23.2.16

Ouro puro

E eis que vieram
as coisas douradas
no halo da lua diurna.
Avales de anjos vários
emprestam uma aura ornada a ouro.
As palavras ganham doçura
os gestos embainham
o veludo que queremos.
E ao resto
mandamos dizer que porta outra
é a que devem vir bater.
Pois somos curadores do ouro
e o ouro nas mãos liquefaz-se
mercê do ouro havido nas mãos nossas.
E tudo se compõe
tudo se tempera
na vastidão da planície dourada.
Os olhos
passam a ter a cor do ouro.
As alvoradas enfeitam-se
com a pureza da abastança maior
dos dédalos de que nos soubemos resgatar.
É o ouro supremo
o ouro sublime:
o ouro
que só tem préstimo
como adorno das almas nossas.
Transfigurando-se
em matéria própria,
indomável e pronta.
Somos o ouro por dentro
até que o ouro seja consistência das almas
que jorram no pulsar das veias.

22.2.16

A loucura

E de novo
a loucura.
Pintada nas asas de um avião
esbracejando na ilha noturna
dividindo sete por três
(para dar número inteiro)
falando ao ouvido de um macaco
treinando haiku no meio de um nenúfar
cantando em cima de uma música
(com o poema a destempo)
cortando as unhas no elevador
soprando sílabas no papel de embrulho
motivando garças pernaltas a pesar arroz
ocupando o sofá do figurão
metendo marcha-atrás na ribanceira pelas costas
depondo as glórias fátuas
pitando cortinas com a poeira cósmica
debitando orações de um livro sepultado
congeminando os planos mais altos
atraiçoando os cães danados
irritando a glote pavoneada
recusando os sins
e deitando na cama sem lençóis
à espera de uma noite madraça.
E de novo
a loucura.
Timorata.
Sequaz.
Amarela.
Irada.
Içada.
A loucura.
Monumental arbitrariedade
de deuses infames
ou apenas
objeto decorativo
contra a indiferença geral.

20.2.16

Castelo de areia

Um castelo de areia
sentado num trono de talha.
Oxalá estejam os ventos de feição.
Se não, as areias decretadas
movem as pás da vontade
e tornam-se pedregosas paredes,
inamovíveis.
Nessa altura
o castelo de areia
cristaliza-se num penedo
– e os penedos
evitam-se a todo o custo.

18.2.16

Maremoto

Não te intimides com a voracidade das coisas.
Não tenhas medo do medo
nem te ofereças à coragem inválida.
Deixa os adereços para memória futura.
Deixa a língua da areia ser teu contraforte
deixa,
que é véspera de desassossego.
Ao teu lado
sou a fortaleza possível.
Contra os abcessos bolçados
os lugares-tenente da hipocrisia
os meirinhos que ensaiam a bonomia
mas escondem
atrás de sorrisos melífluos
a vanidade de maremotos.
Mas de maremotos
que não levantam um grama de areia.
Fogos fátuos,
pois,
lagares de vinhos azedos
matéria insubstancial em vez de coroas.
Pois de coroas,
só espinhos,
espinhos desmaiados.
Que não doem a ninguém
em estando o diapasão alinhado
com as luas que importam.

17.2.16

Fé em banho-maria

As cordas podres prendem as paredes
enquanto o vento voa loucamente
lá fora.
Penhores de fés diversas
os crentes sussurram preces que afugentem
demónios na forma de vento.
Sabem que não podem contar
com as podres cordas,
frágeis como são.
A noite avança e não há sinais
de condescendência da tempestade.
As pessoas
crentes ou não
não se deitam no sono.
Talvez por temerem por pessoas e haveres
como se o temor
fosse prevenção calibrada.
(Ainda mais do que as crenças várias.)
Acredita-se no que se quer.

16.2.16

Acaso

Um tiro no escuro
e os arbustos num sobressalto.
Às escuras
podem as tentativas acabar em fracasso.
Ovos de ganso desfeitos
uma raposa entontecida
uma serpente a rabear
um sacerdote de calças na mão
(ou a senhora bem-posta toda descomposta)
um fogo posto.
Também pode suceder
tiro devolvido em ricochete
por rochedo escondido.
Nestas aleatórias coisas
(e seus inesperados desfechos)
pode terminar um tiro no escuro.
Nem assim
a arma fica embainhada.

Ignição

A areia fina
tece dança peregrina.

As rochas molhadas
não ficam cansadas.

Um par de luvas esbanjadas
a meio das escadas.

A garrafa deitada ao mar
por um marinheiro irregular.

A noite dormida
num sonho de druida.

A roda dentada
na nora alquebrada.

Cachos de podres uvas
já sem férteis chuvas.

Um gato semicego
a caçar um morcego.

Trinta odes deixadas em hibernação
por falta de inspiração.

E no dia seguinte
já não há acinte.

Apesar da alma poluída
por gente puída.

O mar andante
sepultura do mareante.

A maçã do rosto suada
pela partida pregada.

Um rosário de resoluções
deitadas a amanhãs paredões.

As tocas fundas
das lobas fecundas.

Cobertores gastos
ajeitam os mostos.

Cães vadios protestam
ao relento que desgostam.

Mal sabem as deitadas crianças
que o sono é a casa das esperanças.

Votam futura insubmissão
em brancos votos sua missão.

E reaprendemos os sentidos
enquanto a lua cala os gemidos.

15.2.16

Mansão

Às traves da casa
de madeira velha e estacada
pede conselho de anciã sapiência.
Mete as mãos na fuligem
andam à procura das fundações
desdizendo os agoiros maus
que lhe deitam.
Não é fácil a empreitada:
nem dos relógios das igrejas
soam compassos que aligeiram os pesares.
Apesar dos contratempos prometidos
as garças grasnam gargalhadas
e a proveta dos sentidos ensaia um sorriso.
Não são malditas as profecias
e ainda que fossem
mereciam solícito degredo.
Pois as mãos untadas pela fuligem
e o aconchego das traves centrípetas
segredam o lugar da água torrencial,
onde os desamparos se dissolvem
a melancolia se esvai na neve fresca
e o vento desenfreado
conta os segredos que despojam

o tempo do tempo.

12.2.16

Desarmado

Arrumei as lanças afiadas
numa cova funda junto ao rio.
Deitei uns alqueires de terra húmida
e calquei-a em jeito de certificação.
Agora
devem estar enferrujadas
e essa ferrugem condiz
com as manhãs claras que,
desde então,
se tornaram imperatrizes.
Agora
tenho armas nas mãos
as mãos que moldam os rostos
com o perfume do afeto.
Os olhos são ogivas
que irradiam bondade.
Já não empenho vernáculo.
Não quero saber
dos magnatas da estultícia
dos falsos querubins que fraquejam
em sórdidas profecias
dos cultores da ignomínia
dos ilustres mitómanos
ilusionistas de um universo só deles.
Nada disso importa.
Só importam as palavras de ouro
os abraços apertados
o laço colorido
que faz o amplexo dos amantes
o leite que desazedou.
O desarmamento 
abonou a indiferença.
É a melhor prova de indulgência
e a alma
(já desabituada da angústia)
agradece em penhor.

11.2.16

Bússola

O peito encharcado
do vinho que deitamos em nós.
As mãos treinadas
no pulsar do teu corpo.
Os olhos fundidos
em êxtase matinal.
Os percursos abonados
pela batuta eterna.
O sol poente
sem deixar vestígios atrás.
Chegamos à demanda
enquanto sopramos pétalas de rosas.
Divagamos
cantamos
dançamos
(sim, dançamos, se preciso for)
contemplamos.
Ajuramentamos o fiel do tempo
à medida do nosso olhar.
Sabemos de cor
a cor dos poros das peles nossas
a música das nossas veias.
Sabemos como subir
aos bosques frondosos só nossos
como adestrar os ramos orvalhados
e sentir o palpitar incorporado num só.
Às noites por serem noite
aos dias por serem sua antítese;
quando quisermos que a noite seja
e quando fizermos os esteios do dia.

10.2.16

Pontuação náutica

A bombordo
as pedras puídas
encarceram a noite.
Por mais voltas que dê
os escombros do corpo
desmaiam na música em murmúrios.
O mar soado na funda memória
desaprova as incontinências
que ocupam o sono.
A estibordo
rostos grandes e alvos
apaziguam o mar rombo.
Deslaçam as planícies feitas
no mar aveludado
enquanto tiros de pólvora seca
escorraçam abutres esfaimados.
Já sabia
que devia ter escolhido estibordo.

9.2.16

Colóquio

Tirando
as cordas vivas
o mar rasante
os nenúfares amarelos
as nuvens caiadas no céu
o cão vadio que mendiga mimos
os botões de punho aristocratas
as resmas de papel que armazenam nada
os beijos arrebatados
as facas quietas
as canetas à espera
a pele sentada
e o gelo quente
nada se revolve na impureza das cicatrizes.
Nada agarra
o vento quente
o mestre experiente
a bola furada
a traineira ousada
a neve tardia
a bala retida
a palavra acertada
a raiz profunda da alquimia.
E eu sou
juiz de todas as medidas
e a mim chamo
as fazendas que servem de agasalho.

Terra molhada

A terra molhada
acalma.
Transpira pelos poros
todos os poros.
Ou serão lágrimas
que fogem da escura terra
por quererem beber
na luz desmaiada do dia chuvoso.
A terra molhada
acama
os tremores que sussurram
à boca da noite.
Feitos amálgama
futuro fermento dos tempos ávidos.
Sem a terra molhada
não há suor
não há lágrimas
não há tremores
nem sussurros:
não há a feição nobre
aprisionada no lado oculto
do suor
das lágrimas
dos tremores
e dos sussurros.

8.2.16

A cadeira

A cadeira de três pernas
aguenta-se,
impecável,
sem tergiversar.
Exemplo de um equilíbrio magistral
não vacila com o vento
nem hesita quando sopram terramotos.
A cadeira está manca
mas não manca.
Não precisa de muleta
e recusou,
até,
ajuda diligente de um carpinteiro.
Teimosamente
mantém-se escorada
em cima das suas três pernas.
Não se importuna com intempéries
ou com os alvoroços que chegam
amiúde.
Um dia perguntaram-lhe
onde tinha perdido a perna (em falta).
E ela,
impassível (como sempre),
perguntou ao perguntante
se tinha certeza do que a pergunta continha.
Disse,
em bom idioma
para ser percebida aos ventos todos,
que tinha as pernas todas
e bem aparafusadas.