21.6.16

Nó górdio

A exuberância do argumento
adjetivado com prodigalidade.
Desempoeira-se o aparato
mete-se o bisturi à procura dos esteios
da porosidade das paredes que dão cais
ao argumento
e vem às mãos um nó górdio:
agitado o argumento dentro da câmara côncava
(como se fosse um cocktail à procura de forma)
o argumento devolve-se na sua puerilidade
um conjunto de partes deslaçadas
uma promessa falhada
e apenas
um floreado exuberante
insubstanciado
sem perfume
um floreado que ao toque revela
a sua plástica condição.
Um argumento nem sempre é uma ideia.

20.6.16

#34

Tirou a máscara
e à mostra
ficou o musgo decadente
da ironia. 

19.6.16

Os compadres

Uma dança de cadeiras,
estando os compadres em vociferações
apontada para o centro do terreiro
onde já houve uma sinfonia de melros.
Uma comadre chega o cobertor
que já faz frio à noite.
Grilos escondidos cacarejam uma cantilena
não distraindo os compadres da função.
Dizem más línguas
que aos compadres de rija tez
não importam os candeeiros apontados
nem os calos que se fazem duros
pois calculam,
com um atrevimento ímpar,
que não lhes apraz medir os humores alheios.
Entretidos na dança das cadeiras,
bolçando a bílis purulenta
de quem subiu à velhaca condição,
traduzem o linguajar desatinado
enquanto terçam vulgatas ao desafio.

17.6.16

Cimento

Esboço um bocejo
enquanto dedilho as folhas brancas
sentadas no meu colo.
Sinto
no regaço indolente
um vitral que irradia um pesar
insubmisso.
Nos contrafortes do entardecer
enquanto as pessoas correm para casa
esgueiro-me ao lugar onde o mar
se aquieta nas molhadas areias.
Respiro, o mais fundo que sei.
Não dou nada de mim ao mar madraço
nem convoco o mais leve sinal de prece
no ideal destemor dos príncipes malfeitores
que contaminam o céu todo.
Retenho apenas a parte do horizonte
onde depressa o sol decaíra em seu desmaio
à espera dos estorninhos delgados
e da noite que já não fermenta o caos.
Penso no mar
penso na noite
penso na insubmissão sem freio
o criterioso moldar de um corpo
às ondas imperiais
quando o mar está a preceito.
Encontro os rudimentos
que me fazem levitar,
como se, de repente,
todos os poros em mim
todos os milímetros do meu corpo
todas as partículas da alma
todo o olhar não desperdiçado
esconjurassem os males
(os maiores e os outros)
que espreitam no dorso
de um cavalo sem olhos.
E, de repente,
vejo os meus dedos percorrendo
as teclas de um piano
magistralmente assentando na praia.
Vejo
como
sem tirocínio em música
sou lídimo intérprete de uma partitura
de instantânea composição minha.
Já não adormeço
só para emoldurar,
para memória futura,
a proeza destra.
Amanhã são os dias todos.
Os possíveis e os impossíveis.
Porque as impossibilidades
passaram a ter honras de possível.
E eu
com uma rosácea vivaz nas mãos
empresto alimento ao mundo inteiro.

16.6.16

Sonho ermo

Havia um sonho com textura
numa paisagem amarela,
entrava pela janela sem aviso.
Preenchia as dúvidas, o sonho:
era contraditório
às vezes, sombrio sem ser medonho
às vezes, propedêutico sem ser hesitante
às vezes, madraço sem cruzar os braços
outras vezes,
neófito sem curar da originalidade.
O sonho persistente
teimoso
vestindo o corpo de suor
emprestando agitação ao sono
uma pletora de opostos.
Afinal de contas
sonho em plena reprodução do tangível
outra pletora,
a das antinomias sem serem inversos.
E o sonho teimou e teimou
noites e noites sem conta
até que se confundiu com o tangível.

15.6.16

Barracuda

Uma barragem de fogo de artifício.
A barba rala e ruiva do pescador.
A fanfarra no ensaio, alheia à rua.
A bandeira vermelha avisa o mar impossível.
Um tiro de estopeta, ao longe.
Um homem de saias (deve ser escocês).
A árvore que desabrocha, temperando a luz.
Um livro deixado no banco do jardim.
O pescador da barba ruiva apanha o livro.
O livro tem imagens de pescas antigas.
O pescador folheia um livro, coisa rara.
Uma velha vestida de negro olha, desconfiada.
Um cão perdido erra pelas ruas, faminto.
O jornal traz na capa notícia jubilosa.
O tiranete continua na prisão, e está doente.
No banco transacionam-se cheques pré-datados.
O condutor de táxi ouve música ruidosa.
Uma noiva entusiasmada lança o bouquet.
O mar tempestuoso é testemunha.
O marinheiro da barba ruiva embarca.
Leva o livro na bagagem.
O comandante solta três foguetes.
Os outros marinheiros olham-no de través.
As flores deitadas pela noiva perdem-se no mar.
Vão agarradas ao casco do navio.
Foram comidas por uma barracuda.
Que se saiba, a barracuda não desposou.

14.6.16

Throw me a line

As bright as it might seem
from the pale blue light
casts away from the candle
as bright as the sun within
from the tenets of the dawn
torn as cattle under fainted guns
undecided about the gloves to wear
as protection sways in thin shades
and the battleground is served
for the major play unset.
Throw me a line.
Just a line
as modest as it might seem
for graveyards halt in no hope
if they write hope for my body.
I need a clear line
canvassing for fertile ground
as vivid as the tone of seeds ranging
from your hands.
As long as you throw me a line
punching against fearless priests
I will breathe from within
and flood the highest candle that feeds
the dazzling, ill-free, gifted sky
under our feet.
Because
the line that you threw me
jostled the sky from our hands.

13.6.16

A casa sem telhado

Segue-se ao cais amarelecido
onde vêm receber amparo
os navios fantasmas.
Do cais tem-se a vista da casa sem telhado
– a casa centrípeta que empresta o luar à cidade.
Dizem que tem habitantes.
Dizem que lá dentro
a chuva não molha o chão.
Dizem as lendas todas que a imaginação
concebe.
A casa sem telhado respira as heras
que trepam às paredes encardidas
enquanto a luz diurna se insinua
entre os seus cantos bolorentos.
Dizem:
que os fantasmas se apoderaram
da casa destelhada.
E que são eles que teimam
em deixar nua de telhas a casa moribunda.
No refluxo do vento
entre dois murmúrios de andorinhas assustadas
a casa sem telhado emproa-se
desde o seu lugar miradouro.
Dizem:
que ninguém tem coragem
para lhe consertar telhado
ou para a encomendar ao túmulo do entulho.
Um impasse,
é o que é.

9.6.16

Ilhas futuras

Reivindicação salubre:
tirar os olhos do pretérito imperfeito
quando os mares eram violeta
e o peixe residente vinha cardado
em veneno.
Um maestro a preceito
desengonçado, porém,
tira da batuta as pétalas perfumadas
que batizam as ilhas futuras.
Não há neófitos sacerdotes que deitem
óleos ungidos sobre o tapete do tempo;
não há vis apoderados do poder
que ditem frases para as atas vindouras
nem meãs personagens,
entretidas com frivolidades,
cantando árias desafinadas.
Há as ilhas futuras
divindades, talvez,
operando entre os arbustos secos
autênticas maresias metediças.
E então
com os olhos postos no vento comandante
as ilhas futuras destapam-se
entre o brilho de um sol intenso.
Mostrando-se espelhos cristalinos
onde os grãos da autenticidade
encontram sementeira.

8.6.16

#33

Provavelmente
as suturas abertas
voltam à rotunda das águas
onde se vendem cicatrizes
a preço de saldo.

7.6.16

Curto circuito

Atirar os dados
com o sortilégio de uma lua branca
e corromper o corpo com o sal da noite.
Alavancas atiladas por flores campestres
destravam os contrapesos alinhados;
o marfim entre os dedos
dita a riqueza dos dias destes
sem embaraços a diluir o firmamento
nem desabamentos em forma
de curto-circuitos.
Agarramos a madurez dos frutos
e somos passageiros do vento feiticeiro.

6.6.16

O fim do carnaval

O fim do carnaval
é a boémia embebida em contrição.
O fim do carnaval
(para o não boémio)
é esperar que as máscaras se tercem
na terça-feira final.

5.6.16

#32


A enseada
por onde o mundo inteiro
se inunda
e a janela se dispõe
a navios nunca dantes vistos.

3.6.16

Do monte mais alto

Morde os cantos da terra
a simetria da lua ferrada
enquanto trepas ao trono desembaraçado
e emudeces a pele macilenta
desde o templo das sombras.
Foge célere dos embaciamentos atapetados
dos curandeiros das almas
dos mastins desençaimados que ostentam
arrogância
(julgando-a saber)
das capas densas escondendo
os vultos aguados.
E espera.
Espera sem dar o flanco à impaciência.
No dealbar do tempo
destronas a podridão dos outros,
a podridão em que insistem medrar.

2.6.16

#31


Montada numa estrela,
a menina celeste
só aspirou a estrela cadente.

1.6.16

Maré cheia

Num tripé em vez da noite
de atalaia às sombras que invadem
a madrugada.
Os gritos ao longe
sussurram pungentes ocasos
reparando injustiças de outrora.
Não sei a que braços
me hei de ater:
se aos braços cansados e vigilantes
se aos braços desocupados
que passam as palavras a pente-fino
e passam a palavra a quem passa.
Talvez pergunte ao gato escondido
talvez faça levar a inquirição
a um mendigo doutoral
talvez pergunte à lua que espreita
entre duas nuvens.
Mas
se a noite traduzir uma pele enrugada
enquanto mastros vistosos sulcam o mar
talvez
traga a meus braços a sede do saber
um beijo no rosto frio e adormecido
as paredes sujas do quarto mais longe
as uvas brancas quase podres.
Seja num promontório
onde escuto o silvar do vento do norte
ou no tripé
que aguenta os olhos estremunhados
pela maresia.

31.5.16

Desutilidade

Para memória futura:
já alguém sondou
a serventia das coisas que julgamos úteis?
Já alguém deu dois passos atrás
e inquiriu o pensamento
sobre as utilidades a que se emprestam
coisas e ideias e pensamentos e paisagens?
Já alguém depôs
neste tribunal sem juiz
para apurar os interstícios da utilidade?

E
se alguém já empreendeu tamanha tarefa
sentenciou a desutilidade de coisa alguma?
E
em caso afirmativo
ficou refém da angústia
ao saber-se penhor de uma desutilidade?

É que o tempo passado
na almofada indistinta da desutilidade
pode ser abrasivo
pode ser motivo para rescisão da lucidez,
para encostar à parede as ideias fátuas
e pô-las sob a pontaria afinada
de um pelotão de fuzilamento,
às arrecuas.

Desenganem-se os angustiados
com a terrível sentença de que foram escrivães:
ao aferir a desutilidade
somos fiadores de uma utilidade maior
escrevemos com letras graúdas
um devir transfigurado
que congraça utilidades novas.

Nem sempre uma negação é uma negação:
há vezes em que uma negação
desembaraça caminho
para a construção maior.