25.9.23

A direito

Da manhã 

que se levanta nos rostos, 

rejeitamos a bruma 

que adia a impaciência. 

 

Fazemos a manhã 

com o aval

dos nossos dedos. 

 

Já não somos apenas 

silhuetas.

Projetos em estiradores 

que se confundem 

com estilhaços. 

 

Somos suseranos 

do que quisermos ser. 

 

À espera 

de um dia qualquer, 

porque não devemos nada 

ao futuro.

24.9.23

#2910

Desalojada a sentinela

a rua ficou deserta

e as vozes ouviam-se

em constantes murmúrios.

23.9.23

Injustiças indocumentadas (187)

Ninguém

jura o juro

que há de estar.

#2909

O tigre no papel:

a demolidora lente

que dilata as rugas inválidas.

22.9.23

Injustiças indocumentadas (186)

Aos amanhãs que cantam

prefiro

as manhãs que encantam. 

Os sabres desmentidos

Violinos como coldre

a matéria funda que se funda

e um beijo equinócio

a tradução que nidifica no nada

braços contra braços e no fim

ganham os indigentes sem passaporte.

 

Mastros que perscrutam o horizonte

derrotam a finitude

os espécimes literatos 

que do mar fazem moradia perene

eles e toda a fauna submersa

quase adormecem perante o eclipse.

 

Não se avisem os entendidos

que soa a ignorância o atrevimento

não é preciso a advertência

que mal seria feito se os demais

privados fossem de um módico circense

que não se mede em braçadas o tédio.

 

Não se encontra procurador para os eruditos

é pena, não há quem queira a embaixada

e os cocktails molotov em surdina

parecem destinados a um museu

que (ó boa nova) os mastins foram presos

e ainda se pode esperar por belos amanhãs.

 

Dispensadas as pitonisas da diplomacia

ao palco sobem personagens diletas

sereias, poetas, mendigos, apátridas das ideias

e as pessoas não escondem o arrebatamento

esperam agora (do substantivo esperança)

que tudo venha caiado com as palavras tónicas.

Injustiças indocumentadas (185)

Quem não tem barbas

não as deita de molho.

Injustiças indocumentadas (184)

Recriação;

ou recreação.

#2908

O rosto visceral fala do medo

como quem o arranca

da faina tumultuosa.

21.9.23

Cem fronteiras

Um natal avulso

contratado à pressa:

os aprendizes

com trauma verificado

protestam compensação.

O que melhor se arranja

é um natal a destempo.

Não há agasalhos

que o outono nem arrimou

e os publicitários ainda estão

a uma enorme légua mental.

Os aprendizes assentam as cicatrizes

prantam por parvulez

candidatos à eterna puerilidade

a serem

gente a menos para corpo a mais.

Uma nova modalidade

de discriminação positiva.

Só falta reverenciar

os didatas da indulgência

e perguntar-lhes

(não vá ser importuno)

por que é devida aos aprendizes

uma compensação

se ainda nem tiveram tempo

para aprender a sofrer o mundo.

Estas alfândegas sem passaporte

ainda vão matar

e antes do tempo

gerações por haver.

#2907

O riso exuberante,

a drenar as entranhas

do mundo mau.

20.9.23

Congruência

Percebes a luz inaugural que desmata o dia. 

O refúgio prometido aloja-se no silêncio

o silêncio por enquanto. 

Ouves 

o bramido das folhas acorrentadas ao vento

o leve ciciar do vento

que desassossega já o porvir próximo. 

Sentes-te como as raízes das árvores 

– não há nada que cause uma razia

e a razão dirá se se compõe em teu tesouro. 

Ao longe

onde o horizonte põe termo ao olhar

levanta-se um leve torpor

como se o mar estivesse vigilante

o viável fundamento que aconselha. 

Os contratempos arrumam-se na fila de espera. 

Sem se darem à visibilidade

pondo os cotovelos em cima da mesa

fruindo a angústia de quem sabe

o que é uma rasteira dada por um contratempo. 

Desvias o olhar

empurras o horizonte 

inventas as tuas próprias impossibilidades. 

Um esboço de luz espreita pelas mãos

deixas o papel deitado no estirador

e adormeces a alma

sufragada pelo sonho que entreteces. 

Às vezes

os domínios que ocupas remoçam

emprestam ao dia um dia inteiro

sem recusar a sublevação dos ossos

apátrida

generoso. 

Se pudesse ser

fazias um poema 

na tela que espera as aguarelas. 

Encurralavas os dentes furtivos da noite

para fingires a solidão

para fugires das multidões. 

Não foges de ti. 

Toma-lo como compensação 

contra os solavancos

o autêntico terramoto

que fragiliza a imensidão do mar 

em que habitas.

Injustiças indocumentadas (183)

Se aos gauleses encomendassem

“rua”

eles aprovariam, 

com prazer,

a interpelação.

#2906

Atira os dados

mas antes

passa os dedos pelo mel

não vá a lotaria fugir.

19.9.23

Arrelias (ou avarias)

É voz corrente

o mundo está arreliado. 

Ele são dignos suseranos

que explicam terramotos

com as alterações do clima

outros que carregam 

o estigma da pederastia

e por aí fora

numa procissão de conspirações

que levitam em forma de teoria

no mais profundo insulto 

à teoria das teorias

uma boémia demencial

em que grotescos clérigos 

escondem a inveja da boémia

e inadvertidos dignitários 

bolçam uma espuma pútrida

que almeja disfarçar 

um não saber. 

Não

o mundo não está arreliado:

se estivesse 

tinha de vomitar para dentro

a arreliação de si mesmo

como se desencavilhasse uma granada

para dentro do próprio bolso. 

E se o palco for virado do avesso

depressa se intuí

que o mundo não pode estar arreliado

ao parir tão risíveis personagens. 

O mundo

nisso é dileto

pródigo nos momentos circenses

e nas distrações com que nos habilita.

#2905

As vozes em vão

caladas pelo silêncio 

que invade a sala vazia.

Injustiças indocumentadas (182)

Espelho mau

espelho mau...

 

[Colóquio do anti-narcisismo]

18.9.23

Boas maneiras

O escansão não foge da ardósia

disseram-lhe que é velho

para a ardósia o querer como fóssil.

Não quer saber.

Do escansão

depende uma turba:

apurado, o seu legítimo palato,

oferece mandamentos

seguidos por uma caterva de aficionados.

Antes de se saber

o escansão foi o primeiro dos influencers.

Injustiças indocumentadas (181)

Ditador.

Dita dor.

Dita a dor.

 

[O da Coreia do Norte, a subir ao comboio, dizendo adeus à Rússia]

#2904

Tinha voz AM

era pena

as pilhas serem

de longa duração.

#2903

Não é 

por indulgência

que se adia 

o passado.

17.9.23

Injustiças indocumentadas (180)

Fotossíntese.

Foto.

Síntese.

Injustiças indocumentadas (179)

Se são outros quinhentos

façam-me o obséquio de revelar

onde estão os primeiros quinhentos.

#2902

Escudeiros adestrados

acordam de véspera:

apanham os despojos

da boémia dos senhores. 

Injustiças indocumentadas (178)

Dedos são dois

de uma conversa que pedia

(“eu sei lá”)

quinhentos, “assim” por defeito.

16.9.23

#2901

Voltamos

ao colo do outono,

que o verão está esgotado.

15.9.23

Injustiças indocumentadas (177)

Nunca edil

foi tão contíguo

evil.

 

[O Dr. Moreira queria armazenar uma estátua de Camilo e Ana Plácido porque esta estava nua]

A corda do basalto

O basalto contorce-se com o suor da noite.

Desprende-se das faúlhas e povoa o vinhedo

e as pessoas

ao longe

confiam no desespero

atestam o desespero:

já pressentem as vozes periciais

já as pressentem

a atirar a semente do remanso póstumo:

o basalto 

será o rosto físico 

de um vulcão cansado

entretanto adormecido

e, arrefecido,

receberá em seus poros a quimera depois:

as sementeiras serão consagradas

num parapeito inóspito do mundo

onde as lágrimas se converteram em suor físico.

Tempos depois

já a lava ficara esquecida entre as folhas frondosas

os pecados ficaram por arrematar

(segundo os pobres anciãos

reféns do paganismo ancestral:

o vulcão tirado ao sono

é a vingança dos deuses enfurecidos):

a ira dos deuses sem nome conhecido

escolheu aquele lugar

a paisagem acrisolada nos novelos de basalto

nos cachos de lava tornada pedra

entre dentes de leão e acácias

entre os bagos das uvas milagrosas

e o vinho repatriado das balsas da lava estática.

Injustiças indocumentadas (176)

Copérnico estava errado

pois tanto se evocam

os quatro cantos do mundo.

#2900

O dia fêmea

come a fome de miséria

deixa na boca

um odor a framboesa e maresia.