11.5.25

#4088

Não apagues o dia 

com tinta-da-china:

o dia não abraça 

a tua vergonha.

10.5.25

#4087

O refúgio que o olhar procura 

para saber que não se purifica.

9.5.25

Nuvens de desenvolvimento vertical (ou o presságio da tempestade)

O rosto impassível

trava o silêncio na dobra da noite

sabe que o luar não é linguagem

nem os pesadelos são idioma.

 

Se houvesse vultos sem freio

e as sombras avinagrassem a pele

seríamos apenas parcas silhuetas

à mercê da primeira tempestade.

 

Mas não é disso que nos compomos:

 

singulares embaixadores da estética

povoamos palavras com metáforas

como se fosse preciso disfarçá-las

antes que sejam hipotecadas

pelos mastins que roubam os dias às pessoas.

#4086

Vamos juntos à medula do dia 

e o dia espera que por ele 

sejamos tutores das coisas maiores.

8.5.25

#4085

Junto ao estuário 

os braços admirados; 

a bondade começa 

nos lugares bucólicos.

7.5.25

Serviçal

Não é do descongelar das almas 

que precisamos;

é de subir ao promontório 

colher a maresia distante

e não fica sitiado pela indiferença

pelo regime estéril dos rostos sem nome

ou dos lugares demandados

como se estivéssemos em hibernação.

Precisamos

de poemas sem regras

sem temermos os juízos implacáveis

dos eruditos que a si chamam a chancela.

Precisamos disso mesmo 

um módico de manhã que se insinua

com a luz clara

um curativo para o olhar

tão embaciado depois dos contratempos

que acham nome no estatuto do mundo.

#4084

A pele porosa

procura um arnês 

tem medo 

que o dia seja um precipício.

6.5.25

Fracos e orações (e a História)

A rota dos fracos

os que fraquejam sem medo

e de si se dão à fúria do tempo

e das pessoas

matérias válidas 

no esplendor de bibliotecas ajardinadas

eles 

que não se emancipam da multidão

e levam os vultos em trelas distantes

enquanto a noite se assenhoreia dos baldios

e os transforma em vestimentas dignas

de príncipes. 

 

E dizem:

os outros estão gastos

e essa fraqueza ninguém convoca

como se os flocos de neve 

metamorfoseassem o chão sujo

tão célere a precisar do disfarce da neve

sobre si.

 

Os outros estão gastos:

ou então somos nós 

puídos da cabeça aos pés

em poses arrevesadas

ensebando a sela onde lugar têm

as palavras arrancadas a dicionários. 

Servem-se os chapéus

como gare para que o mundo,

se desabar com fragor,

caia ao lado deles. 

 

Talvez acreditem em acasos. 

 

Ou 

na boa fortuna dos lugares em decadência 

e sabemos então

que a decadência 

não contraria o despojamento.

Injustiças documentadas (534)

Vendo bem, 

(até) vendo bem.

#4083

A manhã grisalha 

demora-se 

no vazio do tempo.

5.5.25

Régua e esquadro

Por artes de um mal-entendido

assentei o cimento bem entendido

antes que fosse noite 

e já não fossem horas

de expediente. 

Tropeçava na dicção:

ele há palavras que se enrolam na língua

 

(subsidiariedade, 

inadimplemento, 

ressarcir,

ó malditas palavras anti poéticas)

 

mas antes fosse essa a textura dos males

do que serem ideias enredaras nos interstícios 

do pensamento. 

 

Antes que as fizesse passar pelos semáforos,

acendia-as:

queria saber ao que vinham

o que podiam deixar para memória futura

entre despojos e desperdícios

que adjetivos se atiravam 

para o ringue onde se antepunham:

ah, palavras rivais

pensamentos forjados na régua e esquadro

da antítese

sumarenta safra dos frutos videntes

goela por onde espreita a matriz do outro

à qual damos a mão

em vez de um não.

#4082

Os relógios tatuados até ao magma 

é deles que somos reféns sem rastilho.

4.5.25

#4081

Dizem os segredos 

que segredos há 

que não se querem como tal.

3.5.25

Injustiças documentadas (533)

O futuro adeus,

pertence.

#4080

Um suspiro

murmura no canto da boca: 

é a paciência quase a prescrever.

2.5.25

Múmia

A mortalha pendida

Acende o rosto do futuro.

 

Sobre as pedras avulsas

o xisto vago amoeda a fala

e os almocreves enlutam-se.

 

Oxalá seja estuário

o corso que se aviva 

num folião domingo,

ou será corsário

sedento de vítimas à espera

da sua espada.

Injustiças documentadas (532)

[Para a História de um apagão]

 

De Espanha 

nem boa energia 

nem energia nenhuma.

#4079

O fiasco do fisco 

formou uma fosca fossa 

que aferroou os farsantes.

1.5.25

#4078

As minhas mãos são olhos 

que aprendem a ser anfitrião 

em teu corpo.

30.4.25

Fita-cola

O furacão devorou o dia manso

o ganso dançou no paredão

 

o eremita orou no jardim

o arlequim chorou com a comandita

 

o charlatão levava a mentira no calço

o sonso vertia ranho de latão

 

a senhorita namoriscava com o jasmim

o querubim adormecia no colo da safadita

 

o fanfarrão escarnecia do tanso

o manipanso discordava do beberrão.

#4077

O dote que é dádiva 

ou, em imersão da alma, 

uma maldição.

29.4.25

Idioma

É preciso 

patrulhar o esquecimento

tirar o sal das bocas semânticas

olhar pelo avesso dos espelhos adiados

convencer os agiotas que têm a cabeça a prémio

ordenar aos ajaezados eruditos

que traduzam as falas gongóricas

amanhecer de sangue cheio

lembrar as nuvens onde repousa o futuro

misturar idiomas à volta de vírgulas rebeldes

contemplar a lua que bebe do céu

tirar as medidas que antecipam o estuário

e dizer aos que ouvem

exatamente aquilo 

que não querem 

ouvir. 

Injustiças documentadas (531)

Tecnologia, 

de ponta 

e mola.

#4076

Não fugimos do medo 

nem fingimos 

que dele não somos reféns.

28.4.25

#4075

Neste idioma que não dorme 

a vacina contra a mudez 

a moratória da solidão.

27.4.25

#4074

Adiamos, enfim, o adiamento 

hoje é o dia em que se cumpre 

o presente.

26.4.25

#4073

Do sumo da tangerina 

a viagem não deletéria 

que aclama um mistério.

25.4.25

#4072

Dispensamos padrões;

já somos penhores

da bússola interior.

24.4.25

Apostilha da concórdia (e corruptela de anexins)

Dádivas deste jeito

eram rarefeitas

e as pessoas rimavam com seu pasmo

aprendendo, muitas, o que se diz dizer

do insólito 

depois de o dicionário consultarem. 

Outros, desconfiados,

tecem um jogo de palavras

oxigenando pobreza e esmola

e, ó palco sem surpresa,

desconfiança. 

Metendo a sexta na desconfiança

travam uma perna atrás

quase seguros que a dádiva traz

 – voltando aos lugares-comuns 

terçados por anexins –

algo que pressente 

um líquido

e a boca de uma ave. 

Mas às dádivas não se diga não 

pois o idioma vulgar já consagrou 

que a um equídeo de oferta 

não se inspeciona a dentadura. 

E a ralé

(Régio, apud. Marcelo)

convencida será

pois em pior estado não estará

no pulsar das regalias outorgadas. 

Pois que visto pela lente desfocada 

dos filantropos,

sempre se poderia invocar a seu favor

que tanto pecam por albergar o canídeo

como em espantá-lo para incerto paradeiro. 

E como já impetram a moral da história

diga-se

em abono de todos

agraciados e filantropos 

que a concórdia 

é sempre a melhor moeda.

#4071

Na fotografia 

vejo através

de outros olhos.