17.11.23

Injustiças indocumentadas (237)

Haveríamos

de ter inveja

da onça

tantos os amigos

que ela 

tem.

 

[Sobretudo um certo primeiro-ministro com prazo de validade acertado]

#2967

O salto vertical

à medida do medo,

uma nota de rodapé

indiferente.

Injustiças indocumentadas (236)

O pé

de semear.

O pé

de cabra.

O pé

de microfone.

Nada

é por 

acaso

 

(se

interessa

para o

caso).

16.11.23

Ubi-qui-da-de

Os dentes do avesso:

congeminava a rebelião

tardia

a impensável bochecha que o devir

escondia;

se fosse pelas espadas travadas

os arrevesados procuradores 

em vez da estultícia

seriam devotos de ingénuos oráculos,

que a demanda do futuro

não é de ficar ao pé de semear. 

Mais logo

(jurou)

cobro aos anjos disfarçados

a tença correspondente

e entrego-me 

incondicionalmente 

à boémia

o meu corpo como se fosse doado

sem ser à ciência.

#2966

O vulto delido

com os dedos puídos

alista-se no inventário das farsas. 

15.11.23

Injustiças indocumentadas (235)

Brincadeira contínua.

A brincadeira continua.

A sério.

Injustiças indocumentadas (234)

De um jornal:

“Mata homem por dívida com 27 anos”.

E fiquei sem perceber 

se era a dívida, 

ou o morto,

que tinha 27 anos?

#2965

Cubro com vergonha

a nudez da fala

e lamento

a privação do silêncio.

14.11.23

Injustiças indocumentadas (233)

Maré-viva,

maré viva,

não sejas morte

na safra alheia.

Sangue e lágrimas (a demissão da angústia)

O sangue confundia-se com lágrimas. 

Os derrames vertiam cicatrizes

a pele era asfaltada 

por tatuagens involuntárias. 

Há quem solte o freio da angústia:

não sabem 

ou não admitem

que a angústia 

não é tão imediatamente involuntária

como as tatuagens herdadas de cicatrizes. 

Despojam-se

como se dessem autoridade à comiseração

e precisassem da tutela dos apiedados

para baixarem a temperatura da angústia

sem tomarem conta do periscópio

que previne que se deslacem do exterior. 

Afocinham

numa mistura putrefeita 

de sangue e lágrimas

e adiam o cais metodicamente generoso

que pavimenta a dança sem regras que precisam

para não serem reféns 

dos seus próprios ardis. 

#2964

Em forma de marco geodésico

sem saber se 

a paisagem intercedia por ele

ou era ele de atalaia à paisagem.

13.11.23

Fogo posto

A fogueira crepita

num fogo 

posto à venda

por nada

por um

fogo posto

que armadilha 

as mãos voluntárias

em tudo um nada

crestadas

por defeito de vontade

de uma vontade por excesso.

A fogueira crepita;

valha 

ao menos

a interdição do Inverno.

#2963

Os socalcos descem até ao rio

são as mãos artesãs

em nome da natureza.

12.11.23

Injustiças indocumentadas (232)

Fora de casa

(mas) 

em trajes maiores.

Injustiças indocumentadas (231)

Desgraça:

desengraça

diz, graça.

#2962

Esta é a mão moratória

a demão que pede vindouros

o presente caiado

com o pejo dos cajados 

sentenciados. 

Avinagrado

A tabela térmica

respira a febre da pele:

as erupções devolvem luz à noite

e não se fale de eclipses

não desembaracem o lagar

onde as uvas fermentam de véspera.

É pelas varandas que as falas se juntam

as casas são uma prisão arrematada

lúgubres, sombrios espasmos de rotina.

 

As pessoas

habituam-se aos hábitos.

 

Não se demovem 

por luares nómadas

ou lances ousados 

que viram o jogo do avesso

os génios sempre adiados.

Só querem a usança

refeições à hora marcada

a purulenta televisão

onde desfilam malquerenças 

e personagens escaninhas. 

O fumo ao longe

não é um atestado de cemitério:

o vento assina as árvores

a durável concessão dos homens

máquinas em barda

a lava da civilização

como se contássemos os quilos de ferrugem

no inventário da abastança. 

 

Não se interpõem os deuses

que também dormem. 

Quisessem mediadores,

encontrá-los-iam nas medas avulsas

a meação que junta as mãos separadas.

11.11.23

#2961

O ogre destila babugem

do seu úbere miasmático

e há uma turba que nele bebe.

Injustiças indocumentadas (230)

A última hora

está sempre à espera 

da próxima hora.

10.11.23

#2960

O Outono pornográfico

que rouba as folhas às árvores

e deixa-as nuas 

ao olhar tumultuoso.

#2959

Agita a colmeia

pode ser que não seja mel

a colheita às tuas mãos.

Injustiças indocumentadas (229)

Estrela,

da amadora.

9.11.23

Injustiças indocumentadas (228)

Besta negra 

– ainda se pode 

dizer?

Os escombros, não

Como sangue de framboesas maduras

as pálpebras falam no estreito da mentira

acostumam-se à imprevidência dos lobos

e deixam atrás o insensato esgar dos lúcidos. 

 

De vez em quando

as consoantes gritam o verbo duro

libertam-se da azáfama das noites desertas

e emprestam disfarces para quem nunca foi

farsa. 

 

O ouro está escondido na página 36,

segredou a divindade empossada, 

e os cães vadios que passavam

subitamente mataram a fome.

 

Não

não me escondo dos espinhos das amoreiras

trago comigo estátuas dilaceradas

e tatuagens que ainda procuram santuário.

#2958

Deixa 

que as pétalas avulsas

assentem na pele 

com a leveza da neve.

8.11.23

Monumental

Dessem à boca

alcatrão

já que à ilharga

sobra o silêncio

oxalá povoassem de lucidez

um pouco do adro mental

e por contágio

um arnês os libertasse

da indigência. 

Coabitasse a medida

com o estatuto encamisado

soubesse a boca 

ser modesta

e o juízo não se afivelasse

por excesso

para diplomática ser

a contabilidade

e de contumácia das estimativas

não se poder falar. 

Enchessem-se de penas

talvez cuspidas a alcatrão

para não se esconderem

da desvergonha.

Injustiças indocumentadas (227)

Uma pilha de nervos

tem de ser

de lítio.

 

[Poema circunstancial:

ou de como o lítio

mandou um governo abaixo.]

Paralelo 66

Tenho nas mãos

as flores sem sangue. 

 

Tenho aos pés

as vozes párias.

 

Trago no olhar

os medos extintos.

 

Trago na memória

as manhãs vagarosas.

 

Tenho 

no magma da alma

as palavras armadura.

 

Tenho

no lugar da maresia

a nitescência das mãos inaugurais.

#2957

Se não forem as cortinas

é a paisagem de peito aberto

dolorosamente capilar.

Injustiças indocumentadas (226)

mea culpa

não passa

de culpa meã.