babugem
os arroios vão cheios de água
que houve chuva fora do tempo
talvez um rio de lágrimas,
a descondição dos melancólicos.
Alguém diz:
é preciso partir pedra,
naquela irritante mania
de usar expressões idiomáticas.
(Como se partir pedra
desse para jurar um caminho
ou assegurar um destino
e uma pedreira fosse o embaraço inicial
e todos os que não capitulam
tivessem de vestir o fato de macaco
– outra expressão idiomática
sem paradeiro –
e, na posse de uma humilde picareta,
pacientemente desatasse
a partir a pedra-obstáculo.)
Alguém diz
a maré não está a preceito
e a matéria combustível oferece-se
ao arrefecimento,
a preguiça como aval
que a persistência não é uma arte que se domina.
Os olhos embotados desistem do dia.
Ficam as rugas em salmoura
à espera de serem convertidas
na pele que se dá ao tempo restante.
Por dentro
escondido
o vulcão resiste à hibernação.
As convulsões interiores são como revoluções
espasmos atirando as partes contraditórias
umas contra as outras
como se por dentro do houvesse labirintos
por onde se esgueira a lava
que teimosamente resiste à anestesia forçada.
Por dentro
a resistência dos elementos
ateia a força bruta das páginas arrancadas
ao torpor.
Contra a letargia do futuro
contra as expressões idiomáticas
e os espasmos dos lugares-comuns
a favor dos versos que se sublevam
contra a tirania do que
(dizem ser)
irremediável.
Até prova em contrário,
avivada na carne-viva que deixou de ser,
não estou convencido que a finitude
é o verbo forte.
Dizem
que uma bruma tardia
se apoderou do olhar
e ele, embaciado,
passou a amansar a fala
tartamudeada.
Dizem
que uma maré fugidia
dissolveu o mal-estar
e ele, embuçado,
perdeu a linhagem de bala
torpedeada.
Dizem
que uma cara gentia
se contaminou ao destinar
e ele, desembaraçado,
extinguiu a mala
desarrumada.
O cais é a morada de contentores.
Parecem casas empilhadas
sem critério
como o mesmo acaso
com que cruzam os mares todos
de porto em porto
conhecendo os climas todos
os idiomas de que o mundo é feito
levando mercadorias
fazendo as pontes marítimas
entre remotos lugares.
No cais,
uma cidade de contentores.
Quantas voltas as mundo estão às costas
de todos os contentores amontoados?
Este é o inferno sem demónio:
as casas empenham-se atrás dos limoeiros
na dedicatória ao fermento que trava a morte
o fecundo bolor em pétalas de sol inaugural.
As ferramentas desarrumadas
intuem as desregras que não se escondem:
os vilões podem ascender ao promontório
podem colonizar os idiomas
pretender que os demais sejam escravos
do silêncio
mas não passam de mastins desdentados
meras hipóteses de inferno
escaras que só sabem ser pútridas
como pútridos são os seus lamentos
ciciados na babugem soez
– o seu passaporte,
que nunca prescreve.
Esse é o inferno
onde os outros são mesmo os outros
empilhando todos os escaravelhos mentais
decifrando as luas que regurgitam
das entranhas
enquanto passeiam inesteticamente nus
sentados nas coroas de espinhas
de deuses que caducaram às mãos vingativas.
Os vestígios de sangue escrevem a pauta
e não há fronteira que se desembarace
das facas,
o ultraje desfilando
com a pompa dos órfãos de lágrimas
através das claraboias que ensinam as palavras
as temidas, as dissolvidas, as polissémicas,
as palavras-desfiladeiro.
Se as falas apodrecidas fossem gémeas
da mentira
não havia páginas para contar
não havia sucessores habilitados
e os lugares seriam ermos
como ermas são as luas
se em viagem as visitarmos.
O vento aluga-se aos interessados
mas não aceita rendas em saldo:
de cada vez que formos heróis,
nem que seja por conta própria,
saberemos
que as páginas não se viram do avesso
a menos que a fome seja intencional.
Ninguém trava a imensa roda da vida,
ninguém a consegue travar.
A matéria infecunda que é a tela do deserto
deve ser a mátria do inferno,
o lugar onde a pele se descola da alma
e fica ao deus-dará
órfã
destruindo os trunfos orquestrados
vingando os pulsos amordaçados
coabitando com as corpos tão puídos
na fábrica que não tem morada
a fábrica que não precisa de operários.
A boca treme
tropeçando nas sílabas cortadas pela metade;
não há cicerones
neste lugar sem morada
não há dicionários nas estantes
apenas a poeira vetusta que tatua a pele
e anestesia os diligentes estetas,
sem esperar por instruções
abocanhando o podre do dia que decai.
O Natal
é quando um homem quiser:
e as mulheres
não têm nada a dizer?
[Parte do manifesto contra a masculinidade tóxica]
As palavras que doem:
poços fundos de águas mortiças
as sílabas arrastadas no letargo ancião
na afortunada gramática que não sabe
das regras.
As palavras que doem
podem ser
um silêncio.