[Crónicas do vírus, CCLXXXVII]
Um estaleiro
virado do avesso,
ou o palco do fingimento
em proveito dos mandantes?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CCLXXXVII]
Um estaleiro
virado do avesso,
ou o palco do fingimento
em proveito dos mandantes?
A espada não tem paradeiro,
embriagados os guerreiros candidatos.
É o que narra a maresia
desfazendo o entorpecimento tardio
no rescaldo da boémia ilegível.
As armas
fundeadas num cívico letargo
desembaraçam os sonhos
– os sonhos que asfixiam
o sono doloroso dos guerreiros.
Na varanda de uma pousada
(antes de açambarcada)
a penúria dos modestos estivera selada
num azulejo pendido sobre a janela.
Os guerreiros
perderam o paradeiro da sobriedade.
Só sabem contar a vilanagem
e à sua conta
industriam o desenho plúmbeo
que só conta com personagens vultos.
Ninguém sabe
que sangue vertem
nas veias da terra.
Só sabem
que infecta fica a terra
um sarcófago indigente
onde não coabita a indulgência.
[Crónicas do vírus, CCLXXXVI]
Um imenso estaleiro
de pernas para o ar
e as pessoas fingem que não.
Era do tempo
em que as palavras
se aninhavam em mel.
O rosto
subia pelos dedos
e as paredes
despiam-se de medo.
Talvez o entardecer
seja a rima por onde entra
o estuário.
A melodia,
trago-a na pele,
à espera.
Já não lambia
as feridas;
só as cicatrizes.
Jã não era ácido
o sabor
vindo à boca.
Sentia-se
como um urso
fora das montanhas
e do mel arredado
uma orfandade disfarçada.
Ao menos
não se considerava
amestrado.
Não era
como os distintos, exemplares
exemplares
puídos sem saberem
suas feridas baças
sob uma castração muda.
As cicatrizes
já
podiam ser olhadas
como tatuagens.
[Crónicas do vírus, CCLXXXIV]
As pessoas
não mudaram
só por os rostos
estarem embaciados.
(Hino panglossiano – bis repetita)
[Crónicas do vírus, CCLXXXIII]
Os rostos
não deixam de ser belos
só por estarem embaciados.
(Hino panglossiano)
[Crónicas do vírus, CCLXXXII]
Ó mercadores de patranhas:
depois da teoria do milagre
salgam-nos com a teoria
um passo atrás-dois à frente.
O templo do tempo:
imperadores bufos
dedicam-se à escatologia
e escrevem com a boca negra
o desmentido do sonho.
É o tempo que pede templo
para os apoderados sem remédio
verterem suas preces
(à falta dos reprimidos prantos)
e persistirem na sua oclusão,
recusando-se.
Ou:
o templo tem tempo
que o tempo não se esgota
na procrastinação dos mestres
nem obedece
ao fastio dos esquecidos:
melhor será
que se enxugue o suor do tempo
por dentro de sonhos gongóricos.
O melhor,
ainda,
é o tempo
não ter templo.
[Crónicas do vírus, CCLXXXI]
Estes morígeros profetas
que nos apascentam
na sela da nossa distração.
O país
da natureza morta
tem escondidos
os pais
das várias naturezas mortas.
Todos merencórios,
não vá o sal ingente
dobrá-los
sobre o peso do nevoeiro.
Já se dizia
em infusão sebastiânica
que um remédio
(se não um remendo)
seria o selo da posteridade.
A natureza
morta
continua à espera.
Não digas
“matar o tempo”
não vá o tempo
em braço de ferro
condenar-te
ao malogro.
Pois se eleges
este como o espaço teu
que saibas dotá-lo
de uma cartografia.
E se em remissão
deres ornamento à fala
da gramática
cuida não haver dano.
Pois a gramática
é a cartografia da fala
e uma certa unção
do tempo.
Uma espécie de bife tártaro:
sobre finas camadas
o fino pensar
que não se destina às águas pluviais.
Se o certo se toma por incerto
não é por contumaz lucidez.
Ora
se em vozes escamosas
as candeias forem acesas
não será por defeito:
eruditos
os lupanares exortam à esquerda
(aviso ao leitor:
sem conotação política)
e o guiador espera por incentivo
para saber para onde virar.
Não se esqueça
da mostarda de Dijon,
o precipício inesperado
para o reinventado manual
do bife tártaro.
[Crónicas do vírus, CCLXXVI]
As celebrações
não importam.
(A menos que o fingimento
seja verbo fecundo.)
[Crónicas do vírus, CCLXXV]
O selo do tempo:
“tenho saudade de te dar um abraço”.
(Ouvido num restaurante)
Arranquem-me o sal do tempo
façam cornucópias em vez de versos
abundem o dia com os rostos sibilinos
e encomendem
ao tempo pretérito
o peito pétreo onde se dissolve a angústia.
Tragam à manhã as sílabas uivadas
no dorso de violinos fantasmas
e digam,
digam,
como se não houvesse nada mais por dizer,
que não são precisos mastros
nem obeliscos matriciais
ou demónios em vão de escada
para avivar a cal deitada nas cicatrizes.
Pois da dor
cultiva-se
em forma de memória futura
a dieta em que medra
o perene tirocínio.
[Crónicas do vírus, CCLXXIV]
Quando se pede unidade
cancela-se a política
(e faz-se, surdamente, política).
Marcada à mão do Homem,
a moldura do xisto
afinal permeável.
Sobra à paisagem
a pauta imorredoira
do tempo
que não se cansa.
O dente de leão
já não morde.
O ocaso miscigena-se
na noite.
Os versos emprestam-se
a outra latitude.
O inquérito
procura respostas.
Há um odor a suspensão do tempo
enquanto os touros agradecem o caos
e os usos regressaram ao internato.
Ah!
Se ao menos os pontos de interrogação
não fossem facas desvairadamente espetadas
se a criação do tempo vindouro
não estivesse hipotecada às algemas
dos viciados nos costumes
se os verbos não fossem uma imagem puída
se os trota mundos
bebessem a seiva dos lugares
e não guardassem para si o fim da função;
se ao menos
o menos não fosse um modesto pecúlio
e do módico houvesse farta safra,
os lápis desenhavam os deslimites de tudo
e os sacerdotes compungidamente pesarosos
lamentariam
“os tempos foram à diferença
e nós não conhecemos esse molde”.
E o fim de tudo
não seria um fim em si mesmo
mas a exegese das almas infrequentadas
o tirocínio permanente
a dúvida finalmente metódica
e as palavras desembrulhadas
num creme de pasteleiro reinventado
para gáudio
dos eternamente crianças
dos que não se escondem
da matriz das interrogações em contínuo.
[Crónicas do vírus, CCLXXI]
Como a névoa
que se abraça ao estuário
a palavra entorse
no viés do futuro.
Entro no sal do mar
a água vencida no dorso
por entre sereias inventariadas
na boca da espuma
e um beijo tirado no acaso.
Durmo
com a voz do salitre
a murmurar nas costas do sonho.
Levito as mãos simétricas
pode ser que saiba escrever
o nome do mar.
Enquanto espero
que o mar ganhe um nome
tomo as sílabas dos versos noturnos
o diadema inesperado dos druidas sem rosto.
Sem rosto,
os druidas,
como sem nome,
o mar
– e ambos desatam a combustão
em que se dissolvem
num mapa embebido em nomes.
Ninguém te ensinou
a fazer parágrafos?
Ainda protestou:
as regras estão abertas
à dissidência.
(O protesto não teve
convicção)
Aprender
a fazer parágrafos:
não têm de corresponder
a uma frase;
(a menos
que se queira
encher páginas)
não têm de corresponder
a páginas inteiras.
(a menos
que se queira
desmotivar o leitor
e com o revólver
enfiar um tiro no pé)
Quando aprendi a ler
ensinaram-me
que a muda de parágrafo acontece
por alturas da mudança de assunto.
Admito
(porque
o princípio geral da tolerância
o determina)
que o tempo entretanto
tenha orquestrado nova regra,
ou
que combinações estéticas
ou
apenas o livre arbítrio de quem escreve
sejam o aval
de uma nova regra.
Ainda vou tirar a limpo
que não devia ter insinuado
que não sabes dominar
parágrafos.
A arenga sem paradeiro
no improviso mosto pactuado
contra as invetivas
contra
os servos da contenda.
Contavam-se espingardas
(diziam
estultamente
os exegetas de batalhas
como se não fosse humana
a carne devorada
em combate);
não se faz a conta
aos muitos litros de sangue
que podiam ser eflúvio de corações,
ou às certidões derradeiras
friamente lavradas,
ou aos lugares que foram
rasas campas anónimas,
ou às homenagens sem nomes.
Não me convençam
que da humanidade
fica um legado mirífico:
quem transforma
diferença em desopinião
divergência em dissidência
preconceito em intolerância
desarmonia em obus
merece
o opróbrio
como selo para a posteridade.
Não me digam
que os predicados
brandidos pelos antropocêntricos
se traduzem em armas terçadas
– não me digam
que superior é esta espécie
entre as demais,
paradigmática escultura do luzimento,
os seus componentes:
estilistas do belo
artesãos do admirável
lídimos poetas de estrofes arrebatadas
cultores da fina sensibilidade
artistas que sagram a vida
e temem a morte.
Não me digam
que a História vive
escondida nas suas sombras.
Na minha cabeça
Madagáscar
rima com
Gibraltar.
É tão lúcido
como aquela frase feita
“éramos tão felizes e não sabíamos.”
No fundo,
nunca saberá
se o caviar vem do esturjão
ou
se é obra de um intrujão.
[Crónicas do vírus, CCLXVI]
A interminável História
de paradoxos
projeta-se no futuro:
em vez de rumo com remo
tribalismo compulsivo.
São boas pessoas:
diz o termómetro
do incorrigível confiável
na sua escala de avos
que junta centímetros
à linhagem das pessoas.
São boas, as pessoas:
responde o outro,
em juramento
de psicologia positiva
mas não
de ingenuidade à prova de veneno.
Ou ainda,
no laboratório
das quase metafísicas experiências,
em pleno confisco
do agreste, pisado chão:
são pessoas,
boas.
E foram os três
de mão dada
sonhos fora
sonhando
com um sonho madrigálico.
[Crónicas do vírus, CCLXIV]
(Por causa da mortandade num lar em Reguengos de Monsaraz)
Um pesado cheiro
a terceiro mundo.
Aguardo
o rumor estival
na dobra do agosto
tépido.
Aguarda-me
a dança sem servidão
no estipêndio do verso
trivial.
Aguarda-se
o trovejar impreciso
na véspera das nuvens
veementes.
Aguardem
a espuma iracunda
no dealbar das marés-vivas
destemperadas.
Aguardo
a lente rudimentar
no pináculo de um Verão
esforçado.
Aguarda-me
a promessa de Outono
no fingimento do corpo
trespassado.
[Crónicas do vírus, CCLXIII]
Pródigos,
estes bizarros tempos,
em feiticeiros
que adivinham o passado.
De todas as rochas
o soro vertido
num mar sem marés.
Tinjo as lágrimas
com o doce odor
da madrugada;
uma borboleta anuncia-se
no rogo do estanho de uma estrela.
De todas as rochas
cubro a boca com silêncio;
o resto
é a maresia
que rima com outono.
Hoje é dia de beca.
O cortejo dos notáveis
(também dão
pelo epíteto de escol),
pátria de eruditos
a beca
a prova do privilégio.
Dia de beca:
o cortejo faz-se
vagaroso
no pé ante pé sincopado
para dar tempo à casta
de notarem como são reverenciados
pelos pajens situados
nos arrabaldes.
Da beca se diz
ser avantajada indumentária
para dar largas
ao eu XXL
ou
ao eu que não cabe
em tanta prosápia.
Uns titulares da beca
provam o privilégio
pelo gongórico falar
– o gongórico falar,
distintivo dos titulares da beca.
Outros
nem sabem dizer
(se à medula da honestidade forem)
como estadeiam a beca
– assim se vulgarizando a beca
na azeda melancolia
dos gongóricos.
Hoje
é dia de beca
e o estabelecimento fechou
para balanço.
Hoje é dia de Baco.
Assim vai o imperador
já sem o anzol
que o destronou do mar
e antes que venha uma trovoada
despejar confetti
e um pedaço de Carnaval.
Dia de Baco
deus único na galeria dos ilustres
ou mnemónica para o vinho dadaísta
em molduras estilhaçadas
o ouro a transbordar
das bocas refasteladas
do arco fecundo da vida diletante.
Hoje
é dia de Baco
e vou à cave fazer perguntas
com a lanterna oxidada entre dentes
antes que outros demónios
ganhem a aposta.
Hoje é dia de boca.
(A seguir ao dia de boda
é o dia da boca.)
A boca
da fala itinerante
que apura o palácio não mundano
e destrona o silêncio
que escraviza.
Dia da boca
que fala pelos sentidos
com as sílabas cuidadas
em palavras avulsamente
confecionadas.
Hoje é dia de boca:
da boca-sexo
que se cola ao desejo do mundo
a língua que entroniza o corpo
a boca-sexo que abriga o sexo quente
e sabe contar com a outra boca-sexo
para um coroar olimpicamente
extático.
Hoje
é dia de boca
e não é da boca
que faz morrer o peixe:
é da boca-úbere
onde se congemina
o verbo não esporádico
em juras não segregadas
no sexo emoldurado
num bilhete-postal intemporal.
Hoje é dia de boda.
Dia de boda
é quando quisermos
no festim perene
em que se ambienta
o nosso pulsar uníssono.
Pois somos nós,
no xadrez da vontade,
que dizemos ao dia
que é credor de boda.
O dia obedece.
Hoje
a boda tem dia
como teve ontem
e será o caso de amanhã.
Hoje é dia de boda
e nós temos a homenagem
que o mundo empenha.
Hoje é dia de bala
(devo somar
ponto de interrogação).
Dia de bala
em palco onde se movem
vultos exacerbados
que levitam na exacerbação
contra a exacerbação que detestam.
E outro critério não lhe praz
se não
terçar com as mesmas armas,
como se fosse de boa linhagem
a sua exacerbação
contra a exacerbação que detestam.
Dia de bala
ao sentir a pulsão
de submeter
os exacerbados de todas as extrações
à experiência que os motiva.
Ou então,
melhor seria deixá-los
exacerbados contra exacerbados
numa peleja autofágica
sacrificando-se mutuamente
num pútrido teatro
onde o sangue derramado
tingido viria com o odor fétido
dos visionários que não enjeitariam
desenhar o futuro pelo pêndulo do passado.
Hoje é dia de bala.
Mas não sou eu que as trago
no coldre em mim vazio.
[Crónicas do vírus, CCLVI]
Pela maré-baixa,
um homem na faina dos mexilhões.
A fragilidade dos mexilhões
é como a fragilidade dos Homens
na maré-alta do vírus.
Hoje é dia de bola
(Hoje é domingo).
Não fico preso
aos versos de Césariny
(parola e Madame Blanche)
porque hoje é 2020
(não quer dizer
que a parola seja de antanho
e a Madame Blanche
esteja em vias de extinção).
Se hoje é dia de bola
incandescem as fúrias nativas
e o arrazoado vai descer
pela rua onde campeia o chinelo.
É dia de bola
e ao deitar
nem todos serão patriarcas
do contentamento:
uns com o azedo sabor da derrota
outros com o insosso travo do empate
outros ainda
porque nunca aprenderam
o namoro com a vitória.
Hoje
a bola teve o seu dia
em véspera de os mortais regressarem
aos mastins dias da modorra.
Hoje é dia de bula.
A mortificação suspensa
ditada pelo azimute lúcido
das vulgatas e outros portos
no poejo militante
açambarcado pela primavera.
Dia de bula
nos corredores sentidos
onde peões se agigantam
e o verbo sai à rua,
democrático
e indigente.