6.11.24

Etapa cinco

Belo o apogeu que não cresta

aparafusado ao braço que denta no voraz

a não beligerância que aferroa a árvore cega.

 

Apetite que amanhece 

contra os sofás puídos dos estetas 

a vibrante cegueira disfarçada de venda 

o formulário burocrático que adia o tempo.

 

A colmeia rege o rigor da luz 

não se entediam os lúdicos apostadores do dia

e escutam 

com a proverbial atenção dos distraídos

o que dizem os embaixadores do silêncio.

#3312

Não queremos, 

mas somos,

a vingança sobre a História, 

a tragédia arrematada no futuro.

5.11.24

A porta arrombada

O largo ensejo de parecer estátua

devolve ao aço fundido a vontade anestesiada. 

Por fora dos pesares

onde os verbos da angústia foram destronados

só a névoa estremunhada 

que não atraiçoa as palavras. 

E se os dedos trémulos os versos não curarem

atirem-se os medos ao pelotão de fuzilamento

encardidos pelos vetustos embaixadores 

que falam com a cara do avesso. 

Sortes as várias noites sem ouvir o vento

e no pecúlio dos sonhos

em matéria incandescente

as folhas caídas 

no inventário das imagens colhidas

em vez da metamorfose à força

em vez 

do desamparo a caminho da solidão. 

Arrumadas as intransigências

ao ouvido soam tiranas que colonizam as mãos

ou as mães que partiram sem saírem do lugar

mas da sua ausência sobram cinzas avulsas

espalhadas pelo chão paredes-meias 

com as folhas vertidas pelo Outono. 

Ao demais

sufrago as armas depostas

a fidúcia toda empenhada no sangue 

que ensina as veias

o martelo pneumático 

que semeia o ruído mecânico

em quem 

com as costas viradas do avesso

no absurdo equívoco 

desafia os mastins generosamente armados. 

Injustiças indocumentadas (457)

O homem que dava ideias 

– ah, tanta gratuitidade filantrópica.

 

(Ou apenas 

como banalizar o mercado das ideias 

e elas 

residualmente baratas ficam).  

#3311

Somos ourives da filigrana 

em que tecemos a vida.

4.11.24

Areias movediças

O gólgota pardacento 

vomita as vírgulas fora do lugar

e as divindades em consórcio 

abusam do futuro,

combinam sem desacerto 

a alcatifa do tempo.

Injustiças indocumentadas (456)

No que toca a estados de humor 

a lua cheia é pior 

do que o quarto minguante? 

#3310

Os fogos atiçados 

nos saldos da lucidez 

a língua errante 

na voz dos demónios.

3.11.24

Injustiças indocumentadas (455)

Afinal

são puídos

um punhado, ou muitos, 

dos colarinhos brancos.

#3309

Dentro desta irrisória enseada 

descubro a alquimia hasteada

o porto invisível onde faço morada.

2.11.24

Injustiças indocumentadas (454)

Mandou dizer 

que não se podia retratar 

porque não tinha 

a máquina fotográfica à mão.

Injustiças indocumentadas (453)

O uso do fruto.

Usa o fruto.

Usufruto.

#3308

Garfos mudos irrompem 

com a violência da manhã,

disfarçam rostos amestrados.

1.11.24

Injustiças indocumentadas (452)

Não

tenho nada a dizer.

Não tenho 

nada a dizer.

Não tenho nada 

a dizer.

E isto 

é um poema?

#3307

Dançava no fio da incógnita 

o corpo avessado

tartamudeando as sílabas disformes.

31.10.24

#3306

O braço da rendição 

aviva o estuário

e foge à moldura embainhada.

30.10.24

Vendaval

Deixassem falar o vendaval.

Na sombra do sangue agitado

cabiam cinco noites sem dormir.

 

Oxalá 

os pescadores não tivessem ido ao mar.

 

Agora 

as mulheres 

sentem-se viúvas em desassossego

como se contassem a gramática do medo

como prece contínua.

 

Maldito 

era o vendaval.

Não lhe tivessem dado nome

e ela talvez não se amotinasse.

#3305

A tocha acesa 

incendeia as lágrimas errantes 

no distrate do baraço 

que emproava a forca.

29.10.24

Olhos voluntariamente vendados

Vejo 

na alma do mundo tantas cicatrizes

o espólio que se atira de frente 

contra o muro do passado

e em várias toneladas de conhecimento

chega ao estuário exangue, 

extinto.

 

Vejo

as pessoas sem nome

ou com nomes que não sei dizer

reféns de uma penumbra que os atiça

no vulcão perene que os consome

vejo

como falam um idioma que não percebo

e se entregam no luar que é o abismo

disfarçado.

 

Vejo

no miradouro furtivo

as pernas tremidas à medida que avançam

e dos nomes extintos se aproximam

vejo-os

aluados e impassíveis

como se não pudessem ser mais do que peões

ou carne para canhão

que ainda dá direito a uma comenda póstuma

que os heróis querem-se póstumos.

 

Vejo

com as dioptrias todas no ângulo vivo da visão

os banquetes que omitem a miséria

o ultraje dos comendadores em pose hierárquica

um desmodelo afinado pelas mãos usurpadoras.

 

Vejo o que vejo

e desejo

que não visse nada do que vejo.

#3304

Depois da fala 

arrumaste o pensamento 

no gueto que é sua prisão.

28.10.24

#3303

Sem empalidecer

a luz branca agarra-se 

à pele do dia.

27.10.24

Injustiças indocumentadas (451)

As armas 

são uma falcatrua tão grande 

que uma arma branca 

nunca é branca.

#3302

Uma tocha 

apagada 

o sonho do nevoeiro 

e os bombeiros, 

em greve.

Injustiças indocumentadas (450)

Solteiro

ou

bom rapaz.

26.10.24

#3301

Amuro-te estima, 

para que te não perca as rédeas 

e não seja peão da boçalidade.

25.10.24

Os amantes

 

Explosions in the Sky, “Loved Ones”, in https://www.youtube.com/watch?v=ogFLy72Ox4k

Púnhamos as vozes a falar

nós, os arquitetos das palavras,

até que as destinássemos a poemas válidos.

A matéria incandescente a desejar a manhã

um punhado de violinos em desordem

até que as estrofes 

combinassem o silêncio que era alquimia.

Não soubemos das coisas tardias

era em nós que as levávamos

sem sabermos

só por as querermos combustão

e toda a cumplicidade a nascer de um sonho.

Falávamos pelas vozes sem silêncio

os punhos ascendendo ao miradouro

onde o vento secava as lágrimas.

As lágrimas

tornadas pétalas de ouro

tatuadas na pele sem adiamento.

Pretérito muito imperfeito

Boas não são as novas

quando o verbo ser 

é usado no pretérito imperfeito

e depois vem o nosso nome.

#3300

A perna curta das ideias 

ou o olhar fundo das palavras.

24.10.24

A contingência da incerteza

Falava-se

do porvir

aquele que ainda está por vir

o futuro

se não usarmos erudição gratuita

à falta de se poder dizer

“a deus pertence”

 

(o registo de interesses

agnóstico

impede o reconhecimento do estatuto 

– e, dê por onde der,

deus

se existisse

dificilmente queria saber do futuro

porque 

se existisse

por definição de omnipresença

já sabia do futuro

de trás para a frente.)

 

Daqui para diante

a começar 

no minuto que começa

dentro de sessenta segundos

é por conta da incerteza

um buraco negro

onde tudo se pode arrematar

uma coisa e o seu contrário

ou antes pelo contrário

ou então aquele nada 

tão grande, tão grande

que cabe na estatura de uma molécula.

 

Quanto ao demais

ou à conta da contingência da incerteza 

é um bla-bla-blá

e o que mais se queira querer.

#3299

Se fosse a correr atrás do caudal 

não seria o rio maior ou o mar terminal 

nas mãos em meu legado.

23.10.24

Injustiças indocumentadas (449)

Deuses com pés-de-barro, 

ou seguidores com pés-de-burro.

Injustiças indocumentadas (448)

A contagem de espingardas 

devia ficar para os analfabetos.

#3298

E respirar,

(também)

é um problema ambiental?

22.10.24

Taberna

Os estreitos becos

onde se atiçam palavras fiéis

contra os empossados patriarcas 

são os mesmos

onde caem sem batalha 

os que se agarram a medalhas colossais

os indigentes disfarçados de eruditos

pândegos todavia não autenticados.

#3297

Dou ao vento por domar

as asas quebradas 

de um oráculo por inaugurar.

21.10.24

#3296

O que sobra 

é um caudal generoso 

a lupa que arbitra a fala.

20.10.24

Injustiças indocumentadas (447)

Ficou com os louros 

e deixou ficar os morenos.

#3295

Um vulcão averbado

um corpo prometido 

a erupção sem demora. 

19.10.24

#3294

As palavras sem peso 

adejam sobre o dia plúmbeo.

18.10.24

Vital

As cordas ensanguentadas

tomam o entardecer por adeus. 

 

O olhar desmaiado

ecoa no horizonte embaciado

como uma espada contraída

com medo do crepúsculo.

 

A noite

atravessada pela voz diluída

não foge dela mesma:

ainda hão-de saber

os vencidos pela insónia

que há sempre verbos 

no dicionário sem paradeiro.

Injustiças indocumentadas (446)

É igual ao litro: 

o litro 

que vale nada.

#3293

No fuso das marés

os dias desfilam

não precisam de parada.

17.10.24

Andamos todos ao mesmo

Afundo a porta

antes que a porta seja o fundo. 

Estilhaços polvilhados sobre tapetes persas

carimbam a impressão digital da civilização

que ainda está à espera 

de aspas a preceito. 

O corrimão gasto

gosta de mãos;

como uma verdade insofismável

odeia filósofos.

No fundo

como os engenheiros detestam demolições

a não ser que sejam os pais 

da obra consequente. 

Andamos todos ao mesmo

pressentiu

como quem tem um oráculo sobre o passado

o videirinho que da aldeia 

aterrou na cidade-véspera de outras metrópoles

e, encantado em saber que há ajuntamentos

com mais de três pessoas,

escalpelizou os malefícios da mortandade. 

Pois é,

andamos todos ao mesmo.

Só que uns

vão a velocidade deferente.

#3292

A cidade estremunhada 

entre a saliva da noite

e o penhor da manhã 

pergunta: e agora? 

16.10.24

Rotina

No sujo do dia desacontecido 

combina-se ultraje com angústia

esgrimidos os mudos contraplacados

que se esmagam na antítese da lua.

Não serão viáveis os luares intencionados;

desde que o mundo foi embrulhado numa farsa

já ninguém se importa com a acrimónia

e as palavras vêm untadas de boçalidade

respirando a favor da desconfiança.

No sujo do dia

aconteceu o futuro que se sabe.

Injustiças indocumentadas (445)

O mal resolvido 

invade as veias 

com um punhado de sangue 

em combustão.

Injustiças indocumentadas (444)

Arrependido,

em tribunal confessou 

que queria ser dentro-da-lei 

quando fosse pequeno.

#3291

A janela lateral 

furtivamente postigo 

à espera da madrugada 

e nós, à espera da espera.

15.10.24

Injustiças indocumentadas (443)

Estou convencido 

o mundo era um lugar melhor 

(lenço a tiracolo 

para enxaguar a lágrima furtiva) 

se em vez de abaixo-assinados 

dependesse

de acima-assinados.

Fora o brigadeiro

Emproados farsantes cheios de comendas

trovam a audácia

fácil o arrazoado

seus nunca os corpos trespassados

em campos de batalha.

 

Haviam de ser condecorados

com a comenda que leva a palma

na desavergonhada ostentação

da carne outra tão agilmente despojada

onde pútridas guerras não se esconjuram. 

 

Não fosse pecúlio bastante

e agora um deles

inquieto na sua caserna submarina

anda a agitar a maré

para medir se ela se compraz

com a indeclinável “vaga de fundo”

que o traga a tiracolo da voz fundacional

para o pináculo das instituições. 

 

Arregimento

deste local onde me situo

e sem a demora do futuro

um acima-assinado:

que o tesouro arrecadado 

sirva para mercar um contratorpedeiro

daqueles de última geração

só para o castrense passear a ufania

pelo convés a sulcar os mares

na sua tão irrecusável pose heroica. 

 

Deste local onde me situo

e sem a demora do futuro

declaro

contribuir com uma centena de euros

para a colheita contratualizar o castrense

para o declínio das coisas da política.

#3290

Acorrentado à teimosia 

dispensava a maresia fecunda do dia. 

14.10.24

Ligação

Levo o leve entardecer

como penhor de uma véspera.

A levedura que lavra o braço

em mosto feita no cais andado

levita no logradouro num sussurro.

É esta a lentidão que serve de úbere

o coalho apanhado pelas mãos

fervendo a lenha em espera

até apetecer o xisto em lanhos

Aa dar cobertura à casa nómada.

#3289

Atiras 

à queima-roupa 

as palavras bala 

e nem assim 

o corpo sangra.

13.10.24

#3288

Engolir o orgulho, 

para cevar de soberba.

12.10.24

#3287

Pregas uma partida 

à partida 

e confessas o adiamento 

(a tua especialidade).

11.10.24

Fato à medida

O espelho derruído consome a luz.

Em vez do vento sublevado 

a boca ateia versos imperadores, 

uma casta à parte 

entre o desrazoável escol.

 

A noite é procuradora do fingimento, 

mas não me importo: 

entre o deve e o haver

mergulho na casta única do meu sabor.

#3286

Às vezes 

a meia-idade 

chega a ser mais 

do que uma idade inteira.

10.10.24

Princípio geral da indiferença

Digo ao poente 

a corda lassa que hasteia o dia. 

Convoco as ameias 

forjadas a ferro e lágrimas. 

Deito-lhes cal colhida na sombra noturna. 

Dizem-me que a tortura maior 

é o terrorismo ao idioma

e eu começo a parábola inteira 

no início do parágrafo

esplêndida

vestida de ouro arrancado às entranhas 

pelas mãos próprias

o punhal demitido no parapeito das mentiras. 

Desarrumo o dia inteiro

o beijo crepuscular anotado na fazenda adiada. 

Embainhado o rosto 

que não dança com o nome

levito as sílabas 

enquanto o tempo não se faz tempo

um copo desfalcado abraçado aos dedos

treme para não serem tremidos os dedos. 

A sociedade comercial dos desafortunados

insiste na desafortunada apanha de dias

está para o sol como as nuvens para o Inverno

e esse é o seu reconhecido inferno. 

Não me digam como é o esquecimento. 

Sou a fábrica 

onde os dias se ocupam do desmedo

um artesão que bebe as vírgulas 

que sobem a palco

e de jato 

atira o material sobrante para a sucata

onde os sentidos retificados são. 

Povoo as cidades acasteladas

os ermos lugares 

onde os animais são suseranos

a venda entrapando o olhar ébrio 

que se dá ao dia para se saciar. 

O palavrear desenfreado desautoriza a letargia

como os gatos famintos 

que seguem os cuidadores

cobrando às bandeiras o futuro que não querem

simples oráculos 

que desaprovam as estrofes mundanas. 

Dizem que é preciso um arquiteto geral

o intendente das boas causas

antes que uma catástrofe inteira 

amotine esta terra. 

Enquanto não aprenderem o significado de não

talvez se salvem no palco 

onde se refina o fingimento. 

Sob as pedras falsamente furtivas

as serpentes dormem. 

Dizemos “xiu”

para ninguém demitir o silêncio. 

Dizemos que muitas foram as horas gastas

só a contar as horas passantes

como se na véspera 

ousassem os cantos errantes

nas vozes alardeadas no viço da manhã. 

Ao menos

respiro

e sei que sou tutor 

da matéria incompleta de que sou feito

e sento-me à sombra da voz quimérica

só para saber o sabor da indiferença.

Injustiças indocumentadas (442)

O diabo é padeiro

ou o padeiro é um diabo?

#3285

Foge foge bandido 

foge 

antes que sejas esquecimento.

9.10.24

A chama dos rumores

Adormeço na modéstia do sono. 

Interiores

as lágrimas adiadas

enfurecem a angústia desaprovada. 

As horas a fio

jogadas ao deus-dará

empenhadas na tortura por dentro da carne

o jugo que amestra as almas pretendentes

que não chegam a ser a fiz das suas juras

e não passam de um rumor. 

O sono desautoriza a ira

finge não serem caçadores os espíritos malsãos

e entrega a chave das resoluções aos sonhos

o ónus as empreitadas a seu cargo. 

Não protestem

contra os espíritos contumazes

ou a angústia não convidada

se o património dos segredos 

está a dois dedos das vossas mãos. 

#3284

Todos os poços têm fundo 

– este é o rebuçado

que anima o dia de hoje.

8.10.24

Pretendência

O gelo fosco entra pela porta

desliga a luz e averba o cansaço

e as pessoas hibernam

tossicam entre a lava do sono

procuram o musgo telúrico

o refúgio vindicado. 

O frio congela as veias e o sangue.

Amanhecem 

os fantasmas esquecidos

deitando à luz hesitante a moldura dos dias

como se não estivessem gastos 

pelo peso do mundo

pelo peso insuportável 

do peso herdado da História. 

O telefone conspirou com o silêncio

num tempo que vai em prolongamento;

as faces indiferentes atapetam as ruas

e não há porta-voz que queira desafiar os vultos;

até ordem em contrário

rejeita-se

a mordaça higiénica.

Injustiças indocumentadas (441)

O estado de sítio 

é o sítio do Estado.

#3283

Aos gatilhos 

rogue-se a praga 

da ferrugem.

7.10.24

#3282

É nesta estrada 

que sabes pleno 

o sangue diuturno.

6.10.24

Injustiças indocumentadas (440)

Ao crédito malparado 

aplica-se

multa de estacionamento.

#3281

Arremato 

ao sonho atrasado 

o palco sem sombra 

e remo sem medo do sono 

pelo caudal feito pelas mãos tutelares.

5.10.24

#3280

A república 

abriu concurso público: 

precisa de ser vitaminada 

com botox e quejandos.

4.10.24

Rede

Sou a tua mão que sente o tremor quando o luar se esconde por nós. O cais que sabe por ser a manhã que enfeita o olhar. Sou essa porta à procura de moldura no vento desafiado pela noite sem mordaça. O destino que responde por outros destinos. Uma vaga lembrança do futuro, escrito na combustão das sílabas, na saliva tatuada na pele. A estrofe, que sussurra a maresia que deixamos sonhar por nós.

Injustiças indocumentadas (439)

A porca 

coitada

torceu o rabo 

e ninguém se importa 

com a entorse.

#3279

O grande capital 

mede 

para aí 

um metro e noventa.

3.10.24

#3278

Nacionalizem-se 

as nacionalizações.

2.10.24

Injustiças indocumentadas (438)

Moral,

da História.

 

[Continuamos a brincar aos bombardeamentos]

30.9.24

Tolos

A voz assanhada

entreabre os poros 

e impetuosa abeira-se

dos vadios sem rosto. 

 

Conta enredos mestiços

na cortante intimidade

em que se levantam os olhos

um contrabando sem pena. 

 

Ávidos de histórias

os mecenas retiram fração

de um êxtase sem parágrafo

a moldura para memória futura. 

 

No trono das desfeitas

contam-se os contratempos

a usura que nos mete em bolsos

numa despátria que agradecemos.

Injustiças indocumentadas (437)

A hora era de ponta 

mas não era de mola.

#3277

Na pele 

o alfabeto dourado 

que sobe no púlpito 

da manhã. 

29.9.24

Revelia

Teces as lágrimas

no mosto da maresia. 

As avenidas largas,

o idioma que atravessas

no musgo que se aviva nas pedras antigas. 

No rumorejo da manhã

arrematas a esquálida impressão da angústia:

não te demovem os fantasmas 

que à revelia se entontecem 

com as estrofes que saem da tua boca;

se pudesses 

calavas os indignos que cavalgam nas notícias

a única forma de censura admitida a concurso

para às pessoas legares 

o des-pesar da alma arqueada. 

Não dás ao sono uma capitulação. 

Se não puder ser pelos modos propostos

será com a mediação do fingimento. 

Nessa altura

todos saberão o segredo

do exílio sem mudar de pertences.

28.9.24

#3276

Um ziguezague furtivo 

finta o ocaso militante

adultera a noite 

com uma promessa de voz.

27.9.24

Ao circo

Um litro de farsa,

era

por obséquio. 

Sentia o sangue impronunciável

a querer meter o gancho no garrote

para não escorrer num frenesim escolástico

até atingir 

o imperturbável estado de estátua;

antes que fosse possível

as vendas foram consumidas por térmitas 

o do coldre saltou

excitado

o revólver acusado:

e todos aceitavam

antes fazer de conta

do que contar 

cadáveres daqueles com direito a sepultura. 

Depois disso 

alguém bolsou consoantes

(as vogais ficaram a cimentar as proteínas). 

As náuseas

não são objeto de disfarce.

Injustiças indocumentadas (436)

Massage 

in the bottle.

#3275

A noite 

na sua frágil janela 

esconde-se do medo.

26.9.24

Injustiças indocumentadas (435)

Contas os números 

mas os números 

não te contam nada.

Injustiças indocumentadas (434)

Deu uma volta ao mundo 

e o mundo 

agradeceu tanta generosidade.

#3274

À boca do lobo 

os verbos famintos 

na cerca dos estouvados.

25.9.24

#3273

Por conta dos dedos 

que amaciam o dia 

como se a pele sonhasse 

com os sonhos avivados na carne. 

24.9.24

Efeito rolha

Se são atirados os dados 

e uma confissão amanhece 

em vez das paredes caiadas

avivando mentiras hibernadas 

o tecido anquilosado

ou as bermas que não chegam a páginas 

fingem os fingimentos 

os fígulos sem juras anotadas 

no célere embasar da lua admirada.

#3272

Agarrados à loucura em embrião

somos mediadores dos disfarces 

os melhores embaixadores do não-eu.

23.9.24

Ponto; e vírgula

As aldeias falam cedo de mais.

Balbuciam as palavras perdidas 

as que as viúvas apanham do chão.

Das artes deixadas sem legado 

torna-se o futuro procurador; 

as horas socorrem o enfado 

e os velhos já não se arrastam 

nas mesas dos cafés 

na língua comprida 

de quem muito a exercita

na viuvez dentada que arpoa outro dia.

São estas suíças mal aparadas 

e os xailes descuidados

que rimam com a canseira da velhice. 

Os outros 

ainda só aspiram ao envelhecimento,

tão ingénuos e inglórios.

#3271

Deixa estar o futuro 

no lugar a que pertence.

22.9.24

#3270

O elixir dança 

nas veias embuçadas

destrona o vício da vida descendente.

21.9.24

#3269

As lágrimas chamam por um lenço enxuto 

as armas pedem um lençol desembargado.

20.9.24

Injustiças indocumentadas (433)

As pessoas 

fogem a sete pés, 

embora só tenham dois.

Injustiças indocumentadas (432)

amigos do peito; 

e do resto?

#3268

Não mandem 

os mastins ao dentista, 

precisamos da carne intacta.

19.9.24

Pétalas dançantes

Despejo o fogo perdido no coldre puído. 

As entranhas sacodem as orações avulsas. 

Não foi em vão o destino à míngua de bússola. 

O amanhecer irradia os rostos adiados. 

Alguns fazem-se adidos das esculturas perenes:

se pudessem também eram perenes;

se soubessem, antes ficassem como são. 

Os arruamentos são como muralhas;

escondem dos corsários as incontinentes misérias. 

Escondem-se envergonhadas pelo que não são. 

Fogem dos dias alumínios que roçam as arestas. 

A carne viva cuida das cicatrizes 

no provável silêncio. 

Não são a matéria apodrecida que dança 

no avesso das ondas. 

Não são o ciciar espectral que denomina o medo. 

O xisto endurecido é a cama para a fala continua. 

A encomenda dos pesares não precisa de procurador. 

Destemidas as almas que voam no sonho dos dias 

no lugar onde o medo se extinguiu 

e o arnês ficou vago.

Injustiças indocumentadas (431)

Há os que cantam 

e seus males espantam 

e os que cantam 

e em nós males semeiam.