26.5.24

#3162

O crepúsculo 

fala em segredos

dilata o sangue 

antes que arrefeça

com o anoitecer.

25.5.24

#3161

Se ao vento 

roubares as asas 

e em teu peito 

os versos abotoarem.

24.5.24

#3160

Entre tantos novelos de memórias 

o fio solto de um sonho.

23.5.24

Heróis

Não é longe

o beijo que espera

o peito que faz de cais

o verso em forma de lírio

a porta onde combinamos abrigo. 

Hoje

procuro na pele um anjo

convoco a água torrencial

mergulho na tocha que ateámos

na enseada onde nos deitámos, heróis.

Lança-chamas

Do suor não se alcança idioma 

como berberes que flanqueiam o deserto

tingidas as peles pelo sol duradouro

os oásis estandartes escondidos

sob os dietéticos óculos de sol

e na banda sonora em surdina

outro veio da colonização cultural

o cantor a ensinar a ser amante e herói.

#3159

As peças avulsas

estilhaçam a espessura do dia

ficam por ser 

um puzzle com moldura.

22.5.24

Inquérito

Para onde atira

o olho do furacão?

 

Por onde anda

a venda do vulcão?

 

Por quem se encomenda

o hálito do caimão?

 

Para onde caminha

o esqueleto do varão?

Injustiças indocumentadas (360)

O lobo 

deixou de ser 

mau

 

(graças à biodiversidade).

Injustiças indocumentadas (359)

Vergonha 

é encher a boca 

com tanta vergonha.

#3158

Um eclipse 

sobre as costas pesadas 

uma sombra que trava 

o entendimento.

21.5.24

Torre gasta

O estaleiro oferecia as facas a pedido

não era de estranhar a dica ensanguentada

e os mirones não ocasionais, 

arremedos de vampiros culturais. 

Os déspotas adejavam entre os poros da nuvens

amanheciam furtando lugares aos inocentes

e nunca fingiam a absolvição

por entre o empedrado gasto e escorregadio

onde o trânsito da manhã se enlutava de sorriso. 

A ocorrência tinha de ser participada

mas não havia bombeiros por perto

e a polícia amesendava ao pequeno-almoço. 

“É nesta desgraça que estamos”

estremou um habitual desiludido profissional

enquanto limpava o sebo do mundo

à bandeira pútrida que encontrou à mão. 

Não fossem concorrentes

bombeiros e bandalhos da desesperança

para se tornarem hemisférios gémeos

e das duas bocas 

bolçarem sons guturais e risíveis

como quem fica sob a mira do apocalipse

e começa 

a contar números da frente para trás. 

Os teares estavam tomados pela ferrugem

os dedos capitularam às artroses 

já tudo se adivinhava como profecia do passado

e os rostos embaciados propunham-se 

ao desfiladeiro

mas ninguém podia entoar a palavra decadência

não fossem os maus espíritos 

soltar-se da hibernação

e, gastos mas ainda fortes,

levassem o braço vencido e enrugado

a admitir o estertor 

o timbre venal de quem sabia certo 

o desenlace.

#3157

As palavras daninhas 

não passam 

do rés-da-vida.

20.5.24

O lugar do paraíso

Não precisas de sete chaves

para à porta dares 

ordem de clausura. 

A matéria do silêncio

é prima do sortilégio

e a fala assim encenada

cavalga nas esporas do impossível

mesmo à espera da absolvição. 

Arrumas a pele sentada

no rodapé da fogueira invernal. 

Sentes a carne que geme 

protestando a favor

a favor de uma coisa avulsa

ainda por apurar. 

Se os olhos 

estão tão claros como a alvorada

se triunfam no idioma futuro

têm de ser conservados

a favor das mãos tácitas

desfazendo o lúgubre lugar 

tornado moldura 

de um paraíso sem nome

(ainda).

Injustiças indocumentadas (358)

Aos mal-entendidos

que 

foram entendidos a bem.

Injustiças indocumentadas (357)

As horas valentes

(também)

deviam ter um hino.

#3156

Um meteorito 

depressa se torna 

metáfora. 

19.5.24

#3155

Três quilómetros de sorrisos

não menos

e uma dioptria a mais

para confirmar a craveira.

18.5.24

#3154

Não é a absolvição

que tentamos saber; 

há tanta transgressão

sem precisar de holofotes.

17.5.24

Paraquedas

Tinhas de começar o poema por “não”

a maldiga mania de rimares o mundo

com indigência

sem dares crédito às bucólicas criações

dádiva aos nossos olhares

um módico de generosidade

para desmatar a desconfiança embebida

em cada poro da pele que mal respira. 

 

Mergulhavas no poço sem fundo à vista

sem temeres que fosse o poço da morte

e encontravas lenços de linho

calçados pelas cores sem exceção do arco-íris

o beneplácito régio de uma república enquistada

ou apenas uma chávena de café

para dirimir a sonolência

o gesto que mobiliza os espíritos cansados

em turnos sem medida e sem sono

em versos que respiram 

o alecrim baldio. 

 

Alguém disse

as manhãs caem antes do tempo

e ninguém protestou;

não sei se estavam anestesiados

ou se apenas 

se tinham enganado no dia

e entraram pelos bastidores errados.

#3153

A imagem nua

devolve a vergonha

aos decadentes.  

16.5.24

Destemido

A perna passa o logro 

o corpo pertence à safra

um estuário invisível apetrecha-se 

na audácia dos homens do mar

como se tudo se contagiasse 

sucessivamente

e deixasse de haver 

causa e consequência. 

O cortejo entoa os versos mudos. 

Os rapazes ateados bolçam despautérios

convocam a loucura liberalizada

e correm pela praça fora

atenazando os mirones que fingem incómodo. 

Ali não há nómadas:

os bancos de jardim estão gastos

tão puídos que deles se diria serem escombros

ou em vias de neles se tornarem.

(Ali não há limões,

exuberantes ou limões apenas).

As pernas traçam uma horizontal 

com um banco do jardim

como se tirassem a bissetriz galanteadora

ao horizonte finito. 

O entardecer 

há de ser a rima a propósito

a luz desmaiada como promessa

de outro dia no cortejo que se abona

no astrolábio dos adultos. 

Injustiças indocumentadas (356)

A palavra dada

é a de maior carestia.

Injustiças indocumentadas (355)

Trair a pátria,

o adultério marcial.

#3152

A luz decantada

sobe ao céu da boca

alimenta o poema singular.  

15.5.24

Figura de estilo

O fogo posto

colhe a ideia hostil

perseguindo a absolvição

um reduto útil onde amanhece a vontade

no estuário que ornamenta a janela. 

 

Fogem os vultos assanhados

espartilhando as luzes desmaiadas

contra as injúrias que soam no silêncio

vazio o coldre participado de mentiras

no caudal estrénuo que inventa a noite. 

 

Em sentido

os mecenas visitam a fome inaugurada

juram a fome sem número

na moldura das mãos caiadas.

#3151

Juro:

sonhar,

acima das possibilidades. 

14.5.24

O assunto

O assunto 

olha de lado

desconfiado

maroto

receoso 

que o mudem de lugar

e que passe a ser

página datada

féretro

de toda a validade 

passada. 

O assunto

quer ser centrípeto

quer achas contínuas

para não deixar 

de estar ateado

e sempre, 

sempre

ser assunto. 

O assunto 

não tem medo 

do que haveria de ser

o medo maior:

que de tanta presença

de tão quotidiano se tornar

seja reduzido 

à indiferença.

Injustiças indocumentadas (354)

O ilegível

tornou-se

elegível

contra o anátema

do ininteligível.

#3150

Fujam, patrícios:

do  nevoeiro cheio vem

o almirante da gravata

pronto para a bravata.

13.5.24

Desfiladeiro

Em cada partida

as cinzas do futuro

a escotilha 

que esconde a janela

no pântano impróprio

o estremecimento 

onde findam os pesadelos

arcaicos. 

 

No paço que foge das vozes

o silêncio povoado de claraboias

irrompe com ferocidade

amotina-se com os punhais dormentes

no miradouro que espia as almas

incapaz de ser a sua própria 

atalaia. 

 

As juras são escombros

a decomposição anotada em ardósia

um gato a fugir do cão rival

as ondas desatadas na planta da piscina

ou a maré propositadamente baixa

o autógrafo gasto no chão possuído

pelos deuses arrancados 

aos tronos. 

 

Os garfos coreografados 

falam para a orquestra

não lhe dizem estar desafinada

os olhos desamestrados são peritos

em subjetividade

o mar imenso onde se esconde 

a hermenêutica que desaloja

o sentido único das palavras. 

 

Nos maios sucessivos

em véspera de um estio castigador

as malas são esconderijos

uma hibernação do avesso

antes que a frívola volúpia dos versos

contamine as mãos por inaugurar

o vento desassisado se amontoe

na garganta curada.