31.1.23

O corpo

O corpo 

com a sua maresia

atravessa o equador

não precisa de capitães

que o adestrem no astrolábio

o corpo que amanhece

no fuso desacertado

gutural. 

 

O corpo

consulta as dádivas

e respira entre o tojo tardio

penhor do sangue arrebatado

em óperas ditas de cor

enquanto avança 

na cordilheira.

#2669

Caminhavas

no verbo bucólico

do exílio que não viera 

a tempo.

30.1.23

Umas páginas avulsas de História do futuro

Pequena seria a incumbência 

se não fosse ao fado autorizado 

o estatuto de mito afivelado

estandarte dos prantos 

em que se debate uma terra inteira

tornando-a alagadiça

de tantas lágrimas que fecundam

um caudal de nostalgia

e o cimento da saudade 

 

– da saudade que devia ser desorgulho

de tanto meter a terra a olhar para trás

em vez de para a frente a fazer andar.

 

De tanta melancolia emparedada

tanta a angústia servente do fado

aviva-se, cristalino,

por que tristezas não pagam dívidas.

Não pagam

é só olhar para os inventários públicos

e pedir à estatística uns cálculos emprestados

 

(só para fazer jus

ao princípio geral da dívida).

 

E esta terra tem-nas

dívidas 

(e tristezas a rodos)

como se fosse uma piscina 

a hastear-se

mais alta do que o corpo

acima de todos os fingimentos

e dos pueris que se disfarçam de fidalgos

e são tão falidos como a pátria endividada 

 

– essa que é 

uma mátria 

avinagrada.

#2668

Sabias

que a subida era íngreme;

não sabias

que era um miradouro

o seu epílogo.

29.1.23

#2667

Os sonhos

são uns fratricidas

que empenham

o pesadelo do dia.

28.1.23

Injustiças indocumentadas (64)

O ministro da tutela

é que anda

pela trela.

#2666

Não será por falta de pedras

que os muros ficam adiados.

27.1.23

Partidário

Da pauta menor

o penhor da palavra fundadora

a tabuada sem vírgulas

obsessão sem ultraje

as bocas que ciciam os bons nomes

os nomes emparedados. 

Hoje

quando ainda há tempo para fugir

prometo o exílio para amanhã

quando o amanhã já puder ser

ontem. 

O exílio fica por conta

das boas intenções 

– que ninguém pode receber culpas

pela paternidade de um par de intenções. 

Já quanto à fusão

entre o hoje que se ajuramenta num amanhã

e o amanhã que passou a pertencer ao pretérito

não se espere indulgência. 

O compasso que nos rege

não perdoa o ultraje 

dos diferentes modos do tempo. 

A palavra 

é a cobertura

para todos estes descaminhos.

Ágora

Desempenhamos,

exercemos,

um papel 

– papeis múltiplos

no curso do tempo.

E nunca sabemos

onde apanhámos o papel

ou como ele nos aprisionou

se voou com o vento gentio

ou se veio do chão,

amarrotado.

#2665

Disfarcem as palavras

daquilo que não são

antes que as palavras

se disfarcem de arsenais.

 

[Definição de diplomacia]

26.1.23

#2664

Há sítios

que são um sempre

no sangue tatuados

a lava.

#2663

Um grama de perícia

só um grama, 

a esmo,

para esmagar a letargia.

25.1.23

Injustiças indocumentadas (63)

Um ponto de vista

é tão minimalista,

é só um ponto 

da vista.

Remoinho

A moldura

esquece o futuro

para não parecer gasta. 

 

O vidro

amanhece baço

oxalá estilhaçasse. 

 

O rosto

adulterado no precipício

esconde-se do espelho. 

 

A memória

antecipa a decadência

na vertigem incorruptível. 

 

As memórias

em herança deixadas

não reclamam toponímia. 

 

O nome

perdoa o passado

no olvido alfandegado. 

 

O nada

o todo completo

aviva-se no destempo.  

#2662

As muralhas

como fortuna

da solidão.

24.1.23

Seara

Lido com o lido

como se fosse inaugurar

uma estação que habilita a fruição

e deixo à pontuação

selecionada com esmero

a diferença no destinatário

os rodeios com as valsas de silêncio.

Escrevo como escrevo

o sangue arrefecendo nas mãos

o olhar exaltado

saltando as barreiras enquistadas

devolvendo à origem

travejamentos e códigos de conduta.

Ainda estou para saber

se escrevo como leio

ou se leio para refúgio da escrita.

#2661

Dou à falsa partida

o benefício da dúvida;

a indulgência converge

na vez do logro.

23.1.23

A seita e a coutada

As bocas famintas

bebem na ira da matilha. 

Não conhecem o perdão. 

Avançam,

destemidas,

no concurso da intransigência territorial. 

No territorial 

disfarçado de ideias

na parlamentar farsa da transigência. 

Na hora H

arregimentam o arsenal 

abocanham os tísicos pleiteantes 

na irredutível cerca de onde não têm fuga. 

Sem direito a contraditório

sem direito a julgamento

sem direito

a não ser a (sua) arbitrária lei de seita. 

A matilha

ostenta nas suas bocas saciadas

o sangue ainda morno das vítimas;

os mastins 

passeiam as barbas tingidas pelo sangue exaurido

dos que ousaram habitar outro mental lugar. 

Passeiam toda esta ostentação

na pose de triunfais algozes

ufanos no cercear da dissidência

funcionários diligentes da perdurável doutrina 

com simultânea exibição

para memória futura 

e aviso

aos candidatos dissidentes

do desfado que os espera

se insistirem ser

o que deles 

não se espera 

que sejam. 

#2660

Pior do que balas,

as palavras mortíferas.

22.1.23

O inventor

“(…) o vinco das tuas calças

está cheio de frio

é há quatro mil pessoas interessadas

nisso. (…)”

 

Mário de Cesariny, “De profundis amamus”.

 

Há poetas 

visionários

poetas que pressentiram

com cinquenta anos de avanço

as redes sociais.  

#2659

A meada

dissolvia-se entre os dedos

como se o norte

ficasse ausente. 

21.1.23

#2658

Das espadas,

a entorse.

O logro das palavras,

silenciadas.

20.1.23

Chessboard

The good, 

the bad 

and the ugly

or

the god, 

the bed 

and the truly.

#2657

Devia haver

um dever geral

de elogio

 

(só para desenjoar).

19.1.23

Beco com saída

O exílio que se esportula

a meias com o azedo da angústia

arremete contra o caudal iracundo

na floresta onde se arrumam os sonhos. 

 

Logro a sombra de uma tenaz

como se a uma figura mítica pertencesse

e aviso os deuses de plantão

que vendo dispendiosa a derrota que não intuo. 

 

Manda a tirania dos contratempos

o desmazelo dos fantasmas alinhados

contra os vidros baços que travam o olhar

em labirintos sem o medo metódico. 

 

O corpo suado não responde à lucidez

os versos são a cacofonia não reprovável

e a cada sismo da manhã

antepõe-se a harpa resgatada às cicatrizes. 

#2656

A pérgula 

disfarça a manhã

o medo arrefecido

na geada temporã.

18.1.23

Injustiças indocumentadas (62)

Por dever irrecusável de pertença

devia ser proibido

assentar zeros

à esquerda.

Injustiças indocumentadas (61)

A banha da cobra

está à venda

nas grandes superfícies?

#2655

O armador dos sonhos

meteu greve

e os pesadelos

tiveram rédea solta.

A nudez como cicatriz

Era como uma toga

só para disfarçar a nudez

a vergonha da nudez;

 

não sabia ao certo

porque a vergonha

rimava com nudez. 

 

Do palácio dos corpos alistados

sobrava a moda;

 

isto é

 

o devastador panorama 

das fazendas que alijam a vergonha

que seria 

a procissão dos corpos nus. 

 

E eu não sei

 

ainda

ao certo

 

se é por pudicícia

ou apenas 

por um dogma de estética

o agradecimento a estilistas e não estilistas

por travarem

a procissão de corpos nus

a devastadora imagem 

de um campo de terrores. 

17.1.23

Terra queimada

As costas das mãos

passeiam-se pelas vírgulas,

depostas em lugares ermos

como se fossem

as árvores distantes que ensinam

a gramática da vida

um torpedo desarmado

vocação diligente em ábacos erodidos.

Alguém diz

de uma paisagem em passagem

no disforme lugar do comboio

à janela:

esta 

é a terra queimada

o torpor que desarma a vontade

uma tela áspera

onde os verbos se trocam por luares

e as velhas não insistem na viuvez.

Mas esta 

não é 

afinal

a terra queimada:

é um gotejar insistente à boca da manhã

promessa sem notário ou procurador

a aldeia com cheiro a lareira

ou o tojo cansado de tanta geada

inerte

a pedir

uma terra alagadiça.

#2654

Vende-se tudo:

a dignidade

o silêncio

o futuro

os sonhos;

e empenha-se

a alma.

16.1.23

O meu latim

Nesta dança improvável

o peito fecundo verso

atesta como é viável

o lugar incontroverso. 

 

A palavra imarcescível

longe do paradeiro imerso

diz a pertença admirável

derrotado o sentido adverso. 

 

Não é a pele durável

em que teimoso me terço

o mapa todavia contestável;

 

se este é o idioma submerso

o logro do chacal perverso

eu sou tudo e o seu inverso. 

#2653

Ufanos

os titulares dos sofismas

desfilam

como se a avenida fosse

sua passerelle de glória.

15.1.23

#2652

Há a nobreza 

e o povo

mas é no povo

que está a nobreza.

 

[Desética socialista]

#2651

As mãos 

mergulhadas na terra

ascendem fartas

ateadas pelo húmus.

14.1.23

#2650

Se a vida anda à roda 

é porque

viva é a roda.

13.1.23

#2649

Empalidecido,

o medo como um muro

que se abatera sobre si,

não sabia em que verbo

seria amanhã.

12.1.23

Combate

Em vez do patriarca

as tágides que seguiam os eflúvios

cantantes

como cantantes são as sombras madrigais

e o provérbio sem casta.

Se não fosse pela diplomacia

os chapéus persignavam-se

ainda rombos

e a contundente mentira abraçava-se

a um disfarce.

Alguém dizia:

o disfarce rima com farsa

e ninguém objetou

que a rima acertou ao lado

errou por milímetros.

Todos distraídos

a contar os gramas que pesam uma lua

sentados em cima das suas almas

e estas impassíveis:

uma alma é à prova de bala

por mais que as balas se sublevem

e tinjam

a tinta imperecível

a pele açambarcada ao labirinto do mundo.

Agora

já não havia patriarcas.

Os sinos tocaram a rebate.

#2648

Os arsenais

(lamentavelmente)

não são uma espécie

em extinção.

11.1.23

Participação

Saber-me

sozinho

ainda que 

a rua

esteja atapetada

por uma multidão;

 

Saber-me

tutor de um sonho

ainda que

o sonho

não tenha mecenas.

#2647

Habitas 

aereamente

nos ramos das árvores

no exercício 

do teu constitucional direito

a seres sonho.

10.1.23

Bisturi

Um arsenal inteiro

a barragem da brandura ao fundo

como se estivessem entretidos

a jogar batalha naval;

e apenas um sonho

a estação preferida 

de tantos quantos

tropeçam no dia 

que vem depois 

do dia. 

Antes houvesse dedos contemplativos

um cálice de palavras doces

os frutos a contar do minuto três

ou um filme de trás para a frente;

não que fosse diligência maior

ser o oráculo que vem antes do futuro

 

(um futuro desses deixa de ser futuro):

 

o que estava em causa

era ser participante do futuro

de um futuro

não era esquisito na escolha. 

Para isso

é preciso esperar

que o futuro seja apeadeiro

o que

a acontecer

se esgota 

no seu próprio pressupor. 

Injustiças indocumentadas (60)

A culpa

não morre solteira;

é consorte

dessa pesada insubstância

que é a consciência.

#2646

A obliteração das sílabas

é o maior afluente

da dívida pública.

9.1.23

#2645

Encomenda

a comenda

pode ser que sirva

de emenda.

8.1.23

Nome trespassado

Um nome trespassado;

feixe atravessado 

por um luar

antídoto da decadência

que investe contra a vontade

contra

o desejo de sabê-la

ausente.

Trespassado:

um nome

o meu nome

sepultura dos dias sem rosto

a ausente marca registada do medo,

um nome

esquecido.

Nome

só nome

sem matéria

sem História

ermo de futuro

um nome estilhaçado

nos precipícios vulgares

nas palavras banais

nos lugares eles sem nome.

Trespassado

pelo verrinoso coabitar

em formulários contumazes,

o cianeto da História do futuro

ah! o cianeto

com fórmula deixada por conta da desmemória.

Se em vez de nomes

houvesse danos

dolo puro e sintomático

a vingança baronesa

palácios destituídos de vidraças

e as manhãs habitadas por vultos,

talvez 

os nomes fossem resgatados da hibernação

devolvidos a um sentido

conformes com os corpos a que dão expressão.

Se em vez de ser ao contrário:

nomes somos

sem correspondência com a matéria conforme

reféns de pura insubstância

agravados 

pelos corredores estreitos do fingimento

trespassados,

lá está,

trespassados

pelas modas que não sabemos

serem doenças.

#2644

A ateia 

ateia 

a teia 

e tem

uma epifania.

7.1.23

#2643

O último a sair

deixe a mortalha

por arrumar.

 

[Lei do menor esforço]

6.1.23

#2642

Fiquem

as palavras improferíveis

por conta das cordas de violinos.

5.1.23

O apátrida de alma

Se a alma não me esquece

neste tribunal de especial instância

em que minha pária condição se atesta

hei de ser credor de absolvição?

 

Se da alma não esqueço

cumprem-se mil costumeiros arrependimentos

antes que seja intentada a indulgência máxima

no fojo ermo onde se move a medula sísmica. 

 

Se não for intencional o exílio da alma

hei de povoar a herança

com o nefasto odor a vazio

decretado por vultos eminentes

nos corredores de um labirinto medonho. 

 

Se a alma não se sublevar

peticionando o irremediável meu estatuto

hei de ser suprimido do inventário geral

dissolvido na chuva ácida 

do olvido. 

 

Se à alma não disser adeus

serei 

– quem sabe? – 

pirata de mim mesmo

tarefeiro sem serventia

um coloquial abstinente das matérias ingentes

apenas

magma sem fundo

engenheiro sem matemática sistemática

errante

errante como me dispus

neste tabuleiro pútrido

onde têm cabimento os sequazes

os diligentes patriarcas do princípio geral da farsa

com olhos disfarçados

pele mumificada

e sua, essa alma,

sua

a alma que sua a improfícua cacofonia

de quem muito diz e pouco faz. 

 

Nestes termos

me declaro

apátrida de alma.  

#2641

Cunhada a má moeda,

em averbamento 

de prisão perpétua.

4.1.23

Não dirás uma só palavra à metafísica dos costumes

Trinta dinheiros

não era a paga dos hereges;

seriam 

 

(se a justiça fosse 

mesmo

divina)

 

os juros devidos

pelos pagãos

por quererem um céu

e indulgências a cobrir

todo o pretérito.

 

Por menos

 

(muito menos)

 

houve corruptos

apanhados em falso.

 

E ainda protestam

os majorados embaixadores das igrejas

que são desavantajados

pela força centrífuga do hedonismo

 

(que as tira de moda,

às igrejas

entretanto acossadas 

pelo atavismo).

#2640

O coração em riste

devia ser admoestado

com cartão amarelo.

#2639

Hoje

não sei 

de antemão

de que cor foi

ontem.

3.1.23

#2638

O estribilho

era vadiar

sem embaraços

sem pudor.

2.1.23

#2637

Se

ao menos

a devassa

estivesse

de valsa...

1.1.23

Descuido

Amanhecem

as cordas viúvas

no tojo que aloja o nevoeiro. 

As coisas

alimentam-se, baças,

num lampejo de água. 

Não se escondem,

extasiadas no seu fulgor,

na senda válida do dia madrigal. 

Nem as impurezas

extinguem o verso bisonho

que espera pela caução da manhã. 

Não se digam 

esperanças da redenção

antes que se sitiem as palavras fortes. 

Agita-se a pele

libertada dos fogos que a consomem

vertida, enfim, num capítulo maior. 

#2636

O dia das intendências

tem a boca atada

à cauda onde se entretecem

os remates.