6.4.23

Injustiças indocumentadas (87)

“Estou-me nas tintas”,

disse,

sem (a)notar

os vapores tóxicos a que se expõe

quem está imerso em tintas.

#2736

Demitiu o arnês

e nomeou 

a montanha russa,

uma roda-viva 

em carne extasiada.

Injustiças indocumentadas (86)

O mantra,

não o manto.

5.4.23

Injustiças indocumentadas (85)

Caído o queixo,

o chão virado do avesso

adejando sobre a cabeça.

No dicionário, a Primavera

O mar

parecia o verniz do dia

como se fosse possível 

emoldurá-lo.

 

A maré 

cercava as rochas

um cerco de sal e linhagem

imperturbável.

 

O rio

queria saber do sal do mar

enxertando-o de imodéstia

e soberba.

 

A lua

era testemunha à distância

ainda mergulhada no seu sono

diurno.

 

A Primavera

já mais do que um esboço

deixava em legado as suas páginas

aveludadas.

#2735

Eis a alquimia da Primavera

os pássaros doidejando

como se fossem bardos

em coreografias coloridas.

4.4.23

Liturgia segundo os apóstatas avulsos

Dédalo das más intenções;

que se metam as palavras 

em marcha-atrás

e as más sejam boas intenções:

os espírito afidalgam-se

as solenidades são honradas

em vez de serem consumidas

pela banalidade da rotina.

Uma litania atravessa os claustros

onde se evoca a grandiosidade 

do futuro.

Testas-de-ferro diplomados

querem açaimes

querem

silêncios que evaporem as falas:

conspiram contra as vozes bastardas

vozes que estilhacem o bem adquirido

e a motivada mentira que atravessa 

os dias.

Em vez de uma bandeira

uma coroa 

auréola as cabeças sem tenência.

Há generais a mais

e solenidades a menos

e os festins

em devida preparação

não são de assinalar com ausência.

Injustiças indocumentadas (84)

A algaraviada

não precisa de sol

só precisa

de um módico

de sangue em ebulição.

#2734

Quem vai 

à poesia

dá e leva.

#2733

Deste modo,

a fala bruxuleante

que enfeitiça o luar.

3.4.23

God is lost in transition

Epifania no fundo do prato

sável ao engano

escabeche sem cebola “adstringente”

os talheres trocados

mas não para os canhotos

que somos contra discriminações

e deus

se existisse

 

(oh! lugar-comum

tão banal

que as próprias banalidades

se esgotam 

num esgoto de banalidades)

 

apedrejam os mastins da discriminação

que ganhou lugar de moda

a discriminação positiva

positiva

palavra benquista

louvor a prazo

crédito sem juros

contra os agiotas que açambarcam as almas

ingénuas

dir-se-ia

das que acreditam em deus

não fosse esta arrogância

um auto-de-fé contra quem a vocifera

ou

epifania do avesso

como se os hereges

e os ateus

 

(não necessariamente por esta ordem)

 

se perdessem no pântano das suas aleivosias

e deus

afinal

não se tivesse perdido

na transição.

#2732

Se não fosse 

pela dúvida bastião

os segundos sincopados

seriam uma repetível monotonia.

2.4.23

#2731

A voz visível

estilhaça o caos marejado

que anoitece o olhar

dividido.

1.4.23

Injustiças indocumentadas (83)

Se o trinta e um

é apenas trinta e um,

por que há de ser

um trinta-e-um?

Injustiças indocumentadas (82)

A mentira

é perna-longa.

#2730

Longe dos telhados de vidro

a folha caduca

enrugada e seca

esconde um legado.

Injustiças indocumentadas (81)

O toque de Midas

é erógeno?

31.3.23

#2729

Espreitei

por cima do dia

e as mãos falaram

o poema destinado.

30.3.23

Injustiças indocumentadas (80)

Penso rápido

no penso rápido

que o rápido dispenso

no rápido dá que pensar.

Providência silenciosa

Um bocado de carvão 

atirado à patibular infância:

dizemos sempre

que ficou tanto por dizer

e ninguém se acusa 

na cacofonia insurgente,

o chilrear doentio de falas sobrepostas.

 

Um bocado

talvez

de silêncio:

 

a bonomia que se congraça

nas entrelinhas da ausência:

ao silêncio,

a sua suserania

que de palavras banais 

estamos cheios.

#2728

Perguntaram

o que queria ser

quando tivesse idade 

para uma profissão:

alimentador de sonhos,

respondeu.

29.3.23

Dieta

Seguimos pelas avenidas vãs

aquelas onde a poeira sente-se nas veias

e as palavras desassossegam os anjos.

 

Vamos às avenidas malsãs

aquelas onde a poesia é insulto

e a fala se polui com deuses.

 

Saímos das avenidas repletas

aquelas em que somos corpos estranhos

e ao exílio pedimos franquia.

#2727

Recusem a desambição

de meter açaimes nas palavras

para não serem vítimas

do silêncio.

28.3.23

Atlas

Se os corpos fossem mapas

seríamos atlas sedentos

danças sem paradeiro 

um luar à espera de vez. 

 

[Sigur Rós, “Fjögur Piano]

Por inteiro

A pedra que repousa no miradouro

dita a sentença boreal

a armadura desfeita

que revela a nudez,

simplicidade sem cilada

o mosto inteiro 

que fala na vez da voz gongórica

o rosto incindível

que não tergiversa diante dos lobos

matéria fundida de ouro e lágrimas

os versos como âncora certificada

no improvável vinho servido em xisto.

Os socalcos descem às mãos

e das estrofes empunhadas sobra o mel

o dorso desimpedido

contra os embaraços de mastins por aí,

avulsos e estultos.

Não capitularemos

– diz-se em coro

desembainhando a alvura 

que caia a pele, os ossos, o corpo inteiro,

a garantia perene das coisas

na sua verosimilhança insuspeita.

Somos os esteios que não precisam de esteios

e ao espelho não contamos gramas de pudor

nem perfilhamos sermões não encomendados.

#2726

O fio

e o pavio

em leilão.

 

[Manual de instruções para terroristas de trazer por casa]

27.3.23

O indulto

O indulto 

abate-se sobre o dia finito

a jeito da indigência,

o princípio geral de tudo

a confusão entre arbustos baldios

e folhagem extravagante da selva. 

 

Dizia-se:

é por estas desconclusões

que se arremata a desconfiança:

uns olham para os outros

de pé atrás

 

            (caso, único, 

            que os que partem atrás

            estão em vantagem)

 

para serem retribuídos 

com a mesma indiferença. 

 

Ao menos,

não há assimetrias

no escrutínio de um mínimo denominador comum. 

 

O indulto

diz mais de quem perdoa

do que do perdão

 

(o perdoado é o que menos interessava).

 

Esta é a terra de ninguém

em que o indultado desconfia da piedade

e o indultor pratica generosidade 

de que é usufrutuário. 

Os bons espíritos

de tanta bondade que a si convocam

nunca se descomprometeram dos padrões válidos:

a bondade é um reflexivo ato,

no inconfessável pressentimento

das indulgências provadas 

por mercê da bondade.

Injustiças indocumentadas (79)

Dava o corpo ao manifesto

sem ser importar se o manifesto 

estava interessado

no corpo dado.

#2725

Não se faça de um lamento

o hino e a bandeira

amarelecidos em prantos.

26.3.23

Museologia

Corpos 

como mares,

imensos,

e imensas são as marés

que derruem a sua sede.

Ficam à mercê das mãos

que os esculpem

sem remorsos

enquanto a tabuada do tempo

se pressente

imóvel

como se a dança fosse uma gramática

e a coreografia

a sua tradução.