25.5.16

Postal autoilustrado

Dos penedos estrepitosos
deitados ao acaso na encosta
recolhi fragmentos
(também ao acaso)
para aprender os rudimentos da firmeza.
Das graníticas rochas
(maiores do que casas)
em equilíbrio precário
trouxe um manual de intenções.
Soube
pelos contrafortes da serrania
bons serem os modos dos pragmáticos
(desmentindo pueris enunciados dos líricos)
e paradoxalmente estáveis
os precários equilíbrios.
Pois tudo se resume
às coisas na sua antítese.

24.5.16

Vertigo

Oh! ideias frescas
limpas serenidades da mente
que acalmam as nuvens sobressaltadas.

Oh! corpos terrestres
vindicando o prazer duradouro
em danças lunares que depõem a noite.

Oh! lanças dardejadas
em torrentes luxuriantes
por dádivas orquestradas no palco vidente.

Oh! perfumes vadios
em corpos trespassados de suor
no abrasear dos amantes em seu reduto.

Oh! um relógio parado
no êxtase dos segundos demorados
enquanto as janelas se deitam ao vento.

Oh! as palavras encantatórias
dedicadas aos murmúrios que transluzem
na luz feérica das manhãs sem sono.

Oh! um punhal tomado
entre mãos trémulas em ávidos prazeres
num contrato que dispensa assinaturas.

E, oh! um amanhã radioso
entre serenatas sem música
poemas sem rima
beijos incandescentes
sexo forte
mãos sem embaraços
peito ouvido à boca de cena
rosas aromáticas em forma de cama
braço que serve de regaço.

E uma janela aberta:
testemunha de um amplexo
na chama viva que acendemos
com o peito.

Leviatão

A parede sem rosto
esconde os segredos pátrios.
Argonautas com rosto
esbulham os bolsos rasurados
em nome do património comum
(dizem).
Males de estirpe semelhante
corroem as veias já incineradas
num movimento que de efémero
é desprovido.
A usura em forma de lei
com a caução dos bons costumes
e das lições de lentes
é o baraço que vagarosamente cerceia o ar.
Depondo a vontade
no sargaço podre
que restolha à beira-mar.

23.5.16

Terra nova

Mexo no xisto negro
o sal do chão à volta
e sinto as raízes da terra
a subirem pelos dedos.

O xisto lascado
(há quem lhe chame o chão cicatrizado)
denota a crueza da terra
como os dedos ásperos dos aldeões.

Nas voltas das terras alcantiladas
o sortilégio de uma paisagem
em povoamento sem ordem
libertando a terra das feridas fátuas.

No acampamento dos sonhos
(onde a tela branca aceita apostas altas)
os vinhedos em cama de xisto
habitam o sono.

Como se no xisto tivesse berço
mal sabendo que o berço algures
foi-se de empréstimo às terras duras
cicatrizadas pela paisagem pétrea.

E o xisto pesado, plúmbeo
arranca do corpo
cicatrizes féleas
prometendo um oxalá jamais dito.

20.5.16

Injustiça divina

Vemos
no palco açambarcado pelo suor
uma baleia exangue
num murmúrio piedoso.
Na baía sitiada
a baleia numa luta de norte
definhando nos baixios da baía.
E nós
de braços desarmados
sem socorro podermos empregar
preparamos uma noite de insónia.
Podemos mal
com a incapacidade que armadilha
e doem-nos os frutos da
(dita)
injustiça das divindades.

19.5.16

Sentença

Condenamos o quê?
A servidão
As amarras que freiam as mãos
As palavras suicidas
O frémito extemporâneo
As árvores inacessíveis
Os escrivães da frivolidade
Os poltrões de algibeira
As farsas sem causa inerente
Os pianos descaídos em rampas sujas
Sacerdotes impositivos de dedo em riste
A cobiça demencial
Os corpos untuosos em apertadas roupagens
A feiura dos belos
e a beleza dos feios
Os feitos ufanos na ponta da língua
A exacerbada monotonia dos dias repetidos
O desembaraçar de um enigma
Os punhais empunhados
As bandeiras de países em parada
Os ministros emproados
e os figurantes em pose de aspirante
A dança macabra do matadouro
A língua afiada dos desocupados
Os resguardos das almas em hibernação
A detestável ingratidão
A espera pelo nada que não se soergue
O que ficou por ser dito
e os pesares redondamente inúteis
Os despojos sem serventia abraçados às mãos.

18.5.16

Boca do inferno

Da excelência dos propósitos
nem reticências.
Os dobrões apanhados no veio das ruínas
contam os calendários acidulados
as rainhas sem coroas
os dedos feitos garfos mendazes.
Os rochedos enegrecidos
distinguem o precipício
de onde o mar intransigente veste
um luto medonho.
Saio da boca de cena
para os bastidores vazios
à espera de um amanhã adiado.
Saio dos candeeiros gastos
da luz frouxa que coalha os sentidos
e digo que os infernos não têm prazo.
Digo
que uma ventura tingida no céu
se me oferece meretriz insincera;
que os olhos aplacados de uma sereia
tingem as páginas com o sangue gasto;
que naus viquingues sem remos
sulcam as águas macias de um mar sem cor;
que senhores apessoados
prelecionam argutas prédicas;
que velhos sem dentes
se saciam com framboesas imaturas;
que o torniquete do museu
não deixa passar os estultos ao engano;
que sôfregas divindades
escondem aperaltadas vestes acetinadas.
Digo
o que oxalá queira dizer
entre duas notas de vinho branco
e três módicas doses de fruta madura
enquanto o sumo escorre da boca
e inunda o chão de uma sementeira capaz.

17.5.16

#29

Evidentemente
não sei de nada
a não ser
do muito pouco que tenho
por conhecimento.

Êxtases

Escaramuças
na noite vadia
com os ossos embebidos
na seiva da maresia.

Efémero
o olhar compungido
por desalentadas almas já não serem
para além do horizonte baço.

Elegante
o epíteto transfigurado
em cima de um prato rombo
dentro do manjar possível.

Escol
interminável
antagonizando militantemente
com o povaréu estrepitoso.

Evitável
a sanha elegíaca
dos mastros inclinados
à mercê dos ventos procelosos.

Elucubrações
solenes em pé-de-página
ditas em murmúrio
por divindades escondidas na penumbra.

16.5.16

Contratempo

Explode na boca
um trunfo cheio de demência
sob o ocaso das árvores madrastas.
Explode na boca
enquanto o entardecer se deita no mar
e a luz dá o braço a torcer
a pirómanos audazes.
Um trunfo
desimportante por ser desabitado;
e as árvores gentis
amolecem a boca ressequida
enquanto o mar se mistura com o céu.
Espera-se.
Espera-se pelo comodato do peito
um cinturão justo cheio de esmeraldas
e um braço revigorado pela madrugada alta.
Espera-se
sem outorgar alma
aos contratempos desassisados.

13.5.16

Desafinação

Ouvidos os sábios
em solene conciliábulo
arranjaram-se motivos válidos
para perseverar na bonomia.
Já não colhiam semente
as desconfianças da grei
quando o céu se fechava sobre si
e os farsantes se riam
como hienas.
Os sábios,
serenos em sua sumptuosa gravidade,
deram-se de penhor à farsa.

12.5.16

Quase prece

Pudesse arranjar quartel
para alojar as iras
que se atrevem.
Pudesse desembargar emoções fruídas
e olhar pelos olhos de uma estrela
enquanto bebia a noite
por um cálice de ouro.
Pudesse achar a fogo noturno
e tingir o frio
com as labaredas em crepitação.
Pudesse, ao menos,
tirar do alfaiate um fato à medida
enquanto as pedras rombas
magoam os pés.

11.5.16

#28

Uma vírgula fora do sítio
uma alínea para perlongar raciocínio
o logro de uma palavra sem coorte,
para dizer:
antes o silêncio.

Cinco sentidos

Vejo
o negro dos pássaros enlutados
que farejam o cio da morte.
Cheiro
o negro das cobaias sem remédio
que involuntárias se entregam
ao sabre dos cientistas.
Provo
o negro das iguarias experimentais
que devolvem palco aos obnóxios.
Sinto
o negro das cortinas de fumo
que se deitam nas mãos
em leveduras tácitas.
Ouço
o negro das cançonetas tolas
que desensinam o ouvido.

10.5.16

Mau conselho

Que maus caminhos esses
por onde anda a sede de conselhos?
Bastarda a porta a que batem
os que julgam saciados em bom conselho.
Bastarda a intenção
que enlaça as mãos ao conselho dado
ao mau conselho de maus pergaminhos.
Não quero ser porta-estandarte
de conselhos ávidos
nem conselheiro de coisa nenhuma.
As curas interiores
que as busquem algures:
em peritos de descaminhos das almas
em oráculos feéricos
em curandeiros insolentes
ou apenas
no restolho que os pés próprios deixam
em peugada.
Não peçam conselhos
que as cicatrizes se doem nas mortificações
de outrora
e as baças nuvens impedem o olhar.
A preceito de maus conselhos
julguem-me em pelotão de fuzilamento.

9.5.16

Contrastes

Um prego na estopeta
para quem caça baleias em mar alto.
E um tubarão furtivo
para desenhadores dos mares.
Uma cruz ao alto
para ateus sem remédio.
E as cores do Érebo
para seguidores de igrejas.
Dois beijos no rosto
para frígidas emblemáticas.
E algemas álgidas
para amantes abrasadores.
Uma montanha de arroz
para modelos anoréticas.
E um freio na boca
para gulosos empedernidos.
Um papel de embrulho
para um desapossado da estética.
E uma página em branco
para um asceta da estética.
Um chão firme
para o nómada incorrigível.
E um mundo aberto nas palmas das mãos
para o sedentário esquizofrénico.
Um manual de ideias
para os sibilinos do obscurantismo.
E um banho de humildade
para os insaciáveis da erudição.
Quase tudo em novo
para os conservadores de linhagem.
E um módico de estar
para os ganhadores de vanguarda.
Uma rosa dos ventos
para cidadãos desgovernados.
E um manual de Bastiat
para aduladores da ordem social.
O mar aberto
para pastores de serranias.
E as cumeadas pintalgadas de neve
para os pescadores de alto mar.
Um pau cinzelado a cobre
para os pioneiros da maré.
E um copo de chá
para elefantes brancos.
O martírio assinalado
para os devotos de perfeição.
E a algazarra inominável
para dementes do espaço.
Um impropério banal
ao polícia de costumes.
E uma genuflexão
ao meliante dos costumes.
A noite adorada
para os meninos bem-comportados.
E a alvorada fresca
para catedráticos bon vivants.
Um livro de poesia
para burocratas mangas-de-alpaca.
E três quilos de formulários
para poetas poltrões.
Um olhar iracundo
para o trovador das inconsequências.
e um desleixo aluado
para o zelador das coisas constituídas.
As trevas sem fastio
para o pintor psicadélico.
E a impertinência das cores luxuriantes
para cantores sorumbáticos.

#27

I shall not dare riding
on wings.
Safer is wearing
own wings.

8.5.16

Sabatina

Daninhos lugares
de feições subtis
fingidos pesares
de intenções vis.

Altivos doutores
de capas varonis
em demorados vagares
de castas estudantis.

Convencidos esgares
em dirigidos projéteis
dardejados aos populares.

Todavia inférteis
de pensamentos lunares
em disfunções eréteis.

7.5.16

Salva vidas

Os ossos abraçados
às teias dedilhadas por artesãos
e o medo dos naufrágios
que naufraga
às mãos de um colete salva vidas.
Podem vir as ondas todas
podem vir até as do tamanho
de torres sem fim
podem vir míticas figuras marinhas
imortalizadas em heroicas páginas
podem vir piratas desalmados
podem vir ilhas que prometem delícias
e podem vir outras ameaças furtivas
deitando revólveres à fronte;
nem os impossíveis
dão manancial aos medos avulsos
mercê do salva vidas
anjo que abriga
dos fungos destravados
com a coroa da maldade.

6.5.16

#26

Deu-me uma ilha,
a mais encantadora voz,
sereia emergindo de profundas águas
e eu sentei-me na árvore mais alta.

Objeto decorativo

O pedestal.
Cimeiro.
Luzes de néon
e a refração do distorcido,
que as luzes de néon
são pródigas em mantos de ilusão.
Do pedestal
vê-se empolado
(num espelho que só existe
à frente dos seus olhos).
Vai à cata das luzes de néon.
Convencido
que se chegar aos néones
vem ungido com dotes divinos.
Do alto de pedestal
nem sabe que não passa
de objeto decorativo.

5.5.16

Sou a tua sombra

Os violinos acordam a manhã
com a doçura da pele quente
ao meu lado.
Um beijo confessa a cor da alvorada.
E sei
que todos os poros cantados
arranjados para a decantação
em febril coação dos sentidos
– mas uma coação voluntária –
se embebem em graciosa coreografia
entre o cálice dos desejos em que se arvoram
enquanto a manhã nasce sem fim.
Os violinos arrepiam a pele
adestrados por anjos tutores
as mãos dadas que congraçam os corpos
as bocas que sorvem o vinho que canta
e se deita nos olhos arrebatados.
Deixamos aberta a cancela do tempo.
Os raios de sol
atirados pela aurora tardia
abraçam os nossos corpos
e nós sabemos que as flores inteiras,
as flores cheias de luxuriantes cores,
servidas em jarras de fina porcelana
esperam por nós à cabeceira.
E sabemos
que não sobeja nada das sombras
por nós entretanto desfeitas em luz trémula.
Os violinos
entoam as notas mágicas
e nós tiramos freio ao mais fundo de nós
deixando o tempo preso na moldura dos olhos.
Pois sabemos
que os violinos
e a alvorada
e o vinho portentoso
e os desejos desenfreados
e os olhos, as mãos, os corpos quentes
são apenas a grandeza maior
que encontra leito no corpo do poema.

4.5.16

#25

Às regras moribundas
reserva o exílio
das trevas.

Duendes

Um balcão sobre o mar
onde as cotovias voam paradas
na suspensão do tempo deletério.
Trouxe os braços cansados
e a boca cheia de fome.
Apregoam verdades
como se fossem estradas de sentido único
estradas de sentido obrigatório
e talvez não saibam
estes meirinhos da consumação fáctica
que são os mais insinceros de todos.
No balcão sobre o mar
pergunto às ondas se tem serventia
tantas verdades irrenunciáveis.
O mar não se descompõe
– talvez não tenha ouvido a demanda.
Dou por assente,
(mesmo assim)
que as verdades
as que são todas insofismáveis
atuam no palco onde se compõem
as mentiras maiores.
Não me lo disseram as ondas paradas
com o tempo deleteriamente suspenso;
foram as cotovias
em sublime coro ciciando ao ouvido.
(E não dei conta
que me contassem mentiras
sobre irrefutáveis verdades
– no quase nada que sei
sobre mentiras e verdades.)

3.5.16

Devolução

Deitei ao mar o peito aberto
onde o sal mais crestava
e julguei ser o dono das nuvens.

Abri as palavras encerradas
aquelas que dantes foram guardadas
em cofres de bronze sem chave.

Deitei-as à boca
e logo um frémito tomou conta das veias
enquanto o entardecer era diferido.

Foi quando as estrelas acenderam o céu
e eu fiquei a saber de cor
a miríade de beijos-nutriente.

Pedi aos tutores das estrelas
que as palavras dantes ecoadas
me fossem devolvidas.

Queria tê-las a dar cor aos lábios
queria enfeitar a boca com as palavras
já então reaprendidas.

Depois da alvorada,
foi-me prometido em voz solene,
depois da alvorada seria seu mestre.

Pela noite fora
tresmalharam os véus desprendidos
ao vento de leste que trazia o calor.

Pela noite fora
enquanto o sono decaía na insónia
e as estrelas não me deixaram ermo.

Na alvorada luminosa
esperei que os tutores das estrelas
depositassem as palavras aparelhadas.

Esperei e esperei
e a promessa apareceu com a maresia
depondo as palavras no meu colo.

Agora sou marinheiro saciado
detendo os olhos (dantes marejados)
no parapeito das palavras miríficas.

Agora sou o cofre forte das palavras
e sequei o peito fechado
no santuário dos mais belos céus.

Noite treslida

À vista da lua
na varanda do alvoroço
os gatos com cio
roubam as chaves da noite.
Que se faz dia,
a julgar pela ebulição
em que os gatos se deitam.

2.5.16

Teoria dos jogos

Assentava na suposição da bondade.
Numa teoria geral da boa vontade.
De manhã, ao acordar
embebia-se em doces unguentos de boa fé.
Julgava dos outros
que se mediam por idêntico estalão.
O tempo legou cura bastarda
tantas vezes a bondade esbofeteada
por inescrupulosos intervenientes
em que esbarrava
(imerso em ingenuidade).
Fez prova de vida:
aprendeu as regras do desjogo
e esqueceu pergaminhos.
Em vésperas da senhora negra
prometida para receber seu féretro
tanta era a destreza nas regras do desjogo
que os rivais por causa dele se mortificavam
em atos de notória inveja.
Na hora dos finados
mandou dizer que não havia ninguém
na prestação de contas.
Não admira
as águas tumultuosas e lamacentas
da paisagem em que todos eles medravam.