31.8.20

#1716

[Crónicas do vírus, CCLXXXVII]

 

Um estaleiro

virado do avesso,

ou o palco do fingimento

em proveito dos mandantes?

Batismo de morte

A espada não tem paradeiro,

embriagados os guerreiros candidatos. 

É o que narra a maresia

desfazendo o entorpecimento tardio

no rescaldo da boémia ilegível. 

As armas

fundeadas num cívico letargo

desembaraçam os sonhos 

– os sonhos que asfixiam

o sono doloroso dos guerreiros. 

Na varanda de uma pousada

(antes de açambarcada)

a penúria dos modestos estivera selada

num azulejo pendido sobre a janela. 

Os guerreiros 

perderam o paradeiro da sobriedade. 

Só sabem contar a vilanagem

e à sua conta

industriam o desenho plúmbeo

que só conta com personagens vultos. 

Ninguém sabe

que sangue vertem

nas veias da terra.

Só sabem

que infecta fica a terra

um sarcófago indigente 

onde não coabita a indulgência. 

#1715

[Crónicas do vírus, CCLXXXVI]

 

Um imenso estaleiro

de pernas para o ar

e as pessoas fingem que não.

30.8.20

#1714

[Crónicas do vírus, CCLXXXV]

 

Como um castelo de cartas

consumido

em sua fragilidade.

29.8.20

Rede de segurança

Era do tempo 

em que as palavras 

se aninhavam em mel. 

O rosto 

subia pelos dedos 

e as paredes 

despiam-se de medo. 

Talvez o entardecer 

seja a rima por onde entra 

o estuário. 

A melodia, 

trago-a na pele, 

à espera.

28.8.20

As rugas em forma de xisto

Já não lambia

as feridas;

só as cicatrizes.

 

Jã não era ácido

o sabor 

vindo à boca.

 

Sentia-se 

como um urso

fora das montanhas

e do mel arredado

uma orfandade disfarçada.

 

Ao menos

não se considerava

amestrado.

 

Não era

como os distintos, exemplares 

exemplares

puídos sem saberem

suas feridas baças

sob uma castração muda.

 

As cicatrizes

podiam ser olhadas

como tatuagens.

#1713

[Crónicas do vírus, CCLXXXIV]

 

As pessoas

não mudaram

só por os rostos

estarem embaciados.

(Hino panglossiano – bis repetita)

#1712

[Crónicas do vírus, CCLXXXIII]

 

Os rostos

não deixam de ser belos

só por estarem embaciados.

(Hino panglossiano) 

27.8.20

#1711

[Crónicas do vírus, CCLXXXII]

 

Ó mercadores de patranhas:

depois da teoria do milagre

salgam-nos com a teoria 

um passo atrás-dois à frente.

Desapressadamente

O templo do tempo:

imperadores bufos

dedicam-se à escatologia

e escrevem com a boca negra

o desmentido do sonho.

 

É o tempo que pede templo

para os apoderados sem remédio

verterem suas preces

(à falta dos reprimidos prantos)

e persistirem na sua oclusão,

recusando-se.

 

Ou:

o templo tem tempo

que o tempo não se esgota

na procrastinação dos mestres

nem obedece

ao fastio dos esquecidos:

melhor será

que se enxugue o suor do tempo

por dentro de sonhos gongóricos.

 

O melhor,

ainda,

é o tempo 

não ter templo.

#1710

[Crónicas do vírus, CCLXXXI]

 

Estes morígeros profetas

que nos apascentam

na sela da nossa distração.

26.8.20

Natureza morta

O país

da natureza morta

tem escondidos

os pais

das várias naturezas mortas.

Todos merencórios,

não vá o sal ingente

dobrá-los

sobre o peso do nevoeiro.

Já se dizia

em infusão sebastiânica

que um remédio

(se não um remendo)

seria o selo da posteridade.

A natureza

morta

continua à espera.

#1709

[Crónicas do vírus, CCLXXX]

 

Um campo minado 

– e é preciso indagar

sobre o (f)autor das minas?

#1708

[Crónicas do vírus, CCLXXIX]

 

Um campo minado 

– e não se sabe

quem fermentou as minas.

25.8.20

Madrigal

Não digas

“matar o tempo”

não vá o tempo

em braço de ferro

condenar-te

ao malogro.

Pois se eleges

este como o espaço teu

que saibas dotá-lo 

de uma cartografia.

E se em remissão

deres ornamento à fala

da gramática

cuida não haver dano.

Pois a gramática

é a cartografia da fala

e uma certa unção

do tempo.

#1707

[Crónicas do vírus, CCLXXVIII]

 

Máscaras

enquanto 

em espera

a vacina.

24.8.20

Bife tártaro

Uma espécie de bife tártaro:

sobre finas camadas

o fino pensar

que não se destina às águas pluviais.

Se o certo se toma por incerto

não é por contumaz lucidez.

Ora

se em vozes escamosas

as candeias forem acesas

não será por defeito:

eruditos

os lupanares exortam à esquerda

 

(aviso ao leitor:

sem conotação política)

 

e o guiador espera por incentivo

para saber para onde virar.

Não se esqueça

da mostarda de Dijon,

o precipício inesperado

para o reinventado manual

do bife tártaro.

#1706

[Crónicas do vírus, CCLXXVII]

 

De um leito semântico

o torrencial desacerto

das metáforas.

23.8.20

#1705

[Crónicas do vírus, CCLXXVI]

 

As celebrações

não importam.

(A menos que o fingimento

seja verbo fecundo.)

22.8.20

#1704

[Crónicas do vírus, CCLXXV]

 

O selo do tempo:

“tenho saudade de te dar um abraço”.

(Ouvido num restaurante)

21.8.20

Sobra de esforço

Arranquem-me o sal do tempo

façam cornucópias em vez de versos

abundem o dia com os rostos sibilinos

e encomendem

ao tempo pretérito

o peito pétreo onde se dissolve a angústia. 

 

Tragam à manhã as sílabas uivadas

no dorso de violinos fantasmas

e digam,

digam, 

como se não houvesse nada mais por dizer,

que não são precisos mastros

nem obeliscos matriciais

ou demónios em vão de escada 

para avivar a cal deitada nas cicatrizes. 

 

Pois da dor

cultiva-se

em forma de memória futura

a dieta em que medra 

o perene tirocínio. 

#1703

[Crónicas do vírus, CCLXXIV]

 

Quando se pede unidade

cancela-se a política

(e faz-se, surdamente, política).

20.8.20

#1702

[Crónicas do vírus, CCLXXIII]

 

Um bocejo da alma

no gerúndio

da transfiguração sem rosto.  

19.8.20

S. Lourenço da Galafura

Marcada à mão do Homem, 

a moldura do xisto 

afinal permeável. 

 

Sobra à paisagem 

a pauta imorredoira 

do tempo 

que não se cansa.

18.8.20

#1701

[Crónicas do vírus, CCLXXII]

 

O medo

traduzido na decrepitude

da condição humana.

17.8.20

Pendente

O dente de leão

já não morde.

O ocaso miscigena-se

na noite.

Os versos emprestam-se

a outra latitude.

O inquérito

procura respostas.

Há um odor a suspensão do tempo

enquanto os touros agradecem o caos

e os usos regressaram ao internato.

Ah!

Se ao menos os pontos de interrogação

não fossem facas desvairadamente espetadas

se a criação do tempo vindouro

não estivesse hipotecada às algemas

dos viciados nos costumes

se os verbos não fossem uma imagem puída

se os trota mundos 

bebessem a seiva dos lugares 

e não guardassem para si o fim da função;

se ao menos

o menos não fosse um modesto pecúlio

e do módico houvesse farta safra,

os lápis desenhavam os deslimites de tudo

e os sacerdotes compungidamente pesarosos

lamentariam

“os tempos foram à diferença

e nós não conhecemos esse molde”.

E o fim de tudo

não seria um fim em si mesmo

mas a exegese das almas infrequentadas

o tirocínio permanente

a dúvida finalmente metódica

e as palavras desembrulhadas 

num creme de pasteleiro reinventado

para gáudio

dos eternamente crianças

dos que não se escondem 

da matriz das interrogações em contínuo.

 

#1700

[Crónicas do vírus, CCLXXI]

 

Como a névoa 

que se abraça ao estuário

a palavra entorse 

no viés do futuro.

16.8.20

#1699

[Crónicas do vírus, CCLXX]

 

Das bocas embotadas

palavras (pela) metade.

15.8.20

Comoção cerebral

Entro no sal do mar

a água vencida no dorso

por entre sereias inventariadas

na boca da espuma

e um beijo tirado no acaso.

Durmo 

com a voz do salitre

a murmurar nas costas do sonho. 

Levito as mãos simétricas

pode ser que saiba escrever

o nome do mar. 

Enquanto espero

que o mar ganhe um nome

tomo as sílabas dos versos noturnos

o diadema inesperado dos druidas sem rosto. 

Sem rosto,

os druidas,

como sem nome, 

o mar 

– e ambos desatam a combustão

em que se dissolvem

num mapa embebido em nomes.

#1698

[Crónicas do vírus, CCLXIX]

 

Nem o tempo suspenso

adiou

o Homem em vias de envelhecimento.

14.8.20

Manual da boa arte de fazer parágrafos

Ninguém te ensinou

a fazer parágrafos?

 

Ainda protestou:

 

as regras estão abertas

à dissidência.

 

(O protesto não teve

convicção)

 

Aprender

a fazer parágrafos:

não têm de corresponder

a uma frase;

 

(a menos 

que se queira

encher páginas)

 

não têm de corresponder

a páginas inteiras.

 

(a menos

que se queira

desmotivar o leitor

e com o revólver 

enfiar um tiro no pé)

 

Quando aprendi a ler

ensinaram-me 

que a muda de parágrafo acontece

por alturas da mudança de assunto. 

Admito

 

(porque 

o princípio geral da tolerância

o determina)

 

que o tempo entretanto

tenha orquestrado nova regra,

ou 

que combinações estéticas

ou 

apenas o livre arbítrio de quem escreve

sejam o aval 

de uma nova regra. 

 

Ainda vou tirar a limpo

que não devia ter insinuado

que não sabes dominar 

parágrafos.

#1697

[Crónicas do vírus, CCLXVIII]

 

Profetas,

por defeito.

13.8.20

O dote dos demenciais

A arenga sem paradeiro

no improviso mosto pactuado

contra as invetivas

contra 

os servos da contenda. 

Contavam-se espingardas

 

(diziam 

estultamente 

os exegetas de batalhas

como se não fosse humana 

a carne devorada 

em combate);

 

não se faz a conta

aos muitos litros de sangue

que podiam ser eflúvio de corações,

ou às certidões derradeiras 

friamente lavradas,

ou aos lugares que foram

rasas campas anónimas,

ou às homenagens sem nomes. 

Não me convençam

que da humanidade 

fica um legado mirífico:

quem transforma 

diferença em desopinião

divergência em dissidência

preconceito em intolerância

desarmonia em obus

merece 

o opróbrio 

como selo para a posteridade. 

Não me digam

que os predicados 

brandidos pelos antropocêntricos

se traduzem em armas terçadas 

– não me digam

que superior é esta espécie 

entre as demais,

paradigmática escultura do luzimento,

os seus componentes:

estilistas do belo

artesãos do admirável

lídimos poetas de estrofes arrebatadas

cultores da fina sensibilidade

artistas que sagram a vida

e temem a morte. 

Não me digam

que a História vive 

escondida nas suas sombras.

#1696

[Crónicas do vírus, CCLXVII]

 

O que perdemos

foi o que nunca tivemos.

12.8.20

Fumeiro

Na minha cabeça

Madagáscar

rima com

Gibraltar.

 

É tão lúcido

como aquela frase feita

 

“éramos tão felizes e não sabíamos.”

 

No fundo,

nunca saberá

se o caviar vem do esturjão

ou 

se é obra de um intrujão.

#1695

[Crónicas do vírus, CCLXVI]

 

A interminável História

de paradoxos

projeta-se no futuro: 

em vez de rumo com remo

tribalismo compulsivo.

11.8.20

#1694

[Crónicas do vírus, CCLXV]

 

Os vultos seráficos

consomem a lucidez

que só foi delusão.

Otimismo antropológico

São boas pessoas:

diz o termómetro

do incorrigível confiável

na sua escala de avos

que junta centímetros

à linhagem das pessoas.

São boas, as pessoas:

responde o outro,

em juramento

de psicologia positiva

mas não

de ingenuidade à prova de veneno.

Ou ainda,

no laboratório

das quase metafísicas experiências,

em pleno confisco 

do agreste, pisado chão:

são pessoas,

boas.

E foram os três 

de mão dada

sonhos fora

sonhando 

com um sonho madrigálico.

#1693

[Crónicas do vírus, CCLXIV]

 

(Por causa da mortandade num lar em Reguengos de Monsaraz)

 

Um pesado cheiro

a terceiro mundo.

10.8.20

Paradeiro do Verão

Aguardo

o rumor estival

na dobra do agosto

tépido.

 

Aguarda-me

a dança sem servidão

no estipêndio do verso

trivial.

 

Aguarda-se

o trovejar impreciso

na véspera das nuvens

veementes.

 

Aguardem

a espuma iracunda

no dealbar das marés-vivas

destemperadas.

 

Aguardo

a lente rudimentar

no pináculo de um Verão

esforçado.

 

Aguarda-me

a promessa de Outono

no fingimento do corpo

trespassado.

#1692

[Crónicas do vírus, CCLXIII]

 

Pródigos,

estes bizarros tempos,

em feiticeiros 

que adivinham o passado.

9.8.20

Fora de jogo

De todas as rochas

o soro vertido

num mar sem marés. 

 

Tinjo as lágrimas

com o doce odor 

da madrugada;

uma borboleta anuncia-se

no rogo do estanho de uma estrela.

 

De todas as rochas

cubro a boca com silêncio;

o resto 

é a maresia 

que rima com outono.

8.8.20

#1691

[Crónicas do vírus, CCLXII]

Quantas 

encomendas de passado

foram destinadas

ao futuro?

A destempo

Dizia

“quando fui para o primeiro ano”

como se o tempo 

fosse um lugar.

7.8.20

Dia de beca

Hoje é dia de beca. 

O cortejo dos notáveis

(também dão 

pelo epíteto de escol),

pátria de eruditos

a beca 

a prova do privilégio. 

Dia de beca:

o cortejo faz-se 

vagaroso

no pé ante pé sincopado

para dar tempo à casta

de notarem como são reverenciados

pelos pajens situados

nos arrabaldes. 

Da beca se diz

ser avantajada indumentária

para dar largas 

ao eu XXL

ou 

ao eu que não cabe 

em tanta prosápia.

Uns titulares da beca

provam o privilégio

pelo gongórico falar

– o gongórico falar,

distintivo dos titulares da beca.

Outros 

nem sabem dizer

(se à medula da honestidade forem)

como estadeiam a beca 

– assim se vulgarizando a beca 

na azeda melancolia 

dos gongóricos.

Hoje

é dia de beca

e o estabelecimento fechou 

para balanço.

#1690

[Crónicas do vírus, CCLXI]

 

Por sobre as sombras

as palavras distraídas

num choro emudecido.

6.8.20

Dia de Baco

Hoje é dia de Baco.

Assim vai o imperador

já sem o anzol

que o destronou do mar

e antes que venha uma trovoada

despejar confetti 

e um pedaço de Carnaval.

Dia de Baco

deus único na galeria dos ilustres

ou mnemónica para o vinho dadaísta

em molduras estilhaçadas

o ouro a transbordar

das bocas refasteladas

do arco fecundo da vida diletante.

Hoje 

é dia de Baco

e vou à cave fazer perguntas

com a lanterna oxidada entre dentes

antes que outros demónios

ganhem a aposta. 

#1689

[Crónicas do vírus, CCLX]

 

Nunca como agora

se impetrou

para que o tempo 

andasse para a frente.

5.8.20

Dia de boca

Hoje é dia de boca.

(A seguir ao dia de boda

é o dia da boca.)

A boca

da fala itinerante

que apura o palácio não mundano

e destrona o silêncio

que escraviza.

Dia da boca

que fala pelos sentidos

com as sílabas cuidadas

em palavras avulsamente 

confecionadas.

Hoje é dia de boca:

da boca-sexo

que se cola ao desejo do mundo

a língua que entroniza o corpo

a boca-sexo que abriga o sexo quente

e sabe contar com a outra boca-sexo

para um coroar olimpicamente 

extático.

Hoje

é dia de boca

e não é da boca

que faz morrer o peixe:

é da boca-úbere

onde se congemina 

o verbo não esporádico

em juras não segregadas

no sexo emoldurado

num bilhete-postal intemporal.

#1688

[Crónicas do vírus, CCLIX]

 

Entre apocalipse

e a sua mera promessa

a navegação por estima.

4.8.20

Dia de boda

Hoje é dia de boda.

Dia de boda

é quando quisermos

no festim perene

em que se ambienta

o nosso pulsar uníssono.

Pois somos nós,

no xadrez da vontade,

que dizemos ao dia

que é credor de boda.

O dia obedece.

Hoje

a boda tem dia

como teve ontem

e será o caso de amanhã.

Hoje é dia de boda

e nós temos a homenagem

que o mundo empenha.

#1687

[Crónicas do vírus, CCLVIII]

 

Não damos

saltos no tempo

por avareza do medo.

#1686

[Crónicas do vírus, CCLVII]

 

Pelo andar do mosto

este não é ano

para colheita de grande cepa.

3.8.20

Dia de bala

Hoje é dia de bala

(devo somar 

ponto de interrogação).

Dia de bala

em palco onde se movem

vultos exacerbados

que levitam na exacerbação

contra a exacerbação que detestam.

E outro critério não lhe praz

se não

terçar com as mesmas armas,

como se fosse de boa linhagem

a sua exacerbação

contra a exacerbação que detestam.

Dia de bala

ao sentir a pulsão

de submeter

os exacerbados de todas as extrações

à experiência que os motiva.

Ou então,

melhor seria deixá-los

exacerbados contra exacerbados

numa peleja autofágica

sacrificando-se mutuamente

num pútrido teatro

onde o sangue derramado

tingido viria com o odor fétido

dos visionários que não enjeitariam

desenhar o futuro pelo pêndulo do passado.

Hoje é dia de bala.

Mas não sou eu que as trago

no coldre em mim vazio.

 

#1685

[Crónicas do vírus, CCLVI]

 

Pela maré-baixa,

um homem na faina dos mexilhões.

A fragilidade dos mexilhões

é como a fragilidade dos Homens

na maré-alta do vírus.

2.8.20

#1684

[Crónicas do vírus, CCLV]

 

Há intermitências

em que tudo parece

como dantes.

Dia de bola

Hoje é dia de bola

(Hoje é domingo).

Não fico preso 

aos versos de Césariny

(parola e Madame Blanche)

porque hoje é 2020

(não quer dizer

que a parola seja de antanho

e a Madame Blanche 

esteja em vias de extinção).

Se hoje é dia de bola

incandescem as fúrias nativas

e o arrazoado vai descer

pela rua onde campeia o chinelo. 

É dia de bola

e ao deitar

nem todos serão patriarcas

do contentamento:

uns com o azedo sabor da derrota

outros com o insosso travo do empate

outros ainda

porque nunca aprenderam 

o namoro com a vitória. 

Hoje 

a bola teve o seu dia

em véspera de os mortais regressarem

aos mastins dias da modorra.

1.8.20

Dia de bula

Hoje é dia de bula. 

A mortificação suspensa

ditada pelo azimute lúcido

das vulgatas e outros portos

no poejo militante 

açambarcado pela primavera. 

Dia de bula

nos corredores sentidos

onde peões se agigantam

e o verbo sai à rua,

democrático 

e indigente. 

#1683

[Crónicas do vírus, CCLIV]

 

Extinguiu-se

a bruxuleante luz

de agosto.