3.5.23

Manifesto contra a farsa

Como se o hálito do coiote amanhecesse

por dentro dos ossos 

e até o nevoeiro enraizado se calasse

ao pressentir a trovoada que se hasteia,

a suspensão do dia adiada até data conveniente. 

Se houvesse um feixe de sílabas escondidas

o coiote acordado toda a noite

de atalaia

a fingir o sono 

dos que suas vítimas não querem ser

fugindo dos punhais alardeados pelo coiote

enquanto a maré inteira não se torna

apenas sobrevivência. 

E fogem

do dia

dos dias consecutivos

por todos serem iguais

da fala

da imodéstia

das juras atiradas sobre o passado

de um lugar que seja pertença

de um lugar qualquer

em que consigam ser outro eu

à falta de saberem estar vestidos

nos deslimites em que se terçam. 

Por não ser do coiote

essa culpa 

tatuada. 

#2768

Satélite em si

uma máscara que cai

na omissão do pudor.

 

[Genealogia de uma crise política]

2.5.23

Fogo cruzado

Da boca

trapézios em murmúrios alpinistas

uma corda gasta quase a romper-se

mesmo sobre o precipício

faróis avinhados sem pontuação

olhos apontando aos jardins desarranjados

elipses encantatórias sob efeito de morangos

um punhado de lava decadente

a grandeza também decadente

e a saudade

suada

do silêncio.

#2767

Não teve tempo

para ser jovem

e luta 

com a obstinação das suas forças

para não ser velho.

1.5.23

Ralhetes

Eram ralhetes a mais

e a menina suava como se a sua infância

soasse a infância outra vez

muito embora pressentisse 

que da infância sobravam 

só umas memórias que não queria

avivadas.

Podia ser que esses ralhetes fossem devidos

e ela teimasse numa loucura de espírito

que era como um retardador do tempo 

– vinha mesmo a jeito

se já estivesse na idade madura

e o envelhecimento começasse a doer.

Não era o caso:

a menina ainda se considerava menina

e não era só porque a tratavam tantas vezes

por menina

vá-se lá saber se por deferência

ou apenas simpatia

ou por uma mal disfarçada misoginia

que se vestira do avesso,

tão farsante.

Os ralhetes eram sempre a mais,

ajuizou a menina

que não queria ser a vítima predileta dos ralhetes

e preferia que quem os pronuncia 

se abstivesse da incumbência.

Também não é menos verdade

que os ralhetes não são encomendados

por a quem eles se destinam

e que há quem tenha o incómodo de os pronunciar,

empreitada que deve ser inominável

pois ela nunca emitiu um ralhete

e adivinha que seria tremendo incómodo fazê-lo.

O mal dos ralhetes

é de quem não tem razão. 

#2766

O fio da indiferença,

teia que se emaranha

na carne que ralha.

Injustiças indocumentadas (101)

O rei vai nu

e por isso

ninguém é monárquico.

30.4.23

#2765

Quem sabe do silo 

onde fermentam

as intenções?

29.4.23

#2764

Meias-tintas

não fazem

cabazes.

28.4.23

Escritura pública

Retém o rio com as mãos

espreita entre as veias

o rumor do vulcão.

 

Adia a noite

o simulacro do medo

entre montanhas retorcidas.

 

Cobre o rosto com o luar

dita para o areal

as angústias datadas.

 

Acorda do pesadelo fortuito

deixa-o fermentar na podridão

e agarra-te às páginas sem cinzas.

 

E diz ao amanhã

em segredo fechado por todas as chaves

que já o tratas por tu.

Injustiças indocumentadas (100)

Não se incense a primeira mão

que a segunda mão

é sempre melhor.

#2763

Cedo ao cedo

para que não seja

tarde.

27.4.23

Injustiças indocumentadas (99)

Melhor será não frequentar ginásios

para largas as costas não ficarem 

com todo o peso da culpa

nelas arqueado.

À semântica o que não é da semântica

A semântica

tem as costas largas.

Os figurões

dizem que dizem

e depois desdizem

para no terceiro episódio

desdizerem o que tinham desdito

sem que voltem ao estado primitivo

de quem disse o que disse.

E os figurões

alardeiam o enfado

de quem é posto à prova

como se fosse crime

e de lesa-majestade

remexer na podridão 

por suas excelências segregada.

Como clausura do assunto

endossam a fatura 

à semântica.

Pobre semântica.

#2762

Não se disfarcem as pedras

se elas asfaltam o dia.

26.4.23

Injustiças indocumentadas (98)

Estou admirado:

ainda

nenhum tutor da superioridade moral 

se cruzou com 

cruzes, 

canhoto.

Sem filtros

Não sei se ouvem

as vozes que se convocam

para o que houve no futuro. 

Por dentro dos bolsos

um terrível nada

feito de um amontoado de pessoas

a mais improvável véspera que se encena

no fingimento dos paradoxos. 

Não sei

se de mim houve

bondade;

participo as fragilidades 

que de mim deixam um retrato nu:

dessa nudez que é embaraço

procuro cortinas baças,

que não se veja para dentro. 

Arranco às notícias

sob tortura (se preciso for)

as mentiras que contam. 

Não preciso dessas mentiras 

– ainda por cima 

não são piedosas. 

Não preciso 

de um disfarce a cobrir o mundo. 

E talvez também seja dispensável

a cortina baça 

que esconde a minha nudez. 

Injustiças indocumentadas (97)

Reinvenção do dicionário:

um contratempo

vai contra o tempo

tem de ser 

a medida do seu adiamento. 

Injustiças indocumentadas (96)

A inteligência artificial

não é um eufemismo.

#2761

A alvorada

cala o silêncio

e o siso esconde-se

no exílio.

25.4.23

#2760

Contra as ideias feitas

o futuro está a ser escrito

no compasso do presente.

Injustiças indocumentadas (95)

Na ponta da língua

não cabe tanta ciência

como dizem.

24.4.23

Tropeçamos

Erva daninha roçada pelos pés envidraçados

e areias movediças ultrapassadas ao entardecer 

a vizinhança que fala em maiúsculas

e um leilão que merca arrependimentos

até

que sobra um nada só igualável 

ao maior dos desertos.

 

Nisto

um escafandro

e a noção de exílio com nome de flor

que as gravatas às cornucópias

e um bando de calvos que mentem 

até com os dentes que deixaram de ter

não tem maresia entre os pesadelos.

#2759

A lua resgatada

conta o mau verso 

da noite.

23.4.23

#2758

Um anão 

dança no meio da sala

e ninguém deita o olhar

nos gigantes que também

dançam.

 

[Às vezes, a metáfora de geopolítica]

22.4.23

Injustiças indocumentadas (94)

A tara da montanha

impede

que seja movida

pela fé.c

#2757

Feita a autópsia à lágrima corrompida

os peritos lavraram o auto:

era do sol pesaroso

derrotado 

pela chuva fora da estação.

21.4.23

Mosto capital

A fogueira crepita,

o único embaraço 

ao silêncio. 

 

O vinho voraz

deitado no sangue

a combustão empenha-se 

nas palavras. 

 

O frio fundo

foi deposto

e lá fora o luar

serve-se da solidão. 

 

Oxalá tudo fosse

assim sereno

deserto 

sem a vozearia infinita

sem os arautos do fingimento

apenas

um punhado de exilados do dia

que, como gatos vadios,

celebram a cidade como ermo lugar. 

Injustiças indocumentadas (93)

Dos vira-casacas

não se digam cobras e lagartos

que vestir o casaco do lado do forro

não é grande estética

e conforto.

#2756

Às vezes

apetece o exílio

atrás de um eclipse.