Tira
a gola da alta da angústia
afinal,
é Outono com ares
de Verão.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Veja-se como é
um disco riscado:
a iteração exaustiva
um gaguejar apoplético
o síndrome
do cão que corre atrás da cauda
a beleza extinta do silêncio ausente
uma teimosia que desassossega
os acrobatas públicos que se repetem
à exaustão
a matança da criatividade
sem pena a preceito.
O disco riscado
que vai e vem sem sair do sítio
miragem de um patíbulo fingido
e gente em forma de farsa
ou farsas ocupando o lugar de gente
e uma loucura incandescente
tomando conta do chão
subindo pelas paredes
ciciando no rosto desprevenido
colonizando as raízes onde se esteia
o pensamento
– o pensamento:
esgotado por dentro
um enorme vazio vacinado e contínuo
contra os outros.
O disco riscado
em surdina
com-pa-ssa-da-men-te
de três em três segundos
esvaindo a loucura.
Pólvora húmida
a rabear entre as folhas caducas
(sim, é Outono)
farejando o mijo das divindades
como se houvesse carestia de epifanias.
Se outros Moscovos viessem em barda
os passaportes não precisavam de validade.
Cumpriam-se no luar extático
e as pessoas
em imoderado encantamento
seriam lúdicos aprendentes de idiomas
e, peritas em diplomacia sem ardis,
apanhariam o vento marmoreado
na passerelle sobre o rio habitado.
Não se assustem os gentios:
não é um terramoto
é só o barman
a abanar o shaker.
Disseram-lhe
és um diamante em bruto.
Levou a mal
e cobrou em moeda bruta
(ao tresler que era
um diamante bruto).
O poente
deixa de soar o dia
abriga um porto esconderijo.
Tudo é falado em surdina
as paredes travam as palavras
que emudecem
na fronteira da casa.
É o tempo preferido dos sortilégios
que assentam coreografias
com o estuque dos vultos arrematados
a argamassa retirada ao anonimato
preparando de véspera
a urdidura do dia consecutivo.
Sucessivamente
num ritual que não veste regras
sem autoria determinada,
até ao momento em que escrevo.
É o dia que vai contar o futuro
ornamentando a gramática com entorses
assim como os dias madrastos
que compõem um palco a que os pés não subiriam
se soubessem do futuro antes do tempo.
Deposto o medo
o idioma fica como testemunha.
O úbere da memória não tem paradeiro certo
os procuradores da angústia foram demitidos
e as preces dos desafortunados foram decantadas
tudo se compondo numa mirifica paisagem
onde se combinam urze e mel
chuva teimosa e fertilidade
os rostos que irradiam leveza
e as montanhas escarpadas
onde a vida se leva difícil.
Não se exorcize o olhar estremunhado:
o sangue pulsa nas paredes das veias
arrebata as bandeiras que são uma farsa
e o corpo insubmisso atira-se ao precipício
sabe que o pode domar.
Dizem-se palavras avulsas
– o auge da autenticidade
como se fosse preciso mostrar credenciais
como os embaixadores da lucidez.
Mas não é de lucidez que se cuida;
o vento que assobia o desmedo
desafia a angústia que procurava atestado
os ossos são a matéria que não se transaciona
assumem os esteios que uma identidade afigura
antes que deuses assassinos colonizem o bem,
assim disfarçado,
e todos nós,
distraidamente
(ou apenas sitiados pela letargia)
sejamos matéria fungível
um longo bocejo refém do acaso.
No abismo do carrossel,
quando a respiração se avessa
e as dioptrias se exacerbam,
celebramos a vertigem.
E como se ameaça dizer
com as letras todas
ninguém contesta a possibilidade
de as letras todas
ser um manancial de fortuna
a irradiação do alfabeto
a petição da suprema igualdade
a abnegação de um letrado
que não suprime letras à existência
e ensina
a quem interessado estiver
que usar as letras todas
não contém uma ameaça bélica
antes pelo contrário
encerra a riqueza das palavras
que procuram
pelo alfabeto inteiro.
Não se cumpre o ocaso
a não ser
que digamos aurora boreal,
e chamemos
a vontade sem adjetivos,
a pele recíproca que se funde,
os lugares avulsos à nossa espera.
Não se cumpre o acaso,
porque somos
os arquitetos do ocaso.
Da manhã
que se levanta nos rostos,
rejeitamos a bruma
que adia a impaciência.
Fazemos a manhã
com o aval
dos nossos dedos.
Já não somos apenas
silhuetas.
Projetos em estiradores
que se confundem
com estilhaços.
Somos suseranos
do que quisermos ser.
À espera
de um dia qualquer,
porque não devemos nada
ao futuro.
Violinos como coldre
a matéria funda que se funda
e um beijo equinócio
a tradução que nidifica no nada
braços contra braços e no fim
ganham os indigentes sem passaporte.
Mastros que perscrutam o horizonte
derrotam a finitude
os espécimes literatos
que do mar fazem moradia perene
eles e toda a fauna submersa
quase adormecem perante o eclipse.
Não se avisem os entendidos
que soa a ignorância o atrevimento
não é preciso a advertência
que mal seria feito se os demais
privados fossem de um módico circense
que não se mede em braçadas o tédio.
Não se encontra procurador para os eruditos
é pena, não há quem queira a embaixada
e os cocktails molotov em surdina
parecem destinados a um museu
que (ó boa nova) os mastins foram presos
e ainda se pode esperar por belos amanhãs.
Dispensadas as pitonisas da diplomacia
ao palco sobem personagens diletas
sereias, poetas, mendigos, apátridas das ideias
e as pessoas não escondem o arrebatamento
esperam agora (do substantivo esperança)
que tudo venha caiado com as palavras tónicas.
Um natal avulso
contratado à pressa:
os aprendizes
com trauma verificado
protestam compensação.
O que melhor se arranja
é um natal a destempo.
Não há agasalhos
que o outono nem arrimou
e os publicitários ainda estão
a uma enorme légua mental.
Os aprendizes assentam as cicatrizes
prantam por parvulez
candidatos à eterna puerilidade
a serem
gente a menos para corpo a mais.
Uma nova modalidade
de discriminação positiva.
Só falta reverenciar
os didatas da indulgência
e perguntar-lhes
(não vá ser importuno)
por que é devida aos aprendizes
uma compensação
se ainda nem tiveram tempo
para aprender a sofrer o mundo.
Estas alfândegas sem passaporte
ainda vão matar
e antes do tempo
gerações por haver.
Percebes a luz inaugural que desmata o dia.
O refúgio prometido aloja-se no silêncio
o silêncio por enquanto.
Ouves
o bramido das folhas acorrentadas ao vento
o leve ciciar do vento
que desassossega já o porvir próximo.
Sentes-te como as raízes das árvores
– não há nada que cause uma razia
e a razão dirá se se compõe em teu tesouro.
Ao longe
onde o horizonte põe termo ao olhar
levanta-se um leve torpor
como se o mar estivesse vigilante
o viável fundamento que aconselha.
Os contratempos arrumam-se na fila de espera.
Sem se darem à visibilidade
pondo os cotovelos em cima da mesa
fruindo a angústia de quem sabe
o que é uma rasteira dada por um contratempo.
Desvias o olhar
empurras o horizonte
inventas as tuas próprias impossibilidades.
Um esboço de luz espreita pelas mãos
deixas o papel deitado no estirador
e adormeces a alma
sufragada pelo sonho que entreteces.
Às vezes
os domínios que ocupas remoçam
emprestam ao dia um dia inteiro
sem recusar a sublevação dos ossos
apátrida
generoso.
Se pudesse ser
fazias um poema
na tela que espera as aguarelas.
Encurralavas os dentes furtivos da noite
para fingires a solidão
para fugires das multidões.
Não foges de ti.
Toma-lo como compensação
contra os solavancos
o autêntico terramoto
que fragiliza a imensidão do mar
em que habitas.
Se aos gauleses encomendassem
“rua”
eles aprovariam,
com prazer,
a interpelação.
É voz corrente
o mundo está arreliado.
Ele são dignos suseranos
que explicam terramotos
com as alterações do clima
outros que carregam
o estigma da pederastia
e por aí fora
numa procissão de conspirações
que levitam em forma de teoria
no mais profundo insulto
à teoria das teorias
uma boémia demencial
em que grotescos clérigos
escondem a inveja da boémia
e inadvertidos dignitários
bolçam uma espuma pútrida
que almeja disfarçar
um não saber.
Não
o mundo não está arreliado:
se estivesse
tinha de vomitar para dentro
a arreliação de si mesmo
como se desencavilhasse uma granada
para dentro do próprio bolso.
E se o palco for virado do avesso
depressa se intuí
que o mundo não pode estar arreliado
ao parir tão risíveis personagens.
O mundo
nisso é dileto
pródigo nos momentos circenses
e nas distrações com que nos habilita.
O escansão não foge da ardósia
disseram-lhe que é velho
para a ardósia o querer como fóssil.
Não quer saber.
Do escansão
depende uma turba:
apurado, o seu legítimo palato,
oferece mandamentos
seguidos por uma caterva de aficionados.
Antes de se saber
o escansão foi o primeiro dos influencers.
Ditador.
Dita dor.
Dita a dor.
[O da Coreia do Norte, a subir ao comboio, dizendo adeus à Rússia]
Se são outros quinhentos
façam-me o obséquio de revelar
onde estão os primeiros quinhentos.
Dedos são dois
de uma conversa que pedia
(“eu sei lá”)
quinhentos, “assim” por defeito.
Nunca edil
foi tão contíguo
a evil.
[O Dr. Moreira queria armazenar uma estátua de Camilo e Ana Plácido porque esta estava nua]
O basalto contorce-se com o suor da noite.
Desprende-se das faúlhas e povoa o vinhedo
e as pessoas
ao longe
confiam no desespero
atestam o desespero:
já pressentem as vozes periciais
já as pressentem
a atirar a semente do remanso póstumo:
o basalto
será o rosto físico
de um vulcão cansado
entretanto adormecido
e, arrefecido,
receberá em seus poros a quimera depois:
as sementeiras serão consagradas
num parapeito inóspito do mundo
onde as lágrimas se converteram em suor físico.
Tempos depois
já a lava ficara esquecida entre as folhas frondosas
os pecados ficaram por arrematar
(segundo os pobres anciãos
reféns do paganismo ancestral:
o vulcão tirado ao sono
é a vingança dos deuses enfurecidos):
a ira dos deuses sem nome conhecido
escolheu aquele lugar
a paisagem acrisolada nos novelos de basalto
nos cachos de lava tornada pedra
entre dentes de leão e acácias
entre os bagos das uvas milagrosas
e o vinho repatriado das balsas da lava estática.
Copérnico estava errado
pois tanto se evocam
os quatro cantos do mundo.
Insisto nos frutos maduros
que na boca arrumam lucidez.
Contrasto a fala amansada
com os lampejos de outrora
e contradigo os impulsos febris
a matéria volúvel que depressa
de extinguia:
são válidas as águas de agora
e os barcos navegam sem pesar.
Não falo para deuses inventados
nem para o futuro onde só estão
os anciãos.
Arrumo as perdas
como se não houvesse contabilidade.
No ábaco perene
as palavras são parentes dos algarismos
e não há equação distante
que fuja dos estábulos onde tudo fermenta.
Numa correria
como se tudo estivesse
em vias de extinção
e quase só sobrassem
memórias do futuro
não sabemos
se somos nós a passar
supersonicamente
pelos acontecimentos
ou se é o tempo às talhadas
impronunciável e ascético
que nos condena à matriz da irrelevância.
Confundimos tempo e modo
e por tanto sermos a esquadria de uma forma
numa anestesia total dos sentidos
esquecemos das desconvenções
a fala arquétipo que condensa a maturidade.
Esquecemos
há um ser em nós
que não se resume a um eu
esse eu é uma fortuna sem valor
esquecido por nós
arrematado num leilão de inconveniências.
Os rios emagrecidos açambarcam o olhar
desfazem-se no mar que os coloniza
como se fosse uma clepsidra que anula a luz.
Sabemos o que não sabemos
tanta a perícia costurada
na reivindicação do fogo
que acende o pensamento.
Não sabemos
do caudal do tempo
esgotado no esquecimento;
não sabemos
da nitidez das silhuetas
que oferecem redenção;
só sabemos
desnatar os ossos
calar a fala funda
obliterar o desassossego
– para sermos matéria domada
olhos pacientemente vendados
carne puída arrancada aos palcos amotinados
sitiados pelo torpor
ingénuas vítimas do despensar voluntário
nós,
os nossos maiores algozes.
Esconjuros à parte
os confrades ofereciam
pusilanimidade,
artesãos
de sonoros amanhãs cantados
insistindo no logro
ou acreditavam sob o jugo da carne própria
na enciclopédia que repetiam
como se fossem atores em cena
diligentemente repetindo o guião da peça
sem tergiversar
religiosamente.
O seu vaticano
era um museu de saudades
onde o frio do inverno
crestava à boca da melancolia.
Em cada sílaba amotinada
em cada corpo sitiado
as minas prometem-se
como flores audíveis
como dádivas lancinantes.
O ocaso nunca é tardio
é um acaso que conspira
com a ordem da contingência.
Como se houvesse manhãs
a fugir do entardecer
e, mudas, soubessem
o cantar das sereias refugiadas
num lugar que está atrás do horizonte.
Não contamos por módico
o inventário de que somos peões.
Antes fôssemos
generais sem comenda
os favoritos da desmedida
um magma feito de sangue sem cicatrizes
caóticos devido à linhagem da medula
e sintomaticamente imortais.
Somos imortais,
dentro de uma medida do tempo.
Travámos guerras esquecidas.
Colámos
com a saliva que desonra
as cicatrizes para sempre puídas
que quimera alguma há de apagar.
E um idiota
diz de si mesmo
ministro do futuro.
(Salva-o, in extremis,
por não fazer alarde
em causa própria
de ser o ministro do futuro.)
E ninguém se desfaz
do segredo tão simples
de dizer:
travamos
as guerras esquecidas.
[Agradecendo a Timothy Morton, “ministro do futuro”]
Es-croque
monsieur.
[Precaução
para não ser processado
pelo empresário dos barquitos.]
Admita-se a concurso
a esbelta forma da provocação
antes que tudo seja tomado
pelo fantasma do sopitamento.
A pele estremunhada
testemunhava o exílio dos deuses
aprisionados num labirinto.
A legião acusava os conspiradores
sem saberem erguer por um dedo sequaz
nomes e rostos.
Os deuses
de rastos
eram consumidos numa pira improvável
e nem sacudiam da pele os vestígios das chamas
distraídos pelo pasmo.
Do outro lado da cidade
as ruas exultavam
e, não por acaso,
(de acordo com uma possível festa de conspiradores)
as árvores estavam floridas
como se batessem recordes.
Esta era a litania dos subjugados
o avantajado sofrer pedagógico
fonte de sacrifícios em nome da redenção
de repente
tudo levado ao banco dos réus
sob os auspícios de juízes desconhecidos.
O resto já é sabido:
a justiça ajuizada como convém
profanação dos parâmetros habituais
segundo a legião,
ou a diligente justeza
como se fosse avalizada
pelas divindades ora contestadas.
A gramática perfumada contava o precedente:
“soul flowers”
era o apanhado da métrica desembaraçada
entre o assoreamento matinal
e a ginástica verbal.
O poeta
esse
fingia que dormia.
Os versos tingiam a penumbra
e ele estava próprio do dia derruído
antes do tempo.
As estrelas jogavam esgrima
e não bolçavam violência:
era uma espécie de circo
um circo dos bons
e no céu acenderam-se metáforas
uma aurora prometida
contra os mastins que povoam pesadelos.
As estrelas em esgrima
subiram à medalha de ouro
e abrigámos na fonte dos desejos
olimpíadas com esta silhueta.
Sunday, bloody Sunday
depois de tantos e arrastados
domingueiros na estrada.
Verte os garfos desassisados
sobre o sal do dia
e respira
com os olhos bem abertos
a alma que irradia.
Antes se dissolvesse numa solução alcalina
essa ideia anã que amadurece
com o viço dos analfabetos.
Antes fosses astronauta de doca seca
partidário visível,
daqueles que se ufanam
por darem o peito às balas
tartufo desmedido de circense veia
e as palavras
bolorentas
entronizadas no carvão atávico
dos que se ensimesmam na vaidade vã.
Antes fosses
calado
e em teu calado nascessem vesgos atributos
e tu soubesses da tua desdita
e calado
no calado de quem se sabe grotescamente pilhérico
atiras a fala à parede
só para a ver liquidada
(a fala,
não a parede).
O posto postiço
soletra um salitre umbilical
coalhado na coação do dia
faz-se ente de estimação
entra nas apostas do dia
e adormece
triunfal
nas alvissaras de um travesseiro.