26.10.15

Matéria outonal

Que não seja a arvore tomada pela
floresta.
Os estorninhos já não fazem ninhos
nas árvores
que vão mostrando um ocaso
outonal
e já não aquartelam folhas para os
abrigar.
Isso não significa que devemos maldizer
o outono:
alquebram-se os dias,
encurtados
numa promessa de renovação.
O outono não é desafio à existência.
Que seja do conhecimento geral
e da ciência em particular:
os estorninhos não se extinguiram
em outono
nenhum.

22.10.15

Procissão das ardósias

Não é do cálice embotado
nem do vinho azedo
ou das lágrimas defumadas.
Não é dos dos pólenes que voejam
nem da matéria canhestra
ou dos pátios lavados em poeira.
Não é pelos braços da química
nem pelas escadas descalças
ou pelas saias encardidas.
Não é o crucifixo sem cor
nem as preces ocultas
ou as divindades sem identidade.
Não é da noite interminável
nem da alvorada em sucessão
ou do rasto do dia em plantão.
Não é da febre polida
nem dos medicamentos indigentes
ou dos médicos-feiticeiros em pose sobranceira.
Não é do tempo indevido
nem do tempo ainda furtivo
ou das tágides metidas em vestes sumptuosas.
Não é de ontem
nem de agora
ou de um outrora qualquer.
Não vem afivelado pelos segredos
nem coberto por seguros impacientes
ou sequer planeta perfeito.

Não, não e não.
É tudo no seu contrário.

Correrias loucas atrás de nada;
músicas descompostas em pautas avariadas;
luzes cínicas atravessando o olhar;
livros empilhados sem saberem se são lidos;
flores em decomposição, mas belas;
divindades ausentes sem angústia;
mapas coesos de projetos ousados;
promessas assinadas a sangue fervente;
casas desenhadas com os dedos;
palavras desenhadas na mesa, com os dedos;
gentilidades obnóxias;
lucidez arrogante;
decadência em forma de tempo prometido;
bustos esmagados contra o ar soerguido;
preces imprecisas sem divindade;
mãos húmidas secas no suor quente;
lençóis gastos pelas alvoradas incessantes;
ardilosas palavras que enfeitam silêncios;
frutos doces à boca de cena;
cadeiras desorganizadas na sala vazia;
o entardecer com os olhos derretidos no mar;
a pele macia de quem tanto se quer;
as paredes lívidas que sufragam desejos;
o jantar opíparo preparado com parcimónia;
o sono inteiro sem intermitências;
o corpo gasto no cansaço, todavia jovem;
a memória avivada;
o fantástico bocejo de todos os outrora;
e o beijo na armadura do tempo que é hoje.

21.10.15

Por uma unha negra

Quase
como se todo o tempo fruísse
no nevoeiro ribeirinho
em manhã demorada.

As lentes embaciadas
conspiram,
a nitidez furtada pelos alvores matinais.
De que serve o arranjo das almas
quando as harpas desafinam
e os pássaros canoros
decaíram na rouquidão?

O estribo da paliçada
(onde os petizes esvoaçam algazarra pueril)
consome-se em sua fragilidade.
Daí por umas horas
– quando for ocaso
e o entardecer convocar a melancolia
– o fosso que trava o passo
ditará para a ata:
quase
quasemente:
pois tudo são projetos
que não chegam a desembainhar
resoluções.

20.10.15

Poema transviado

O poema congeminado:
estrofes de início
palavras incensadas no cavalete das intenções
e depois
uma convulsão de palavras imprevistas:
o poema perdendo-se de mão
ganhando diferentes demãos,
poema autónomo.
Volto ao início:
o poema não rima com as intenções
o seu cavalete, imprestável.
É quase sempre assim:
o poema ganha vida própria,
ou é do poeta
que não sabe da disciplina mental.

19.10.15

Feiticeira

O sal cinzento veste as árvores
no compósito outono sem memória.
As pessoas interrogam-se:
que origem tem o sal cinzento?
Será do mar mestiçado
das chuvas poluídas
dos peixes adoentados
de um navio à deriva
de um vento transatlântico?
O sal cinzento não tem sabor
(já o documentaram habitantes curiosos).

Por tentativa e erro
cientistas rasuraram as hipóteses
com ponto de interrogação no fim.
Estavam azoados
cientistas e gente comum
no engodo do sal cinzento
que não saliva sabor algum.

Uma feiticeira proscrita
berrou no meio da feira semanal
onde os oradores encontram pedestal:
são as lágrimas dos desafortunados,
entranham-se nas terras
e desaguam nos mares açambarcados.
Os ventos
devolvem-nas à copa das árvores
para que ninguém se esqueça
das mortificações suas e alheias.

E o povo
sem norte em que confiar
fez de conta que tinha sido um sussurro
de um pássaro migrante.
Já se habituara a olhar
sem o pasmo inaugural
para o sal cinzento.
Fazia-se constar serem cinzas,
restos tão inertes
como a decadência das ruínas.

16.10.15

Mar de outubro

Este mar
diante dos olhos
não é o mar de outubro.
Para inauguração do outono
este é um mar bastardo.
O outubro como deve ser
não é tutor de um mar poltrão
um mar assisado
um mar refresco
mar feminil
o mar fácil para qualquer marinheiro.
O outubro deixou de ser
como devia ser
e já vai algum tempo.
Talvez
seja preciso
mudar os nomes das palavras
que enfeitam o mar de outubro.

15.10.15

Centelha

Einstürzende Neubauten, “Emanuelle”, in https://www.youtube.com/watch?v=sG5GaXXfiHQ

Um copo vazio
A sombra de um gato
As mãos deitadas no rosto
O murmúrio do vento
Um chapéu vermelho
Os lábios que beijam a janela
O cais sem navios
Um piano à espera
A almofada fria
Os olhos marejados
Um peito descarnado
Um corpo cheio.
            E as costas das mãos
            que limpam as lágrimas.
As folhas de outono em despojos
O entardecer que se arrasta no tempo
O mar parado
As páginas gastas de um livro
A chuva sem finitude
Os caminhos pedonais, sem gente.
            E os lábios quentes
            que enxaguam a melancolia.
O navio naufragado
O prato com a comida fria
A noite madraça
Uma sereia pelo meio do sonho
A música que empalidece
As roupas ininteligíveis
A cidade esquizofrénica
Um avião fantasma.
            E os olhos no seu avesso
lambendo as lágrimas fúteis.
Um abraço demorado
As palavras tangentes
O milagre do pensamento
A viagem purificativa
Um ocaso sortilégio
Depois do amanhã promitente
O baloiço pueril
As coisas muito sérias.
            E um peito tórrido
            ninho das manhãs claras.
A parede branca
O cavalo desembestado
Violinos sem freio
Um quadro espelho do olhar ardente
O gelo em forma de trovão
O sorriso torrencial.
E o sol que canta
à lua que espera.

14.10.15

Maestro

O sal dourado que cobre
teu corpo:
bandeiras hasteadas no lóbulo
centrípeto.
O vento fresco
acalma a fornalha estival
sem demorar o fuso do desejo.
Sem tempo a perder.
Que as mãos trémulas
cuidam da pele salgada.
A boca orquestra a dança
que sei dançar.
O resto
deixamos aos desvarios
que em nós se compõem.
A pele dourada
já não albergue do sal febril
repousa no regaço quente
que há em mim.

13.10.15

Arco-íris

Damos os nomes às cores.
Mil nomes
na vastidão de dez mil cores.
E recolhemos
nos despojos da maré
um coração cheio de lágrimas.
Não é da maré que temos medo.
Não é de uma cheia que temos medo.
É dos nomes férteis que dão à costa
e do caos a seguir.

O pseudónimo forçoso

Não adianta
perseverar na obra
se os círculos competentes se encerram
no bastião dos dogmatismos.

E quem tutela os dogmatismos?

Gente
que morde a palavra democracia
que lambe a palavra tolerância
que se estica, em bicos dos pés,
no altar sublime do julgamento dos outros.
Gente que,
ó todavia,
apenas morde e lambe e estica
sem praticar o que as palavras encomendam.
Catedráticas pulsões da subjetiva arte.
Não entrar no círculo é fatal:
desmerecida a obra
na acutilância das recensões escondidas
em hermética erudição,
sobra a vastidão do nada
o esmagamento ao nada;
mas as sumidades falam no vazio,
palavras estigma que apoucam a obra revista.
E ai se ousas meter o baraço
pelas ideologias erradas:
por condenação liminar à anti-arte
esquece os cardeais da publicação
(ou esquece o sustento se achares que nela o acharás).

Pode não chegar
para a levitação artística:
é só recusares os imperativos categóricos
que rimam com imperativos ideológicos
não andares de braço dado
com os companheiros certos
nem assinares os exatos abaixo-assinados
ou não fazeres coro
com a turba que educa as massas;
destino o teu,
candidato a artista,
traçado:
de candidato não passarás
devolvido à penumbra onde não medram criadores.
Pois os tutores da estética
os paladinos das artes
os afocinhadores que retiram da merda
a arte que interessa legar ao público
(ao público ordeiramente instruído)
são sumidades à prova de provas
bestuntas presunções cognitivas
deformadores das artes desde o pináculo da ideologia.

São como os reses que afocinham
em lamacento solo em demanda de trufas.
(Sabes o nome dos reses, não sabes?)

Deviam ir para a política
onde se juntam os mesquinhos quase todos.
                
Oxalá pudessem as cores das artes
desprender-se de peias ideológicas,
sem os freios que adulteram a sua exegese.
Em assim não sendo
saibam os que afiam a lapiseira
para o lugar de candidatos às artes:
o respeitinho às sumidades
é condição primeira para o reconhecimento.
E ai de quem soletre, pausadamente,
e-n-d-o-g-a-m-i-a
que suas sumidades expelem indisfarçável fel
e assinam a sentença fatal:
pois que a quem assim acusa
não é dado o respeito pelas sumidades.
A maior das heresias!

Ato contínuo:
o ostracismo.
Esqueçam que podem ser arte(s).

12.10.15

Não fumadores

Se eu fumasse
punha-me a escrever poemas
em cima das nuvens de fumo
desenhadas a preceito.
Aposto que seriam
poemas cheios de estilo.

9.10.15

Controlo remoto

Não é na hecatombe
que adiantas as fraquezas.
É nas tardes soalheiras
no colo madraço do tédio. 

7.10.15

O melão aberto

Partido em quartos
resplandecendo amarelo esverdeado
(que também podia ser verde amarelado
– depende do olhar afinado):
o melão garboso mostra-se à clientela.
Comam o melão ufano
– adverte o preço de saldo.
Mas se é de saldo seu preço
ponham compradores potenciais
as barbas de molho:
nunca fiando
quando a esmola fermenta tão abundante.
Mais a mais
deve a suspeita trinar:
como pode o pobre melão
ostentar sorriso que pesca o comprador
pela boca da ingenuidade
se o melão assim esventrado
não é, decerto,
produto da sua vontade?
Ardis do marketing, parra seca.
Caem os incautos
os que sucumbem às árias envenenadas
dos mercantes sem remorsos.
Que isto do capitalismo
é cicuta que traz a humanidade pela trela.
(Ó verdade insofismável!)

5.10.15

Paris nas mãos

Os pés não cansados
na exata proporção da sede da cidade,
do tamanho da cidade.
Paris perfuma quem está
e os passos ficam curtos para a volúpia
que dá de presente.
Os dois braços do Sena
naquele lugar em que a ilha o divide em dois
abraçam-se às pedras antigas
– às pedras que foram residência
de quantos turistas?
São pedras angulares de história imensa.
Paris nunca expiou o encanto
– nem agora
que os parisienses são rasos na multidão.
Num pulsar arrebatado,
do cimo de Montmartre
com a basílica a fazer de testemunha:
Paris a nossos pés.
E nós,
com a cidade a agasalhar-se nas mãos.

4.10.15

Flow
Wolf
Flow with a wolf
Wolf in a flow.
Flow.
Wolf.

3.10.15

A história do futuro:
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